CONGRESO VIRTUAL 2000

CIDADE PRESÉPIO EM TEMPOS DE PAIXÃO Patrimônio Cultural, Turismo e Religiosidade em Tiradentes

Autor: Oswaldo Giovannini Júnior


Imagem de Nosso Senhor dos Passos - 1722

Resumo:

Este trabalho pretende destacar aspectos do turismo e da concepção de patrimônio cultural que colocam em tela a interação entre cultura moderna e tradicional, onde o turista moderno consome parte do universo simbólico de um grupo tradicional com um "deslocamento de significado" e afetando o nativo em suas significações. Analisa o caso da cidade histórica de Tiradentes-MG, focando as cerimônias da Semana Santa, onde o encontro de turistas e nativos, gera uma experiência da religião marcada por tensões, combinações e inversões, entre referenciais "de dentro" e "de fora".
O conjunto simbólico em questão, festas, procissões e igrejas, ganha densidade e sentido na articulação entre conteúdo mítico, interpretação histórica e experiência estética, afirmando identidades e definindo relações. O caso da religiosidade dessa cidade histórica pode ser fértil para se pensar a ampliação do conceito de patrimônio, dentro de uma realidade turística e a necessidade de desencadear um processo educativo e de interpretação, no qual o antropólogo possui um papel de relevo.

Introdução

No dia 07 de agosto do presente, foi publicado no diário oficial do governo federal um decreto lei do Presidente da República, instituindo o “Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem o patrimônio cultural brasileiro”. Tal decreto, como afirmou o Ministro da Cultura, vem atender a uma “demanda histórica”, presente tanto nos debates acadêmicos sobre o conceito de patrimônio, quanto entre a própria população interessada. Inclusive, o texto da constituição federal de 1988, em seu artigo 216, já reconhecia a dupla natureza material e imaterial dos bens culturais, estabelecendo tanto o tombamento quanto o registro. Como o tombamento é um processo inadequado para a preservação de práticas culturais intangíveis e dinâmicas, necessita-se de “instrumentos de identificação, valorização e apoio que favoreçam a sua permanência”[1]. Se por um lado a instituição do registro vem garantir a ampliação do conceito de patrimônio cultural, o decreto presidencial pode proporcionar uma estrutura administrativa e financeira para uma política pública de cuidado com esses bens culturais.

            O debate em torno destas ações já conta alguns anos, como nos mostra o trabalho de vários intelectuais como Aloísio Magalhães, Gilberto Velho e Rita Amaral. Aloísio Magalhães, em 1989, em um artigo para a revista do IPHAN, já antecipava inclusive, discorrendo sobre as ações do antigo CNRC, as medidas de identificação, registro e indexação presentes no texto do decreto.[2]

Gilberto Velho, na mesma revista, questiona também sobre a ineficiência do tombamento para lidar com certos fatos culturais, “onde passado e presente estão indissoluvelmente associados”.[3] Sem desqualificar a atuação dos órgãos existentes e retomando as reflexões de Mário de Andrade, deve-se ampliar sua atuação permitindo o reconhecimento pela nação de sua própria complexidade.

            O referido decreto, então, vem oficialmente consagrar a ampliação do conceito que já é notório não só no meio acadêmico mas também na mídia em geral e nos debates entre cidadãos envolvidos, como já disse. Nessas menções feitas freqüentemente a esse patrimônio cultural ampliado, sejam as artes, os saberes, as celebrações, etc., costuma-se colocar em foco a relevância de sua preservação em virtude de dois motivos, a questão da identidade nacional, por um lado, num pensamento macrossocial, abrangendo a história da formação brasileira, e por outro lado, a nível micro, a preocupação com as manifestações culturais de grupos minoritários que se vêem constantemente ameaçadas pelo marcha da sociedade industrial moderna.

            Em carta ao Presidente, o Ministro da Cultura afirma que “a inscrição de um bem em um dos Livros de Registro terá sempre como referência sua relevância para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira, assim como sua continuidade histórica, tomada aqui no melhor sentido de tradição, isto é, de práticas culturais que são constantemente reiteradas, transformadas e atualizadas, mantendo para o grupo um vínculo do presente com o seu passado”.

            Enfim, a afirmação da identidade do povo brasileiro parece depender, segundo intelectuais e políticos, desde Mário de Andrade e Getúlio Vargas, da preservação e do cuidado dos bens culturais espalhados de forma heterogênea e complexa pelo território nacional. O trabalho de pesquisa e registro destes bens, que de certa forma já vem sendo realizado, se mostra volumoso e provavelmente será alvo de grande debate, uma vez que muitos interesses políticos e econômicos estarão em jogo, tanto a nível nacional quanto local, dentro das pequenas comunidades. O campo da cultura é complexo e polêmico, gerando dificuldades em estabelecer consenso nas definições dos registros e de conceitos relevantes. Basta olhar a história dos órgãos ligados à preservação para perceber as inumeráveis polêmicas que surgem em torno destas decisões.

            Rita Amaral, em artigo sobre o tombamento feito em 1990 pelo CONDEPHAAT-SP do terreiro de Candomblé Axé Ilê Obá, chamou a atenção para algo que deve ser considerado pelos projetos de proteção ao patrimônio: “levar em consideração o conjunto de valores culturais de um grupo, mesmo se eles não têm sido reconhecidos como tais pela história oficial.”[4]. O caso por ela documentado me parece bom para pensar o conceito de patrimônio investido de dinamismo, considerando que a tradição não é algo congelado, mas construída diariamente, sendo “abandonada, reinventada ou recuperada”. Se esses órgãos de defesa pretendem protegê-las, deve-se considerar primeiramente os processos particulares de cada manifestação, fazendo uma leitura de seus significados partindo de dentro do grupo, suas necessidades, seus valores, não permitindo que os interesses da sociedade mais ampla atropele os processos locais. Daí, a defesa desses bens deve garantir as condições para a realização da cultura em seu dinamismo e liberdade. Nas palavras de Rita Amaral, deve garantir “... minimamente a liberdade de escolha do próprio destino pelo grupo. E esta liberdade, sim, pode ser entendida com o verdadeiro patrimônio cultural”[5].

            No artigo 6, parágrafo 2, o decreto afirma que o Ministério da Cultura vai assegurar ao bem registrado sua “ampla divulgação e promoção”. É claro que ainda é cedo para saber o que querem dizer com ampla divulgação, mas certamente é pertinente chamar atenção para o problema da ameaça massificadora da sociedade moderna. Tal ameaça está presente tanto no processo de crescimento industrial de grandes centros, que atinge o campo pela exigência econômica, forçando o êxodo, esvaziando as pequenas cidades e arraiais, grandes depositários desta cultura de que se fala. Por outro lado, e é o que me interessa no presente, existe uma ameaça, igualmente preocupante, que se desenvolve por parte da indústria do turismo. Se por um lado o turismo tem condições de frear o êxodo e garantir a essas populações locais sua manutenção e a de suas tradições, por outro, expressa sua ambigüidade por deslocar grande número de pessoas, na maioria sem consciência ampla de preservação, que gera um processo de depredação, tanto dos bens materiais quanto imateriais, estes ainda mais frágeis e volúveis.

De certa forma o turismo coloca em movimento novos processos de inter-relações que exigem um esforço de adaptação, por parte de populações locais, que freqüentemente pode exceder as capacidades psíquicas das pessoas envolvidas. Se a industrialização e a massificação das grandes cidades geraram o perecimento de várias práticas culturais, preservadas desde o Império, por outro, muitas se mantiveram muito em função de seu isolamento. Tal isolamento, tem diminuído progressivamente, não em função do maior desenvolvimento industrial, mas em função do deslocamento das pessoas das metrópoles em suas excursões culturais. As mais longínquas grotas, praias e sertões do país estão em contato com as grandes cidades em função destes deslocamentos que aumentam cada vez mais. E ainda, boa parte dele, o chamado turismo cultural, ocorre justamente em função destes bens culturais que devem ser preservados. Daí, faz-se urgente medidas por parte dos órgãos oficiais, da população, dos intelectuais e artistas e dos empresários do setor.  Nesse sentido é necessário ampliar não só o conceito de patrimônio, mas também o de conscientização.

O Caso de Tiradentes

            Dentro deste debate insere-se minha pesquisa sobre as procissões da Semana Santa na cidade histórica de Tiradentes e o turismo que se inflama nesta época, muito em função desta manifestação religiosa. A descrição que se segue evidencia a importância de se cuidar destas práticas, dentro de uma realidade em que se insere um turismo cultural e também várias práticas de preservação do patrimônio histórico e cultural.

            O ponto alto das celebrações de Semana Santa em Tiradentes são as procissões, que somam 11 ou 12 num período de dezesseis dias[6]. Essas procissões são de grande importância simbólica para os nativos, ocorrendo diversas outras durante o ano, por motivo de outras festas. Para o turista também é importante, uma vez que, juntamente com os monumentos, é um evento esperado e procurado.

A seqüência de procissões e celebrações, em todas cidades católicas acompanham a ordem da narração do mito da Paixão, a começar pelo Domingo de Ramos, até a Ressurreição. No entanto, em Tiradentes a procissão dos Passos e do Encontro, que em todos os lugares se realiza na Quarta-feira Santa, ocorre duas semanas antes. Este fato, que tem origens históricas mais remotas, é justificado, pela tradição. Desde sua implantação, em 1722, é realizada nesta data e por isso não há motivo para mudar, segundo os organizadores da festa.

Clifford Geertz[7] entendeu a briga de galos em Bali, como um “comentário metassocial” sobre distribuições hierárquicas, mais que reforço e discriminação de status. Da mesma forma poderia entender as procissões não por uma função de classificação social e espacial, mas como apresentação de discursos sobre como as coisas estão sendo dispostas. As coisas a serem dispostas, em questão para esse trabalho, é o turista e o nativo. Colocando a procissão de Senhor dos Passos em contraposição à procissão do Senhor Morto que acontece na Sexta-feira da Paixão, ponto alto do feriado, pelas diferenças e semelhanças que apresentam, pode-se dizer que estão, dentro de um "sistema de comunicação", elaborando diferentes narrativas sobre como devem ser definidas as relações entre nativo e turista, a partir de sua inserção no ritual. Tal inserção dependerá do sentido dado ao objeto religioso, resultante da manipulação de referências significativas em vigor, história, arte e religião.

A partir dessas considerações podemos afirmar de antemão que a procissão do Senhor dos Passos traz uma narrativa em que predomina a visão de mundo nativa, ou pelo menos uma delas, e na procissão do Senhor Morto, durante o feriado, a narrativa local é transpassada de tal forma por elementos de fora que a estrutura do evento se modifica.

Percebe-se que a Festa do Senhor dos Passos, em que ocorrem na verdade três procissões, e que ainda se completa com as fases de preparação da Imagem, e do andor nos intervalos, é estruturada por pelo menos três elementos fundamentais: a contrição, marcada pela reclusão, pelo ritmo solene e pelo silêncio; o foco primordial na tradição, herdada dos antepassados; e a definição de espaços simbólicos.

A reclusão, no sentido de velar, encerrar, faz parte de alguns momentos importantes, como o sigiloso gesto de vestir a Imagem de Roca[8] que é velada na primeira procissão, a do Depósito[9], e os altares cobertos por um pano roxo. Essa atitude é importante para gerar um clima de mistério em torno da veneração, o que realça seu caráter sagrado. O ritmo, garantido pelos sinos das igrejas, que toca o mesmo dobrado de quando anuncia-se a morte de alguém, marca o andamento solene dos cortejos, chamando atenção para uma atitude de sofrimento e tristeza próprias de um funeral. O silêncio está presente desde o preceito de que não se pode falar durante a cerimônia até à pouca informação e divulgação da festa, que não chega principalmente ao turista. O silêncio é enfatizado em vários momentos, mostrando que é um elemento importante e que os outros dois convergem para ele.

A procissão é um ritual que, narrando um mito bíblico, superpõe, através de sua representação dramática, uma tradição vivida e definida localmente. Mais do que simplesmente falar da Paixão e morte do filho de Deus, o tiradentino, pela lembrança de seus antepassados e da herança cerimonial que deixaram, está vinculando-se à tradição, evocando e afirmando preceitos morais e uma visão do seu mundo social que serão fundamentais na ordenação de suas relações.

É importante consagrar, a cada ano, os gestos rituais que fazem as cerimônias, desde vestir a imagem longe dos olhos curiosos e a preparação de ervas aromáticas no andor, até a relação distanciada com o clero, mero funcionário da festa, assim como era no séc. 18. Nessas lembranças afirmam-se valores e aprendizados passados de pai para filho através de gestos palavras e exemplos de vida. Em algumas entrevistas confirmou-se como um valor social o costume de falar comedidamente. Esses valores que foram passados pelos pais e avós não eram à base de repressão forçada, mas através de uma conversa sutil e delicada, próprias de quem é contrito e silencia mais do que fala. Nessa evocação da tradição reafirma-se o silêncio, enfocando como um preceito importante na regulação do comportamento social.

O terceiro ponto que chama a atenção nas procissões é a definição de espaços nos rituais. Cada uma das pessoas ligadas diretamente na produção das cerimônias, tem a sua função e o seu lugar definido no cortejo, na maior parte das vezes definidos por herança.. Cada Irmandade tem o seu território, cada personagem, padre, coroinha, andor, carregadores de velas e lanternas, banda e coro, tem uma posição correta. Paralelamente, são formadas duas filas uniformes que acompanham o núcleo, formado por aqueles. Nelas as pessoas dispõem-se com mais liberdade, mas não aleatoriamente. Nota-se que alguns procuram caminhar em pontos mais ou menos definidos. As beatas costumam ir na frente, puxando a procissão, os mais devotos e emocionados em geral caminham junto ao andor e os mais relapsos e que não estão muito interessados em entrar na igreja, ou que gostam de ouvir a banda, sugestivamente podem vir a escolher os últimos lugares. Isso lembra Roberto da Mata[10], que anuncia as procissões no Brasil como rituais de "características conciliadoras”, com um núcleo hierarquizado seguido por todo o povo compondo as fileiras com certa margem de liberdade de disposição. Digo certa liberdade, porque apesar de poderem escolher pontos, não rigidamente definidos horizontalmente, transversalmente é impossível seu deslocamento durante a caminhada. Lembro-me que fui repreendido por passar de um lado a outro procurando melhores ângulos para minha filmadora. E ainda, creio que, por trás desse preceito, pode estar a idéia de que essas colunas, formadas pelo povo, são como que alicerces sobre os quais se ergue, simbolicamente, a autoridade da tradição e do sagrado. A regra mais importante é que as pessoas se disponham de tal maneira que não se rompa a uniformidade do cordão e que o ritmo não seja quebrado, caminhando andor e colunas em harmonia e equilíbrio. A simetria alcançada, somada às contorcidas ruelas por onde passa e ao contraste entre o escuro das roupas (luto) e o brilho das lanternas, assemelham-se demasiado às esculturas e pinturas barrocas com seus rococós e seus contrastes. É a representação ordenada e harmônica de uma sociedade no encontro de seus valores e sua identidade mediante a reverência absoluta à tradição e ao transcendente.

Um espaço constitutivo da procissão, que está presente particularmente em Tiradentes, e em outras cidades de realidade semelhante, como São João D'el Rei e Ouro Preto, é o espaço da platéia. Se o povo acompanha o cortejo formando colunas periféricas ordenadas, os turistas, que não se arriscam a penetrá-las, margeiam aleatoriamente, às vezes andando, às vezes parados aguardando em frente aos Passos[11], ao redor das praças por onde passa, ou próximos a bares e pousadas que cerram as portas em sinal de respeito. Mas essa disposição programada só ocorre no segundo dia quando já estão sabendo das celebrações, pois a procissão do Depósito é feita com tanto silêncio e mistério que os surpreende na rua, os quais, na maioria, estão mal informados. Alguns se espantam, outros se emocionam e fazem reverência, enquanto outros ficam ávidos por uma fotografia. Assim, ao turista é reservado um lugar, que não é desprezível, mas aparece como um componente vital do drama, o de espectador, que desperta no grupo uma vaidade importante para sua auto-afirmação.

Durante o feriado, semanas depois, a cidade recebe muito mais visitantes, que se misturam às celebrações e modificam o ambiente. A Sexta-feira da paixão, há alguns anos, e ainda hoje para alguns, era época de total abstinência e silêncio. Não se ligava rádio ou televisão, não se falava alto, nem abriam os bares, ninguém trabalhava e nem casa se varria. Até hoje tem muita gente que nem sai de casa nesse dia. As cerimônias começavam tarde da noite, o Descendimento da Cruz[12]  era feito dentro da igreja e o cortejo ganhava as ruas silenciosamente já por volta da meia-noite, tudo no maior respeito e contrição. Pelo que lembram os nativos, era ainda mais solene que a procissão dos Passos. Hoje, esta última parece ser a depositária mais importante desse respeito e lembrança da tradição e da fé. Antes da Semana Santa propriamente dita, muitos nativos contrastavam uma procissão a outra, dizendo que é completamente diferente e que o respeito e a tradição estão mesmo marcados é na festa dos Passos, sendo que na outra a quantidade de pessoas muda a configuração do ato. Isso evidencia que os acontecimentos de Sexta-feira não foram ocasionais, mas de certa forma são ritualizados, uma vez que previstos.

O feriado deste ano foi um dos mais concorridos de sua história, havia muita gente nas ruas, tanto de dia quanto de noite, e Sexta-feira foi culminante. Os preparativos da Imagem de Jesus morto e do esquife, foram feitos de dia, com a igreja apinhada de gente, cheia de turistas que disputavam curiosamente uma melhor visão do trabalho, que ao contrário da outra, não tinha nada de recluso. Um altar foi desvelado para se retirar a imagem, uma tumba foi aberta para firmar a cruz na nave da igreja, o mistério começava a ser quebrado e os bastidores do espetáculo migravam para o palco, se mostrando ao olhar atento de seu público.

O ritmo da cidade alterou-se completamente, turismo é sinônimo de agito e a rotina diária é completamente quebrada. Com isso, a atmosfera religiosa de contrição e silêncio fica parcialmente dissolvida e o sentido fervoroso do drama, que começa a ser representado desde cedo, contagia-se pelo sentido histórico, tendendo mais a um espetáculo cultural que de fé. É um dia de festa, brincadeiras e arte, entre um desses eventos incluía-se a procissão, como era declarado pelos turistas. Um casal discutia se iria à procissão, pois ele era católico e ela protestante, mas argumentavam que era um evento cultural e por isso deveriam ir. Acabaram chegando a um acordo, resolvendo "dar uma sapeada", como diziam, ao invés de acompanhar. Boa parte dos turistas "sapeavam", ou seja, entravam e saiam das filas do cortejo à sua vontade e com toda liberdade. Ao contrário dos espaços definidos na procissão dos Passos, as pessoas circulavam com desenvoltura e sem cerimônia.

A tradição de certa forma resiste ao assédio exagerado e desconexo do turista, com suas músicas, arranjos, imagens e figurinos bíblicos que somavam uns setenta personagens. No entanto, o ritmo, o mistério e o silêncio já tinham sido quebrados desde cedo. Na hora do Descendimento da Cruz as ruas em frente a igreja estavam lotadas de gente, mesmo assim, em seguida, a procissão se formou ordenadamente e começou sua caminhada, acompanhada pelo toque fúnebre da banda. Mas, na medida em que aproximava-se do centro, começavam a aparecer os carros na rua, os turistas nos bares e restaurantes abertos e mais abaixo na rua Direita uma multidão disputava espaços mais confortáveis para ver passar o "desfile". Nesse trecho, uma equipe de filmagem, que realizava um curta-metragem na cidade, produzido em associação entre pessoas da cidade e pessoas de Belo Horizonte, se preparava para uma "tomada", com a desenvoltura e o agito próprios de quem tem experiência em set. Começaram a filmar assim que a procissão apontou, pedindo que os transeuntes se retirassem da frente. Imagine o quadro, transeuntes entre uma procissão soleníssima e uma equipe de filmagem que não se sabia de quê. Um nativo, Rogério Nogueira, juiz dos Passos[13], se posicionava de fora da procissão escandalizado com a "falta de respeito" que presenciava. As primeiras pessoas passavam e entre elas, ao invés das beatas tradicionais, havia um cego que chamava atenção. Alguns minutos depois, esse suposto deficiente, passou com os óculos escuros na mão procurando a equipe. Além desse personagem novo, que a procissão não conhecia, inseriram um homem bêbado[14] que tropeçava nas pessoas posicionadas nas colunas.

A procissão segue toda "arrebentada", como dizem os nativos, fragmentada, sem compasso, desordenada, esquife para um lado, pessoas para outro. A ordem e o equilíbrio enfatizado na procissão dos Passos dá lugar à desorganização e ao inusitado. O espaço simbólico, antes tão definido, agora é disputado pelos de fora, que não se incomodam de entrar e sair, "sapeando" de acordo com suas próprias vontades. O nativo, fervoroso, fica de fora e observa, invertendo a posição com o turista, a ritualização de uma renovada realidade social, da qual já não tem mais tanto controle. Esse espaço simbólico certamente tem correspondência com espaços concretos disputados a cada dia entre os "de dentro" e os "de fora", desde espaços físicos, como moradia e comércio a espaços sociais de decisão e organização política. Mesmo nessa disputa simbólica o nativo mantém seu silêncio, retira-se do espetáculo para sua casa sem dizer palavra, anônimo, aquele que na outra festa era o filho de "seu" Nogueira, que ajudou a vestir o "santo" na noite soturna e carregou o andor pesado com piedade e satisfação, seguindo os passos calcados por seu pai e antepassados há quase trezentos anos.

Mas não é exatamente inversão, é mudança de discurso, é uma multiplicidade de falas, onde se inclui a de outros nativos que se relacionam com o evento de outros modos. Um dos organizadores dessa cerimônia me dizia, minutos antes, que se admirava ao ver tanta gente presente e se orgulhava pelo fato da cidade ser palco de uma oportunidade única dada ao turista. Argumentava que em São Paulo ou Rio de Janeiro eles não teriam condições de participar de um ato desses. Com ele seguem muitos outros, talvez admirando, talvez disputando espaço.

A procissão seguiu pelo corredor estreito que lhe sobra entre os carros e, na medida em que passou pelo Centro Cultural[15], que aguardou de portas fechadas, boa parte dos que acompanhavam se dispersaram, voltando-se para um festival de Jazz que se realizava neste local. Foi de lá que surtiu uma das manifestações mais interessantes. Ao final do canto de Verônica, na igreja do Rosário ali perto, que entoava "o plangente o vós omnes" ouviu-se gritos e aplausos que vinham do Centro Cultural. Consagrou-se assim o sentido puramente cultural e artístico do turista, o espetáculo de fé transformou-se em espetáculo comum, lugar de diversão e descontração. Mais uma vez lembro-me de Da Matta que contrapunha esses dois rituais, que aqui se completam, não sem conflito, representando em atos simbólicos uma realidade social marcada pela tensão de valores e comportamentos gestados em contextos sócio-culturais diferenciados.

Mas não só um jogo de falas, mas de falas e silêncios, onde o silêncio muitas vezes é que define relações e espaços, seja pelo mistério seja pela omissão. Há uma valorização ética do silêncio, representados na atitude contrita proclamada pela tradição, que permeiam as relações mais concretas da vida cotidiana, tanto entre os nativos como entre nativos e turistas, vividos como num jogo de mostrar e esconder.

O que se coloca, de fato, em questão é a manipulação dos bens simbólicos, que dependendo como as disputas se configurem podem decidir sobre o futuro desses símbolos e rituais que significam muito mais do que pretendiam aqueles que os esculpiram em seu tempo.

Conclusão

Enfim, o que eu gostaria de chamar atenção é para a necessidade de se interpretar melhor os ambientes em que os “homens de fora” circulam. No que se refere ao patrimônio cultural e ao turismo, é necessário uma interpretação e uma educação adequada para que o comportamento das pessoas não distoem de maneira agressiva do ambiente cultural e físico para onde se dirigem.

No caso das procissões bicentenárias de Tiradentes poderia destacar, entre outras opções, a valorização ritual e ética do silêncio e do mistério. Tais cerimônias são sustentadas, é claro, por um comportamento religioso, sem a experiência do sagrado que os reveste, estes rituais e festas mencionados não seriam realizados e muito da memória que eles representam se perderia.           Considero que, para o nativo, o silêncio e o mistério, estruturantes não só dos momentos solenes, mas de todo o ambiente que se forma dentro de um tempo sagrado, é um dos mais importantes instrumentos que o fiel se vale para experimentar o transcendente. Se é o silêncio e o mistério que por um lado trazem esse sentido do sagrado e por outro estabelece regras de comportamento, a presença “mal programada” de pessoas de fora, em massa, pode afetar drasticamente aquilo que sustenta a manifestação religiosa, o sentido do sagrado e também referências importantes a códigos de comportamento. Está assim, ao invés de preservar, depredando um bem que pode ser considerado patrimônio cultural.

            Então, o antropólogo tem um papel fundamental nesse processo de contato entre visões de mundo e comportamentos diferentes, decifrar códigos, interpretar espaços, comportamentos e rituais, além de contribuir com suas reflexões para as decisões sobre a proteção e o registro dos bens culturais mais fugidios. A participação do antropólogo nas discussões e decisões sobre o patrimônio não é nova, podendo citar vários nomes como Rita Amaral, Magnani, Gilberto Velho, entre outros. Uma vez que possui uma prática e um modo de pensar a cultura que muito tem a ver com os objetivos dos órgãos responsáveis. Como afirma Velho, o antropólogo possui a “experiência de lidar com o outro. O jogo de estranhamento e relativização pode ser um caminho fértil para captar a importância simbólica de manifestações que num primeiro momento não poderiam talvez ser enquadradas, de forma automática, nas fórmulas hoje existentes de defesa do patrimônio cultural da nação”[16]. Valoriza pois a observação participante e o exercício de interpretar o significado de rituais e ambientes, considerando-os dentro de seu contexto próprio. Segundo o autor, foi isto que deu possibilidade de realizar o tombamento do terreiro de Casa Branca em Salvador, quando se abriu um precedente importante nessas ações. Enfim, o papel do antropólogo é “tentar um esforço interpretativo, procurando estabelecer pontes entre diferentes códigos e sistemas de valores existentes em uma sociedade complexa e moderna. Estas pontes devem considerar, por um lado as instituições e por outro o turismo, necessitando estabelecer nesses dois contextos muitas pontes entre uma multiplicidade de atores.

Interpretar rituais, comportamentos, palavras, sons, etc., é interpretar todo o ambiente em que as pessoas se inserem. A interpretação do ambiente é fundamental para que o sujeito possa circular de forma mais livre e respeitadora, por isso não pode ficar restrita no trabalho do pesquisador e dos órgãos de preservação, mas deve se estender às comunidades e aos turistas. Nesse sentido um trabalho amplo de educação é muito importante. Interpretar não é traduzir só para si, mas estender aos outros, estabelecendo pontes de comunicações menos ruidosas. Concordando com Stela Murta, é a “arte de apresentar lugares e objetos às pessoas; a interpretação é elemento essencial à conservação e gerenciamento do patrimônio, uma vez que orienta o fluxo de visitantes visando também a proteção do objeto da visita...O objetivo geral é portanto, aumentar a compreensão pública do tema ou do ambiente, induzindo a atitudes de respeito e proteção.”[17]

Bibliografia

AMARAL, Rita – O tombamento de um terreiro de candomblé em São Paulo. Comunicações do ISER, no. 41, ISER, R.J., 1991

DA MATTA, Roberto – Carnavais Malandros e Heróis. R.J., 1983

DECRETO NO. 3.551, 04/08/2000 - Diário Oficial – Seção 1 – Imprensa Nacional, Brasília, 2000

GEERTZ, Clifford – A Interpretação das Culturas. Zahar, R.J. 1978

MAGALHÃES, Aloísio – Bens Culturais: instrumentos para um desenvolvimento harmonioso. Em: Revista IPHAN, n0. 20, 1984

MURTA, Stela Maris – Interpretação do Patrimônio para o Turismo Sustentado: um Guia. Edição Sebrae, B.H.., 1995

VELHO, Gilberto – Antropologia e Patrimônio Cultural. Em: Revista IPHAN, n0. 20, 1984

WEFFORT, Francisco – Carta ao Presidente da República, Brasília, 2000 – IPHAN, Tiradentes

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Oswaldo Giovannini Júnior - Mestrando

Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião – Universidade Federal de Juiz de Fora – M.G.

Antropologia da Religião


[1] WEFFORT, Francisco - 2000

[2] MAGALHÃES, Aloísio -  1984, p. 40

[3] VELHO, Gilberto – 1984, p. 38

[4] AMARAL, Rita - 1991

[5] IDEM

[6] Estas são as procissões em sua seqüência: Procissão do Depósito da Imagem de Senhor dos Passos, Rasoura, Procissão do Senhor dos Passos e do Encontro com Nossa Senhora, Depósito da Imagem de Nossa Senhora das Dores; Procissão de Nossa Senhora das Dores; Domingo de Ramos; Monte das Oliveiras; Prisão de Jesus; Via-Sacra; Procissão do Senhor Morto e procissão da Ressurreição. Poderia incluir também o Translado do Santíssimo que não ganha as ruas, é realizada dentro da Igreja, mas não deixa de haver o cortejo.

[7] GEERTZ, Clifford – 1978, p. 317

[8] As imagens de roca, também chamadas santos de roca, são imagens feitas de madeira, com os membros articulados, permitindo serem vestidos com túnicas de pano; suas cabeças, em geral, são cobertas por cabelos naturais.

[9] Procissão do Depósito: realizada no dia anterior à procissão principal, consiste em transportar a imagem até outra igreja, no caso a Igreja de Nossa Senhora do Carmo, de onde partirá em direção à Matriz.

[10] DA MATTA, Roberto – 1983, p. 51

[11] Passos são pequenas construções espalhadas pela cidade, permanecem fechadas durante o ano, abrindo somente para as celebrações da Semana Santa, simbolizando os passos de Jesus rumo ao Calvário.

[12] Cerimônia realizada na frente do adro da Matriz, onde a Imagem articulada de Jesus é retirada da cruz e colocada no esquife, sob o sermão do sacerdote, para em seguida iniciar a procissão do Senhor Morto.

[13] Juizes e Juizas são os responsáveis pela organização da festa.

[14] Segundo relato de Olinto Rodrigues em artigo publicado pelo jornal "Inconfidências"

[15] Fundado há poucos anos para realizar eventos artístico-culturais destinados ao público em geral e para conferências e simpósios. Tem o nome de Yves Alves em homenagem ao diretor da Rede Globo já falecido; tem ligação com a Fundação Roberto Marinho.

[16] VELHO, Gilberto – op.cit

[17] MURTA, Stela Maris e GOODEY, Brian – 1995, p. 20.


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