CONGRESO VIRTUAL 2000

Relação entre imagens e processo de cura em rituais que utilizam ayahuasca

Marcelo Simão Mercante
Programa de Pós Graduação em Antropologia Social
Universidade Federal de Santa Catarian
Mercante@mailexcite.com

Este texto aborda a questão das relações entre imagens e processos de cura em rituais que utilizam ayahuasca de uma forma um tanto especulativa. Trata-se muito mais de reflexões iniciais sobre um tema ainda bastante inexplorado visando trabalhos futuros mais detalhados do que realmente empreender algo conclusivo.

Tenho realizado pesquisas curtas no Centro Espírita e Casa de Caridade Príncipe Espadarte, em Rio Branco, estado do Acre, no norte do Brasil, mais conhecido como Barquinha da Madrinha Chica, que servem de base para o texto que apresento no momento. Em Mercante (2000) faço uma descrição um tanto detalhada dos rituais de cura realizados no Centro, mas apresentarei aqui um esboço. De uma forma geral o rito ocorre em dois espaços distintos, a Igreja, onde um grupo de pessoas entoa cânticos denominados Salmos, de autoria de membros da Igreja, em geral recebidos, ou seja, escritos sob inspiração de alguma entidade espiritual. Neste dia canta-se uma seqüência pré-determinada chamada de Salmos de Obras de Caridade.

O outro espaço onde acontece o ritual é dentro do Congá, um local atrás da Igreja onde existem os gabinetes, altares individuais de cada entidade espiritual que trabalha através dos médiuns da casa. Lá os doentes ficam deitados e são atendidos por um grupo de médiuns membro da equipe de cura. Tal atendimento é feito através de rezas, passes magnéticos. Importante dizer que tais médiuns atuam incorporados. Na linguagem que eles mesmos utilizam para designar tal operação trabalham como aparelhos para os espíritos, que são os verdadeiros atendentes. Importante dizer que todos que participam do ritual, seja na Igreja, seja no Congá, fazem a ingestão do Daime (o modo como a ayahuasca é denominada) antes do início dos trabalhos.

Falando um pouco dos espíritos propriamente ditos, o corpo de curadores é composto basicamente de Pretos-Velhos (escravos africanos), mas outras categorias como Caboclos (índios) e Erês (crianças) podem estar presentes. Esta é uma característica bem interessante da Barquinha, uma fusão de correntes religiosas diversas como catolicismo popular, pajelança cabocla (vide Maués, 1994), ayahuasca. O sincretismo é um tema bastante extenso para ser tratado aqui, tive a chance de explorá-lo melhor em Mercante (2000), mas sua importância neste momento é a de deixar entrever a gama de estímulos externos a que um indivíduo está sujeito ao se submeter a este tipo de tratamento.

Neste outro artigo (Mercante, 2000) tratei também da abrangência do conceito de cura para o grupo observado, o quanto a medicina ocidental cuida de forma bastante limitada de um processo de doença, como isto é um fenômeno que deve ser observado de forma muito mais ampla do que é tratado dentro dos hospitais. Partindo das considerações efetuadas neste outro texto pretendo formar agora um pano de fundo com algumas considerações teóricas e etnográficas sobre a relação das imagens e processos de cura, passando ainda pela questão da eficácia. Comecemos pelas imagens e como esta palavra vem sendo tratada dentro da antropologia.

Imagens: um pequeno apanhado teórico

A questão das Imagens dentro da Antropologia tem sido tratada de diversas formas. Desde os estudos sobre o Imaginário Popular até vídeos etnográficos, todos lidam de uma forma ou de outra com a palavra Imagem, cada qual dentro de uma especificidade, onde o termo adquire de acordo com o caso uma conceituação distinta.

Contudo, poucos são os estudos que encaram a questão ‘de dentro’, ou seja, lidam com as visões produzidas em estados alterados de consciência, sejam estes induzidos quimicamente ou não. Mesmo estudos como os de Segato (1995) e Rabelo (1999) tratam o tema ‘por fora’, lidando com o papel das imagens oriundas de arcabouços simbólicos religiosos externos, que ‘atuam’ por dentro dos indivíduos, influindo em seus comportamentos.

Assim, imagens como as experimentadas em visões durante estados alterados de consciência, por exemplo as que ocorrem em rituais onde há a ingestão de ayahuasca, foram até hoje não exatamente negligenciadas, mas creio que não receberam atenção com a devida profundidade.

Tratando especificamente de rituais urbanos onde há o uso de ayahuasca, ou seja, nas igrejas do Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal, as imagens estão inseridas num contexto mais amplo chamado de “miração”. Este conceito êmico compreende as visões e outros fenômenos sensoriais, emocionais e racionais, acontecendo em conjunto ou separadamente. Seguindo a definição de Sena Araújo (1999), é ela que proporciona o contato com o mundo espiritual, através do desprendimento do espírito da pessoa do seu corpo, atingindo níveis de consciência mais elevados. Ela ocupa um espaço essencial durante os rituais, é o meio de transcendência por excelência. Creio mesmo que ela pode ser um veículo indicador da aquisição do que Groisman (1996) vai chamar de “Luz da Rainha da Floresta”, o caminho daimista para a “Salvação”.

Contudo volto ao problema inicial, muito é dito com as mirações, mas muito pouco é dito sobre as mirações. Tratando especificamente deste texto, deixo de lado o trabalho com as mirações, por se tratar de um tema bastante complexo para ser abordado no âmbito de um estudo apenas, e trato com as imagens visuais dentro deste processo. As imagens são um recorte muito mais preciso que as mirações ou mesmo as visões, uma vez que estas seriam como que uma seqüência de imagens, muitas vezes formando um todo ainda bastante complexo e nem sempre totalmente recordado por quem as experimenta. As imagens seriam pedaços mais nítidos e que creio muito mais acessíveis a um processo analítico. Uma metáfora que poderia cair bem nesta situação seria tratar as mirações como todo processo de fazer e exibir um filme, as visões como o filme em si e as imagens como cada fotograma do filme.

Finalizando o tratamento que pretendo dar a palavra imagem, de acordo com Taussig (1987:462), dentro de uma linha kantiana de pensamento, elas ocupam o papel de articuladora entre as impressões sensórias e o a priori do ato de conhecer na geração do conhecimento. Assim, o que chamo aqui de imagens internas (numa forma de diferenciar dos tantos outros usos da palavra imagem) seria algo que emergiria na mente do indivíduo como um resultado particular de: estímulos sensoriais diversos, complexo simbólico fornecido pelo ritual, estado fisiológico e universo cultural deste indivíduo. Evito utilizar aqui o termo interpretação por acreditar que tal articulação se dá num nível não muito consciente no indivíduo, que emerge à consciência muito mais nas imagens que em racionalizações. E perceber como se dá as articulações destes elementos diversos é um dos pontos focais deste trabalho.

Há uma ligação latente com os arquétipos junguianos (Jung, sd), mas a diferença aqui é que não se deseja perceber os caracteres universais das imagens, o que seria por si só algo correlato aos arquétipos, mas sim a forma um tanto individual que os arquétipos assumiriam dentro das imagens, tornando-as então uma ponte entre estes tantos fatores relacionados acima.

Haveria então um encontro interessante à ser observado, um encontro onde estariam em jogo diversos fatores, um campo onde se poderia avaliar o como estes fatores se relacionam. Pretendo então agora fazer uma pequena apresentação do que seriam estes diversos fatores, para que a seguir possa traçar um quadro de como eles estariam relacionados na formação da imagem e com o processo de doença e cura.

Os fatores em jogo

Antes porém de proceder à listagem destes fatores creio que devo fazer um comentário. Não pretendo realizar aqui uma exegese exaustiva dos significados de cada um destes elementos relacionados. Não creio que este seja o caminho para se compreender sua ação. Ainda que tais significados tenham sua importância, são os estímulos provocados que me interessam. Os significados lidam apenas com uma parte de todo processo, com uma parte da consciência individual. Contudo esta é uma discussão que pode nos levar muito além do que é pretendido neste texto.

Na seqüência dada acima, temos os estímulos sensoriais como o primeiro dos elementos relacionados. Podemos começar pela audição. Os cânticos entoados no interior da Igreja são plenamente audíveis para os que estão no Congá. Usa-se em geral autos-falantes para que o som dos violões, guitarras e contrabaixo possam ser amplificados, com o auxílio de uma mesa de 16 canais para que todo equipamento seja trabalhado. O ritmo das músicas em geral é o de uma valsa e as letras tratam de cura, de energias cósmicas curadoras, de entidades da cura.

A cor predominante é o branco das vestes das pessoas de uma forma geral, sejam os médiuns, sejam os pacientes. Estes últimos utilizam uma fita vermelha como uma forma de serem identificados enquanto pessoas em tratamento. Diversas velas são acesas durante o ritual e a visão do fogo é uma constante. É utilizada uma lâmpada azul no teto do Congá, única iluminação no local, além das já citadas velas.

O complexo simbólico fornecido pelo ritual é um tema bastante extenso ao qual ainda não possuo o domínio necessário para tratar em profundidade. Este é um dos temas que pretendo abordar em uma pesquisa de doutorado. Pode-se vislumbrar na introdução deste texto alguns dos elementos que fazem parte deste arcabouço simbólico, oriundos de fontes distintas como por exemplo os cultos aos orixás, o catolicismo popular e sua devoção inerente.

O universo cultural ao qual pertence o indivíduo possui sua cota de relevância no que tange principalmente no plano dos significados de todo este esquema. Lido com o conceito de cultura a partir das considerações de Tassinari (1998), onde esta assume a característica de ser algo que nos concede a possibilidade de conhecer, ou melhor o que capacita alguém a conhecer algo, os conceitos utilizados no processo de pensar sobre coisas.

Volto aqui a questão de que estou trabalhando com um arranjo de elementos que se combinam para formar uma força de ação sobre um indivíduo. Assim, não cabe lidar com o conceito de cultura como o ponto central de toda esta abordagem. Principalmente se levarmos em consideração que as pessoas que freqüentam os rituais da Barquinha da Madrinha Chica tem origens às mais diversas, desde pessoas naturais do estado do Acre, filhos e netos de seringueiros, pessoas nascidas nos pontos mais diversos do Brasil, principalmente nos grandes centros urbanos como Rio de Janeiro e São Paulo, estrangeiros de nacionalidades bastante variadas, muitos inclusive que não falam português e de credos outros que não o cristianismo.

Por fim teríamos os estados fisiológicos em que a pessoa se encontra. Uma doença gera por si só modificações intensas no metabolismo humano. Artigos clássicos de iniciação xamânica tocam na questão de que muitas vezes isto ocorre em um período de doença, onde em sonhos ou visões se atinge níveis cósmicos outros que não o terreno, onde se recebe os mais diversos poderes e ensinamentos (basta ver a coletânea de Langdon, 1996, sobre este assunto).

Trabalhar com todos estes elementos em combinação é um desafio que pode gerar informações bastante interessantes. O campo da experiência humana é vastíssimo e vem ganhando espaço dentro da antropologia, principalmente a partir do reconhecimento de que os paradigmas clássicos não dão conta deste tema com a abrangência que ele merece. É dentro principalmente de uma abordagem fenomenológica que este espaço está se abrindo e autores como Schultz (1967) e Victor Turner (1986), seguindo os passos de Kant, Husserl e Weber são os precursores deste tipo de abordagem na antropologia. É a partir deste ponto que pretendo traçar algumas considerações finais.

Possibilidades outras de Eficácia Simbólica

Tratar de eficácia simbólica implica em tomar Lévi-Struass como ponto de partida. Em “A Eficácia Simbólica” (Lévi-Strauss, 1967) ele compara o xamã ao psicanalista, e traça paralelos entre as curas obtidas por ambos. Para ele o curandeiro é eficaz em seu trabalho, na medida em que, como o terapeuta, manipula a estrutura simbólica do paciente, provocando um rearranjo emocional do mesmo, tornando pensável o que antes era apenas sentido. Toda cura se procede por ser manipulado o ponto-chave do problema, o inconsciente. Para Lévi-Strauss nesta parte do psiquismo está a base de toda estrutura mental, de toda função simbólica humana, que responde, em todas as pessoas, à uma gama limitada e comuns de leis universais. O subconsciente seria a fonte da história individual, só adquiriria significado para nós e para os outros, quando organizado pela estrutura inconsciente, que teria suas raízes firmemente fincadas no social.

São muitas as críticas traçadas à Lévi-Strasuss, mas as principais vêm da escola simbólica americana, e podem ser sintetizadas através das colocações de Turner, de que ele (Lévi-Strauss) lidaria com um plano único de análise do ritual, onde seus símbolos, seguindo uma perspectiva estruturalista, acabariam por assumir um caráter univocal. Turner (1980) acaba por lidar com a noção de multivocalidade, que surge quando cada símbolo é analisado isoladamente no contexto simbólico, em diferentes momentos do ritual, como fazem os nativos – eis aqui outra diferença entre ambos, a utilização de explicações êmicas. A oposição binária seria a base da univocalidade, mas tal situação (oposição binária) é algo temporário dentro do ritual, e não referente ao ritual como um todo – este é o procedimento analítico adotado por Lévi-Strauss, que lida com um plano único em seus trabalhos. Coloca-se que esta antropologia falha em estabelecer uma conexão entre os símbolos, significados e ação, comportamento, na medida em que se preocupa primariamente em criar relações entre categorias analíticas, e não incorpora uma perspectiva orgânica, neuropsicológica, em suas teorizações (Luaghlin et al., 1990)

Mas aqui temos ainda um estudo de partes dentro do todo. Viso aqui no entanto atingir um plano integrativo. Mauss em alguns de seus textos fala das relações bio-psico-sociais (Técnicas Corporais [1974] principalmente), lançando a idéia do desenvolvimento de estudos nesta área. Lévi-Strauss também toca este assunto quando em Eficácia Simbólica busca a legitimação de seu discurso na psicanálise e em uma possível afirmação de Freud que diz que as perturbações psíquicas teriam uma “concepção fisiológica, até mesmo bioquímica” (:232), visando assim construir uma ligação concreta entre corpo e atividades psicológicas.

Victor Turner aborda esta integração num artigo de 1992, quando põe em cheque o axioma que ele define como ‘sagrado’ para todo um grupo de antropólogos de sua geração: ou seja, “a crença que todo comportamento humano era o resultado do condicionamento social” (:156). Em junho de 1965, quando em uma discussão organizada por Sir Julian Huxley, deparou com as definições de rituais e ritualizações de etologistas, definições estas que são muito marcadas pela idéia de um controle genético dos ritos. A partir daí, auxiliado pelas descobertas no campo da neurobiologia, desenvolve o conceito de um controle duplo do homem, tanto por um genótipo quanto por um culturótipo, através de um jogo de coadaptações simbióticas entre ambos.

E é neste jogo que se situa o Estruturalismo Biogenético, um corpo de conhecimento desenvolvido Laughlin & McManus (1974, apud Laughlin et al, 1990), embasado principalmente na biologia evolutiva, mais especificamente nas ciências neurológicas. Parte do princípio de que mente e cérebro são duas visões da mesma realidade: “mente é como o cérebro vivencia suas próprias funções, e o cérebro fornece a estrutura da mente.” (Laughlin et al., 1990:13)[1]. A consciência é acessada através do intercruzamento de eventos estruturais (neurocognitivos), comportamentais (etnográficos, etológicos) e experienciais.

Um dos conceitos usados por estes autores é o de neurognose, a organização da rede neuronal, que se responsabiliza pelos atributos universais da mente. É uma espécie de sistema de equilíbrio que ocorre no sistema nervoso central entre as diversas possibilidades de caminhos de um impulso nervoso, limitados pelo código genético de cada indivíduo e as pressões ambientais. De uma forma geral, a neurognose canaliza os processos de percepção e sensação, as atividades motoras e a diferenciação e associação simbólica e conceitual. É responsável também pelos limites cognitivos de um indivíduo. Desta forma, controla não só a informação transmitida, mas também a absorvida, sua interpretação e armazenamento. Tal comportamento abre um espaço para a transformação por parte de cada indivíduo do material cultural absorvido.

Aqui temos então uma das funções do ritual, que é o de controlar e direcionar tanto o material absorvido quanto o meio de absorção e as possíveis interpretações, visando uma uniformidade no ambiente cognitivo do grupo[2]. Isto se dá principalmente através de uma manipulação consciente de determinado grupo de símbolos, atingindo assim os sistemas neurais postos em atividade por estes símbolos, selecionando os mesmos, limitando o que deve ser experimentado.

Um paralelo, ou eu diria um aprofundamento das questões levantadas por Turner (1974), a respeito dos dramas sociais se inicia quando é levantada a dicotomia entre fases e torções (warp, no original em inglês, pág. 141). Nas fases teríamos os episódios ‘cognizados’ da experiência suas respectivas redes neuronais em ação. As torções por sua vez, são os pontos de experiência e transformação neural entre as fases. Nas fases teríamos uma gama de estados de consciências tidos como normais dentro de uma dada sociedade. Aqui teríamos a Estrutura de Turner, reforçada dentro dos ritos. As torções seriam momentos controlados pela sociedade, momentos evanescentes, mediando dois estados cognitivos da experiência, dois estados com configurações neurais relativamente duráveis. Este seria um momento liminar. Na medida em que ocorre uma torção dentro de um rito, ele exibe três estágios de transformação: discriminação da informação intrusiva, numa tentativa de encaixá-la sob o caminho neural em andamento. Na medida em que tal encaixe não é conseguido, há uma interrupção do fluxo de informações (quebra e crise, em Turner). Diferenciação de estruturas, visando acomodar a nova informação (revestimento) e finalmente reintegração da nova estrutura num equilíbrio. Mas é importante ressaltar que, na maioria das vezes, este processo é rápido e inconsciente, demandando um certo treinamento para que seja atingido um grau mínimo de consciência do mesmo, visando absorver as informações que surgem de tal estado.

Aqui temos outro papel importante, como em Turner, desempenhado pelos símbolos, ou como dito pelos autores, estímulos somaestéticos, orientadores e mesmo estimuladores de tais estados. Assim, reconhecer antigas conexões neurais, criar espaços livres onde novas informações possam surgir e assimilar estes novos caminhos da rede estrutural da consciência individual, além de fundir vários cérebros dentro da sociedade seriam os papeis desempenhados pelos ritos, através dos símbolos.

Resumindo, os símbolo servem como um ordenador da experiência, na medida em atraem e focalizam a atenção, modulam o jogo entre eventos no presente e no passado, e canalizam a experiência de acordo com nossos companheiros. Isto soa muito similar à Turner e Mary Douglas (1980). Mas há uma preocupação na teoria em ser estabelecido um equilíbrio entre liberdade individual e coesão do grupo. O símbolo convida à experiência por “atrair nossa atenção e por evocar múltiplas associações configuradas sobre eles como centrais” (Laughlin et al,. 1990:189). Expande os pensamentos e outras funções da consciência no ambiente cognitivo – rede neuronal – através de significados desenvolvidos no diálogo entre o processo intencional e o modelo estrutural de sensações que estão mediando o símbolo. Isto torna os símbolos polissêmicos (volto novamente à multivocalidade de Turner). Os significados se multiplicam na fusão contínua de informações que surgem na medida em o organismo explora seu ambiente cognitivo e responde com atos a eventos que emergem, vindos ou não do exterior, no seu aparelho sensitivo.

A ayahuasca (elaborada a partir do cozimento das plantas Psychotria viridis e Banisteriopsis caapi) teria um papel de potencializador dos estados mentais criados no ritual. Um dos seus princípios ativos a N,N-Dimetiltriptamina, possui uma estrutura química muito semelhante à seratonina, ativando os receptores deste hormônio na superfície celular dos neurônios. Além disso a Harmalina e Harmina, são inibidores da monoamioxidase, enzima que tem a função de controlar a seratonina, a dopamina e a norepinefrina, todas neurotransmissores. A ausência deste controlador, aliada à um estímulo na produção desencadeia uma hiperativação do córtex cerebral (Luz, 1996).

Tendo então todos estes elementos podemos prever que o aparelho sensitivo de um indivíduo se encontra operando numa velocidade acima do normal, onde as interações entre corpo, cérebro, mente, planos transcendentais e ambiente externo se fazem de forma muito marcante. As imagens seriam uma das formas pelas quais todos estes elementos estariam relacionados, seriam então a etapa onde tal indivíduo perceberia o que ocorre com ele e encaixaria esta percepção em um conjunto explicativo culturalmente significativo.

Além disso esta alteração intensa no estado de consciência permitiria que o caráter integrativo do rito como um todo facilitasse alterações fisiológicas, uma vez que o sistema formado teria uma coerência e uma coesão bastante forte. Assim, o simples fato de uma pessoa assentar as mãos sobre um ponto do corpo de outra pessoa desencadearia uma série de estímulos (em diversos planos) que poderiam levar a alterações fisiológicas e remissões de sintomas no caso de doenças. Não posso desconsiderar aqui a possibilidade de uma energia transpessoal, mas não possuo material suficiente para tratar deste assunto com a consideração que ele merece.

Vou finalizar utilizando as considerações de Winkelman (1982), de que a antropologia têm estudado fenômenos mágicos dentro de parâmetros racionais, psicológicos e sócio-culturais ocidentais, mas dificilmente considera eles como algo que pode ter uma base empírica (assim como os resultados que seus praticantes atribuem a eles). Contudo, as ligações fisiológicas entre Estados Alterados de Consciência e o processo de cura apoiam esta base empírica (Winkelman, 1992), o que reforça a importância de estudos nesta área.

Referências

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[1] Importante ressaltar que estrutura é definida como “a organização do sistema nervoso e outros sistemas somáticos, ou a porção destes sistemas a serviço o fenômeno sob discussão.” (Laughlin et al., 1990: 16)

[2] A visão dos autores de uma adaptação ótima do Homem depende tanto da liberdade de cognição de que um cérebro é capaz quanto da capacidade e habilidade do grupo de coordenar interesses.


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