Etnia, Religião e Política : Relações e deslocamento de fronteiras

Valdir Pedde

Doutorando em Antropologia Social

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Introdução

Nesse trabalho, buscarei fazer algumas análises a partir de uma história de vida. A técnica de pesquisa baseada em histórias de vida possui uma ampla gama de adeptos, sobretudo nas Ciências Sociais. O uso desta técnica de pesquisa se torna possível pelo fato consciente de que o dever das Ciências Sociais não é primeiramente classificar, mas compreender o fenômeno social. Por outro lado, não se trata do descortinamento de uma psicologia intimista do entrevistado, mas “de uma escavação no microcosmo para nele entrever o macrocosmo” (Cipriani, 1988 : 122). Contudo, é preciso destacar que esta metodologia de pesquisa obedece, no presente trabalho mais uma função exploratória do que analítica. Em outras palavras, a história de vida constitui-se um excelente meio de entrar no tema e permitir o afloramento de questões essenciais dentro do tema em pesquisa. Portanto, nossa intenção é permitir que a história de vida suscite questões interessantes de serem aprofundadas, e não de possibilitar tipologias e construção de alguma teoria (Bertaux,  s/d).

Essa pesquisa tem como objetivo ingressar dentro de um tema que intersecta três áreas de estudo: etnia, religião e política. Trata-se de uma mistura deveras interessante. Entendo o presente estudo como introdutório e exploratório.

Este trabalho desdobra-se em dois principais momentos. No primeiro, (re)tomo aquilo que considero os principais pontos da trajetória de vida do entrevistado e coloco-os de uma forma mais cronológica. Na segunda parte, trabalho com três hipóteses interpretativas que, em maior ou menor medida, dão conta das três áreas temáticas. Sem querer adiantar mais, vamos ao texto.

1 - Sucinto apanhado da história de vida de nosso protagonista

Inicialmente, gostaria de (re)contar um pouco da trajetória de Dimitri[1]. Penso que, com isso, retomo os principais aspectos apontados pelo entrevistado como relevantes na sua trajetória de vida e na confluência da religião, da política e da etnia.

Dimitri nasceu em São Gabriel. Seu pai era um militar do exército. Aos 19 anos, chegou em Porto Alegre para estudar e trabalhar. Na escola, engajou-se no movimento estudantil secundarista, mais especificamente na União Gaúcha de Estudantes – UGEs. Nesta época, empregou-se na editora da Livraria do Globo, onde foi aprendiz de impressor gráfico. Mais tarde, trabalhou em empresas metalúrgicas, onde conheceu e tomou parte do movimento sindical na década de 80. Participou ativamente na organização do PT ao lado de outros sindicalistas, como Paulo Paim, hoje, deputado federal.

Mais tarde, prestou concurso e foi aprovado como funcionário da Rede Ferroviária Federal. Dentro da empresa ferroviária, integrou-se ao movimento sindical, mas na forma de oposição ao sindicato existente. Naquele momento, o sindicato dos ferroviários era coordenado por pessoas não ligadas à CUT e ao PT. Mesmo sem o aval do sindicato, juntamente com outros funcionários, organizou greves por melhores condições de trabalho e salário. Na segunda tentativa de eleger-se para a liderança do sindicato, a chapa de oposição foi eleita para presidir o sindicato dos ferroviários. Dimitri, no entanto, não aceitou fazer parte da diretoria. Sua vida matrimonial e familiar estava em crise, devido a suas constantes ausências.

Como participante da CUT e por recomendação desta, sendo negro, Dimitri foi convidado e tomou parte de discussões sobre preconceito racial promovidos pela Central Sindical. Engajou-se mais profundamente nesse tema. A partir desse vínculo, ele foi conduzido para a diretoria do CENARAB (Centro Nacional dos Religiosos Afro-Brasileiros, que mais tarde alterou seu nome para Centro Nacional de Articulação e Resistência Afro-Brasiliera, sem, no entanto, mudar sua sigla). Dimitri tornou-se vice-presidente da instituição.

"O CENARAB, apesar de ser uma entidade das religiões afro, era também uma entidade do Movimento Negro. Basta dizer que a gente teve uma participação bastante grande no Primeiro Encontro de Entidades Negras, que aconteceu em 1990, em São Paulo. Esse encontro teve a participação de 10 mil militantes do Movimento Negro do Brasil todo" (Dimitri).

Este também foi o período mais “conturbado” de sua trajetória. Por volta de 1990, foi demitido da Rede Ferroviária Federal e separou-se de sua esposa. Entrou em depressão, perdendo-se no alcoolismo e iniciando o uso de cocaína. Em virtude de sua participação no CENARAB, e por estímulo de muitos companheiros dessa organização, deixou-se aprontar como babalorixá no ano de 1991. Neste mesmo ano foi convidado a participar do governo de Tarso Genro, como assessor para assuntos de cultura negra em Porto Alegre. Diminuiu o uso de drogas em virtude do trabalho como assessor. Trabalhou como articulador para políticas da cultura negra em Porto Alegre entre 1992 e 1996.

"Eu fui escolhido para assessorar o Tarso Genro na assessoria de políticas públicas para a comunidade negra. A partir daí, várias atividades foram realizadas, tendo como ponto de vista o resgate da cultura afro-brasileira, mas também de preservação e valorização das culturas negras, como o Carnaval, a música negra, a dança, a capoeira. Essa assessoria articulava todos esses segmentos: de música, de dança, das religiões afro, da cultura negra como um todo" (Dimitri).

Dentro do CENARAB, ainda, encontrou grande visibilidade pública, participando da organização de um seminário dentro da ECO 92 no Rio de Janeiro. Liderou movimentos para aumentar a visibilidade das religiões afro, tendo auxiliado na organização da festa de Ogum, ocorrida naquele evento.

"Este era um evento que reunia em torno de cerca de trinta mil religiosos aqui próximo ao Gasômetro. Ele tinha a intenção de resgatar a visão ecológica da cidade com o rio e do orixá Ogum com o rio. Isso acontecia sempre no mês de dezembro, próximo ao dia 8 de dezembro. Este é o dia em que os terreiros de religião festejam, comemoram, o orixá Ogum" (Dimitri).

Finda a gestão de Tarso Genro, como sua assessoria era cargo de confiança, colocou-a à disposição. Ficou sem emprego e passou a aumentar seu consumo de drogas. A saída da prefeitura conduziu Dimitri a um certo ostracismo. Perdeu praticamente todas as possibilidades de manter uma visibilidade política, além de encontrar-se em uma situação financeira difícil.

Diante do sofrimento, voltou-se à religião afro na expectativa de encontrar uma saída, um rumo ou um sentido para sua existência. Não encontrando respostas para sua situação, viveu uma vida desregrada e com um acentuado consumo de drogas. Nessa situação, tanto a política quanto a religião afro perderam a plausibilidade para dar um sentido ao seu mundo.

"Então, eu comecei a procurar explicação para essa situação. Como é que aconteceram essas coisas todas? Fui buscar essas explicações do ponto de vista espiritual. Comecei, através de reflexões, através de consultas aos búzios, consulta aos oráculos, consulta às entidades, aquelas entidades que eu cultuava e tudo, e eu comecei a ver que ali estava o motivo desse fracasso do ponto de vista profissional, político e afetivo. Então, eu acabei entrando num desespero muito grande. Me angustiei profundamente com isso e procurava um apoio espiritual nas entidades do culto afro-brasileiro, mas a resposta não vinha. Foi aí que eu comecei a questionar: Puxa! Mas eu tô servindo há tanto tempo esses espíritos. Tô servindo há tanto tempo, já quase vinte anos servindo aos espíritos, servindo aos Orixás, servindo aos caboclos, tudo. Mas a minha vida tava dando prá trás. Depois de ter chegado a um estágio de grande visibilidade pública, de prestígio, próximo ao poder, porque eu era assessor do prefeito, eu vi tudo cair por terra. Fiquei na rua da amargura. Daí eu comecei a pensar: pô, mas que poder têm esses orixás? que poder tem essa religião? Por que eu, um servo, um seguidor, hoje, estou nessa situação? Ai eu comecei a questionar. E fui buscar essa resposta do ponto de vista espiritual e não consegui. Nesse desespero grande, as facilidades começam. Aí eu comecei a beber muito, entrei no meu fundo do poço. Comecei a beber, tive contato com drogas, usei drogas e acabei me endividando, chegando ao ponto de pensar em suicídio. Mas aí, para honra e glória de nosso Senhor Jesus Cristo, eu conheci Jesus. Eu tinha tentado o suicídio depois de usar mais de 20 gr. de cocaína. Eu quase entrei em overdose, mas, naquele momento em que eu senti que eu ia morrer, que eu disse: Jesus! Foi quando eu me lembrei em dizer o nome de Jesus" (Dimitri).

Após sentir-se mal com o ingestão de drogas, e a partir de sua crise de sentido, Dimitri encontrou a IURD. Esse “encontro” deu-se inicialmente a partir de programas televisivos, os quais o impulsionam a participar de cultos nessa igreja. Após a experiência da conversão, empreendeu uma luta contra as drogas, tendo várias recaídas, mas finalmente “libertou-se” da dependência do uso de drogas.

"A partir daquele momento, eu comecei a ter uma outra visão. Comecei a ver a luz no fundo do túnel. Bom, a minha vida ainda tem uma salvação. Eu não tenho mais um emprego, não tenho mais minha família, não tenho mais um emprego federal, mas eu tenho capacidade, eu tenho inteligência, eu tenho braço, tenho perna, posso trabalhar, posso ir à luta. Posso construir o meu caminho. A partir daí, eu consegui fazer isso, e, hoje, já fazem quatro anos que eu estou na Igreja Universal. Claro, a vida não é um mar de rosas. A gente tem que lutar. Mas eu tenho conseguido, conseguido através do trabalho autônomo que eu exerço: sou corretor de seguros, sou comunicador de rádio também. Então eu tenho conseguido buscar vitórias e as coisas têm começado a acontecer na minha vida. Claro, com muita luta. Mas sempre que surgem as dificuldades, vem a certeza no meu coração que Jesus vai me dar a vitória" (Dimitri).

Dimitri se engajou como evangelista na IURD, sobretudo direcionando seus esforços aos drogaditos. Saiu do PT. Sua saída se deveu fundamentalmente a duas razões. Elas foram expressas assim pelo entrevistado:

"A minha razão para a saída do PT é porque eu deixei de acreditar no PT. Primeiro, a partir do meu ponto de vista pessoal. Foi na minha convivência com o PT que eu conheci as drogas[2]. Isso é uma coisa que poucas pessoas sabem, mas a grande parte da militância do PT usa drogas. Existe uma certa liberdade para isso. Não que o partido pregue, não é isso. Mas os militantes do PT, dentro de sua rebeldia e da sua postura um pouco mais radical, também não sei por que, é um fenômeno que tem, mas usam, né? Usam, usam muito, a juventude principalmente. E foi lá, na minha convivência, lá que eu conheci. Conheci, porque eu vi isso como sendo exercido de uma forma um tanto liberal, bastante aberta, diferente de outros segmentos da sociedade. Esse foi um dos grandes motivos. Como naquele núcleo de pessoas tinha um grande número de pessoas usuárias de drogas, e eu precisava me afastar disso, eu disse: eu não quero mais esse lugar, não quero mais participar de atividades nesse lugar” (...).

"A segunda razão foi política, e considero a mais importante. Eu vejo o PT, hoje, com um bonito discurso, um discurso muito forte, um poder de mobilização muito grande, mas uma prática totalmente contraditória. O discurso é um, mas a prática é outra. Eu vejo o PT, hoje, muito afastado das políticas sociais, que são as coisas que eu defendo muito. Falta a inserção dos excluídos da sociedade, no trabalho, nos bens e serviços, no acesso à moradia. Vejo o PT  muito distanciado disso. O PT tem uma mídia muito forte. Tem um discurso muito envolvente também, mas, na verdade, ele não transforma a sociedade. Não vejo mais o PT como alternativa. Taí o exemplo dos governos do PT. No início, foi muito bom, mas o governo do Estado, hoje, a gente sabe como está. O funcionalismo público tá numa situação difícil. Aumenta cada vez mais a população de rua. A insegurança aumenta cada vez mais na cidade. O PT não trouxe uma resposta para isso" (Dimitri).

Apesar de sua saída do PT, Dimitri continuou inserido no Movimento Negro, creio que em parte devido a sua inserção dentro do PDT.

"Hoje, eu sou o secretário de movimentos sociais do PDT. Tenho tido uma articulação com o movimento da juventude, o movimento sindical, movimento de negros, movimento de mulheres, ecológico, onde a gente luta por isso. Primeiro, para a defesa do patrimônio público e das empresas estatais, e, segundo, políticas de geração de renda e políticas sociais, para tirar as pessoas que estão na marginalidade, a fim de incorporar essas pessoas na sociedade para terem uma vida decente, de trabalho, de família. É isso que me encanta, hoje, no PDT" (Dimitri).

Com sua entrada na IURD, ele não participa mais de movimentos negros com forte conexão com religiões afro. A razão é evidente.

"As pessoas sabem da minha militância, sabem das minhas atividades, tanto do ponto de vista profissional como do ponto de vista político. É lógico que as pessoas do Movimento Negro, basicamente, elas têm alguma resistência em me aceitar enquanto evangélico. Não é muito fácil isso, até porque as igrejas evangélicas combatem muito os cultos aos orixás, identificam muito, até com seu fundo de verdade, o culto aos elementos sobrenaturais como culto aos demônios. Eu, particularmente, que já estive no outro lado, eu identifico, não apenas identifico, hoje, eu tenho certeza que esse tipo de culto é um tipo de culto ao demônio. Basta a gente fazer um trabalho de pesquisa ou de observação. Basicamente, todas as pessoas ligadas aos espíritos, às entidades sobrenaturais, elas, basicamente, acabam morrendo por doenças incuráveis, tipo câncer, diabete, AIDS e também têm suas famílias desestruturadas, muitas vezes pelo vício de alcoolismo ou vício de drogas. E isto eu posso dizer com toda a certeza, que não é a atuação de um espírito que venha de Deus, porque o espírito de Deus é um espírito de vida com abundância. Essa é a atuação do espírito de Deus. Então, a partir do momento em que tem todas essas referências de desestruturação da família e de problemas de doenças, porque quem é de Deus, eu vejo assim, quem é filho de Deus tem que ter um corpo saudável. Porque Deus é que criou toda essa maravilha: a terra, os céus, criou a vida neste planeta. Então, tem que ter vida" (Dimitri).

Atualmente, Dimitri, está militando no movimento Unegro[3] -União de Negros pela igualdade - mas diz estar saindo. Uma das questões mais interessantes foi que Dimitri disse pretender formar um grupo de negros a partir de igrejas evangélicas. Já entrou em contato com um pastor de uma outra denominação, o qual também é negro. Não se sabe se conseguirá realizar seu intento, mas seria muito instigante para um pesquisador acompanhar esse grupo, se realmente vier a se formar.

2 - Hipóteses interpretativas a partir da história de vida

Gostaria de fazer três inferências interpretativas a partir dos relatos do entrevistado[4] (entrevistas  em anexo). Seguirá na direção de uma análise macro para a micro. Como primeira inferência, sustento a possibilidade de compreender a trajetória de Dimitri dentro de um contexto que é maior que o próprio sujeito empírico. Assim, a primeira hipótese é a de que o sujeito em questão tenha sofrido uma transformação identitária, que transcende apenas uma crise pessoal. Parece tratar-se de uma síndrome[5] que muitos ativistas experimentaram, especialmente políticos (Burity, 1997). A segunda hipótese, ligada à anterior, é questionar se não estamos diante da hipótese de que a política perdeu sua plausibilidade para a sustentação de identidade. Este fenômeno seria análogo ao ocorrido com a religião, pelo menos se tomarmos como referência aqueles teóricos da secularização que estudavam a religião cristã nas décadas de 1950 e 1960[6]? Uma última hipótese, desenvolvida no ponto 2.3, diz respeito à sua permanência no movimento negro, apesar de seu afastamento das religiões afro. Como compreender este fenômeno?

2.1 - Reconfiguração identitária

A primeira hipótese é a de um trânsito de uma identidade coletiva para a disseminativa. Esta tese é defendida pelo cientista político Juanildo Burity (1997). Para chegar a esta tese, Burity procura analisar a construção da identidade na modernidade, bem como perguntar-se sobre o que seria exatamente a propalada asserção de que vivemos uma época de constituição de novas identidades. Para o autor, essa nova identidade é desdobrada em três pontos.

Primeiro: o novo, enquanto tal, está, na verdade, enquadrada pelo olhar do observador. Este enquadramento do olhar sobre a identidade pode estar percebendo o novo através da base analítica de uma separação do que seja o estranho/familiar, ou do teorizado/teorizável.  A novidade colocar-se-ia, portanto, sobre o que parece estranho e ainda por teorizar. Mas Burity recusa tal base analítica. Para ele, o novo não é algo etéreo, mas a ele se acrescenta as “velhas” identidades. O novo, portanto, não seria sinônimo de novidade apenas, mas uma identidade que está em busca de um novo horizonte. Em outras palavras, a nova identidade sempre esteve , como uma possibilidade, Por isso, o novo nem sempre anuncia o inusitado. “O novo pode ser o mais antigo, o mais irritante, o desde há muito aspirado” (Burity, 1997: 28).

A segunda questão levantada pelo pesquisador é que as novas identidades testemunham um cansaço com os grandes projetos, as meta-narrativas, com o adiamento do prazer, com a negação das emoções como elemento “intrínseco às experiências da subjetividade da comunidade” (Burity, 1997: 28).

A terceira questão, relaciona-se às duas precedentes, sendo a que, nesse momento, já enquadrada teoricamente, mais nos interessa. Para este pensador, é preciso distinguir, nestas novas identidades, uma “dimensão de asserção coletiva e uma dimensão disseminativa” (Burity, 1997: 30). O que vem a ser isso?

A primeira dimensão aponta para identidades ligadas a “projetos” de pessoas que, por sua vez, estão conectadas a movimentos que têm o seu foco centrado no que ele chama de política de identidade[7]. A segunda dimensão consiste em modificações de identidades experimentadas por sujeitos que pode levá-los para uma inserção parcial em grupos. Burity chama a atenção para o fato de que existem transformações identitárias tanto ao nível grupal quanto individual. “O trânsito entre as duas dimensões está sempre em aberto” (Burity, 1997: 30). Essas duas dimensões se intercambiam de forma que

"a dimensão disseminativa detém-se por algum tempo, o suficiente para produzir uma identidade coletiva ou para engrossar as fileiras de outra(s) já existentes. Por sua vez, frustrações, insatisfações ou crises podem acometer participantes dos novos movimentos sociais (culturais ou sociais) - como efetivamente vem ocorrendo desde inícios dos anos 90 - lançando-os no campo disseminativo em busca de novos referenciais, projetos e estratégias de construção do eu/nós" (Burity, 1997: 31).

Este parece ser o caso de nosso entrevistado. Nós podemos inferir esta recomposição identitária a partir do que Dimitri relata sobre sua atuação sindical e no PT.

"Eu tinha uma simpatia com o PT, pois, como eu participava muito do movimento sindical e como o PT nasceu desse movimento, isso me aproximou do PT. Ele sempre foi um partido que lutou por melhores salários, melhores condições de trabalho, políticas sociais, políticas que pudessem incluir as pessoas excluídas da sociedade, desempregados, aposentados. Isto era uma coisa que eu sempre defendi dentro da minha categoria de trabalho. No início do PT, ele tinha isso muito forte. As próprias greves gerais, quando a CUT chamava as greves, o PT apoiava. Isso ai me encantou no PT. Principalmente essa coisa, as lutas por melhores salários e melhores condições de trabalho e também por políticas sociais. Isso me atraía no PT".

De alguma forma, este projeto inicial do PT, no entender de Dimitri, não se realiza mais, ou ao menos enfraqueceu deveras. Justamente o que o encantava, em sua percepção, esvaiu-se: “políticas que pudessem incluir as pessoas excluídas (...) políticas sociais”. Houve, assim, a necessidade de uma recomposição de seu mundo simbólico-ideológico. Mais adiante, voltaremos a esta questão. No ponto 2.3, retomamos esta discussão da reconstituição identitária, sob o enfoque dos três eixos temáticos que norteiam esse trabalho.

Outra questão passível de ser assinalada é, se é correto pensar com Burity que as novas identidades ancoram-se sobre as antigas, talvez seja possível, detectar, nas colocações de Dimitri, algo que nos faça perceber a emergência dessa identidade ideológica coletiva. Quando o entrevistado foi perguntado sobre se ele teria interesse em tornar-se pastor, ele respondeu:

"Com certeza. Eu, psicologicamente e espiritualmente, eu estou me preparando para isso. Não sei quando vai ser isso. Vai ser no momento que o Espírito Santo me tocar, mas é claro que eu teria muito prazer e me sentiria muito honrado o dia em que o Espírito Santo me escolher para ser pregador da Palavra. E a coisa que mais gostaria de fazer é ir para meu continente de origem. Se eu vier a [me] tornar um pastor, eu vou orar para pedir a Deus que ele me mande lá para a África. Até porque a gente vê pela TV e pelos jornais aquela miséria que é o continente africano, aquelas situações de guerras, de doenças, de epidemias. Então, eu gostaria que Jesus me desse de presente isso: ir para o continente africano ou para um lugar no Brasil que realmente necessitasse ouvir a palavra".

Creio que duas questões se sobressaem. A primeira é que Dimitri gostaria de voltar à cena pública, mas agora reorientado identitariamente. Agora, o seu retorno ao mundo público seria como pastor. Essa característica de liderar, estar à frente, fazer algo de cunho público, é bastante perceptível na trajetória de Dimitri. O segundo aspecto é que, na sua resposta, emerge todo o aprendizado étnico e coletivista (agora, quem sabe?, transformado em solidariedade). Sua vontade é “ir para o meu continente de origem”, pois é lá que se encontram as situações de miséria que o sensibilizam. Emerge daí toda sua identificação com a luta étnica, que, como expressa na entrevista, é mais do que apenas anti-racista. Trata-se de uma luta por inserção dos marginalizados na sociedade.

"O que me motiva a permanecer dentro do Movimento Negro é lutar pelos direitos humanos. Até um determinado momento da minha vida, eu era um militante anti-racista. Quando eu estava só no Movimento Negro, eu militava apenas com essa concepção: de lutar contra o racismo. A partir do momento em que eu fui tendo interlocuções com outros segmentos com outros setores, fui convivendo com outro tipo de pessoas. Eu comecei a ver que era muito mais importante nós lutarmos por qualidade de vida, quer dizer, não que seja mais importante que o racismo, mas seria muito mais amplo lutar por melhor qualidade de vida e por direitos humanos, que o direito de qualquer pessoa fosse respeitada, independente da sua cor de pele" (Dimitri).

Quando se diz que as novas identidades estão ancoradas nas antigas, isso não quer dizer que o percurso de todas as pessoas de identidade coletivista se exprimiria dessa forma, tomando o mesmo percurso. Contudo, creio que podemos dizer que parte daquilo que Dimitri sempre achou importante comparece novamente na sua identidade reconfigurada. A novidade encontra-se expressa em uma “nova” linguagem. Em lugar de abandonar a política, insere-se em um partido com uma ideologia menos totalizante e utopista, o PDT. Sua participação na IURD lhe permite expressar, sob uma outra linguagem, um sentido totalizante da existência. Sai do PT, mas continua inserido no Movimento Negro. Parte da explicação para isso é sua filiação ao PDT. Esse partido aproveitou seus conhecimentos como assessor de Tarso e o colocou como responsável pela área de movimentos sociais. Com isso, não seria politicamente correto separar-se dos movimentos negros. Entretanto, permanece a questão de sua inserção em um partido político. Procuraremos, no ponto 2.3, um melhor significado para sua permanência neste movimento social.

2.2 - Deixou a política de ter plausibilidade?

Conjuga-se a este processo de recomposição de identidade grupal e individual a segunda hipótese interpretativa, que também podemos observar no relato acima colocado. A necessidade dessa recomposição de identidade nos questiona. Hodiernamente há alguma possibilidade de a política[8] conseguir dar uma plausibilidade para a sustentação da identidade? Estamos diante da perda da plausibilidade do político[9], necessitando de uma outra linguagem?  Estas questões merecem ser aqui aprofundadas.

Uma primeira aproximação ao tema nos é oferecida por Patrick Michel (1997). De forma sintética, podemos dizer que este pesquisador sustenta sua argumentação na análise de que os regimes políticos da modernidade (comunismo e democracia/capitalismo) foram pólos ideológicos[10]. A ideologia deve ser compreendida como um sistema de crença, por ser (re)organizadora de universos de sentido. Michel concebe o sagrado como expressão de uma totalidade na religião. Daí que o crer é também uma expressão identitária, na medida em que ordena a memória, iniciando uma reorganização ou reconstrução do mundo daquele que crê. Mas o crer não consiste em uma prerrogativa exclusiva da religião. É neste ponto que se encontram a política e a religião. As duas pertencem a uma matriz comum, qual seja, a de organização de sentido. Assim, a política enquanto fundamentada no eixo Leste-Oste (capitalismo/comunismo), possuía um atributo mais transcendente: o de controle e organização de uma realidade empírica. A política era teleológica. Quando, entretanto, ocorre o desmoronamento do comunismo, um dos pólos de tensão da ideologia enfraquece. Disto decorre a desideologização da política, a perda de seus referenciais ideológicos e, portanto, de valores. Neste sentido, o autor entende que, hoje, ocorre com a política justamente o seu desencatamento. Por outro lado, a religião, que permaneceu arraigada à crença de um sentido para a mundo e para a história, oferece uma possibilidade de reideologização da política. Em outras palavras: a modernidade definitivamente avançou com seu processo de secularização, deslocando a religião para uma esfera marginal da sociedade. No momento em que a política não possue mais nenhum centro ideológico como expressão de poder, ela alcança pouca expressão teleológica. A religião, por outro lado, em virtude da referida matriz comum, oferece um espaço de linguagem para a política desencantada. Assim, os movimentos de renovação religiosa seriam menos um espaço de retorno à fé e mais um espaço de encontro com uma identidade, mediatizada pela teleologia religiosa. De outra forma: para este autor, não existe uma ruptura intransponível entre o campo da política (tendo o ideológico com seu referente) e da religião. A aceitação de uma matriz comum destes dois campos nos conduz a percebê-los como um pêndulo que transita de um lado ao outro, numa constante troca de forças. "Neste sentido, o momento decisivo é este, onde, sob o profundo esgotamento da política, está-se passando a uma fase de recarga da política pelo religioso, fase que faz seguir a uma religitimação do religioso por uma política pervertida" (Michel, 1997: 15)[11].

É possível observar que tanto Burity quanto Michel fundamentam suas reflexões sobre a questão de recomposição ou trânsito de identidades. Ambos estruturam seus textos baseando-se no argumento de que sujeitos e grupos sedimentam suas identidades sobre alguma teleologia, sobre um sistema de sentido.

De alguma forma, parece ser esta a percepção de Dimitri. Quando perguntado sobre as razões de sua saída do PT, a primeira resposta, a mais rápida e instintiva foi dizer: “a minha razão para a saída do PT é porque eu deixei de acreditar no PT". Essa falta de crença foi desdobrada por ele em dois patamares: um moral e outro ideológico. Na questão moral, ele apontou: "Foi na minha convivência com o PT que eu conheci as drogas". Ideologicamente, ele sublinhou:

"A segunda razão foi política e a considero a mais importante. Eu vejo o PT, hoje, com um bonito discurso, (...) mas uma prática totalmente contraditória. O discurso é um, mas a prática é outra. Eu vejo o PT, hoje, muito afastado das políticas sociais, que são as coisas que eu defendo muito".

Isto nos faz pensar que, de alguma maneira, o PT, enquanto partido ideológico, retinha (retém)  um centro teleológico. Entretanto, ao tornar-se um partido inserido na cena da política, teve que esvaziar-se, em parte, do conteúdo ideológico, para poder realizar a política (entendida como a arte do possível; e não, a do desejo). Na ausência da tensão ideológica que articulava uma idéia de absoluto, a política torna-se relativa do ponto de vista dos valores. Esse processo implicaria no que Michel(1997) chamou de política desencantada. A política desencantada constitui-se na ausência de crença na instituição política, conduzindo à necessidade de uma redefinição da identidade humana.

Uma outra questão, que parece ser igualmente importante e conjugada com as anteriores, pode ser depreendida dos estudos de Corten. Apoiando-se numa análise de discurso, Corten defende a idéia de que a participação pode ser colocada como utopia. Consiste em utopia, porque a participação não pode ser esperada como efeito dentro do modo de circulação discursiva da política. Para este autor, “a participação pode influir tangencialmente a política quando mobiliza uma ‘multidão’ que crê na verdade de uma versão narrativa. Essa mobilização não é em si política mas religiosa” (Corten, 1996a: 193). A participação não faz parte da circulação discursiva da política, porque ela pode entrar em contradição com os procedimentos da política. O efeito de participação é oriundo do mundo da religião, uma vez que este é quesito básico para a identificação entre a pessoa e o divino. O efeito de participação liga-se à circulação discursiva religiosa, pois este “fala à imaginação mais do que a razão” (Corten, 1996a: 201). O principal efeito da circulação discursiva do religioso é o entusiasmo, a paixão alimentada pela imaginação. Assim, essa duas esferas, religiosa e política encontram-se. Esta também é a tese de Carl Schmitt (1988), para o qual existem homologias de estruturas nas categorias teológica e política. Diferentemente da circulação discursiva do religioso, a circulação discursiva da política não visa aumentar a paixão das multidões, mas contê-la e manipulá-la, pois sua preocupação principal é manutenção do poder (Corten, 1999).

Creio que isso é fundamental para compreender o processo da crise de identidade na modernidade. Quando se passa do político para a política, a participação e a paixão tendem a diminuir ou a serem manipuladas. Isto acontece também, porque o centro ideológico do partido cede à pragmática, necessária para a manutenção do poder.

2. 3 - Relação etnia-religião-política

A última questão a merecer atenção nesse escrito, está articulada com o fato da permanência de Dimitri no Movimento Negro. O primeiro aspecto a ser lembrado é a passagem de pessoas da religiosidade afro para a pentecostal, em si mesma, não é algo tão surpreendente. Muitos estudiosos têm defendido a tese de que essas duas religiosidades possuem uma mesma sintonia, tem mais características comuns do que gostariam de admitir (entre outros, Corten, 1996b; Oro, 1997; Oro, 1993[12]; Bobsin, 1994).

Entretanto, neste caso específico, gostaria de trilhar um caminho distinto dos anteriores. Quero sugerir que a religião afro nunca foi essencial para a identidade de Dimitri. Ela era constitutiva de sua imagem política. Mesmo que o discurso atual de Dimitri seja o de ter procurado ajuda nos orixás quando estava passando por dificuldades, salientando que nada encontrou, a mim parece um discurso moldado pelo seu novo mundo simbólico, a IURD, para a qual esta interpretação é muito valiosa. A religião afro era somente algo interessante na constituição geral da identidade de Dimitri, porque ela estava enquadrada em um contexto de “paixão pela base”, que sobretudo, o Movimento Negro nele despertou. Talvez seja por isso mesmo que não tenha encontrado nela as respostas às suas demandas.

Por conseguinte, quando sumiu a sustentação material e objetiva que Dimitri retirava do ambiente da política, o jogo da política não lhe oferecia mais nenhuma paixão, nem mesmo um sustento material. Aí terminou o encantamento com a política. Creio que se pode dizer: era necessário que uma pessoa que nunca se desencantou totalmente (isto é, não deixou de ser um utopista) encontrar-se em um outro discurso no qual ele poderia referenciar seu encantamento (Corten, !996b). Parece ter acontecido com Dimitri que ele foi buscar na religiosidade pentecostal uma renovação de suas energias utópicas. Aqui, podemos voltar à segunda característica das novas identidades, levantada por Burity (1997). Há um esgotamento da postergação da realização do desejo, isto é, da paixão, daquilo que move o mais profundo do subjetivo humano. Há um cansaço para com os grandes projetos que postergam ad infinitum o prazer.

A sua saída das religiões afro, aponta, parece-me, não para uma efetiva inserção religiosa, mas para uma busca de identidade nas raízes étnico-culturais. Mas, neste caso, o objetivo étnico talvez tenha sido pouco denso para a sustentação de uma identidade religiosa. Por outro lado, a identidade étnica não é necessária como instrumento religioso. Em outras palavras: ao sair das religiões afro, Dimitri permaneceu com aquilo que ele considerava realmente importante: sua identidade negra e a luta pública que isso implica. É por isso que tentará, apesar de todas as dificuldades que deverá encontrar no meio evangélico[13], organizar um Movimento Negro a partir deles.

Para Dimitri, o partido era o valor encompassador de todo o seu mundo simbólico. Ou seja: a utopia que era carregada pela ideologia política era, de fato, o que mobilizava sua inserção em outros campos, como, por exemplo, a militância no Movimento Negro e seu envolvimento nas religiões afro. Creio que podemos notá-lo em suas palavras, quando diz:

"A partir do momento em que comecei a participar da primeira entidade de Movimento Negro - o CENARAB (Centro Nacional dos Religiosos Afro-Brasileiros e que, depois, passou a se chamar Centro Nacional de Articulação e Resistência Afro-Brasileira), isto foi por 89 e 90, por aí. O CENARAB, então era basicamente uma entidade nacional que articulava pessoas de vários estados do país. Como a grande maioria dos integrantes do CENARAB eram integrantes das religiões afro, então isso fez com que eu começasse a me encantar um pouco com  aquilo. Tinha aquelas roupas afro e eu sempre achei bonito aquilo. Eu achava bonito aquilo, sobretudo pelo resgate da cultura ancestral africana e tudo. A partir daí,  então que eu comecei a me envolver" (Dimitri).

A política (nos termos de Michel), portanto, era o elemento sagrado e de valor. No momento em que ela ruiu, os outros elos se enfraqueceram. Conforme Michel (1997), ao retornar ao político via linguagem religiosa, isto é, novamente alcançar um referente sagrado e encompassador, teve que desistir completamente da religião afro, por pertencerem a lados opostos de um mesmo campo - tão opostos que se tornam semelhantes -, não necessitando, pelo menos até o momento, deixar completamente de lado sua militância no Movimento Negro.

Pode-se perguntar: estaria aqui uma possibilidade de colocar o pentecostalismo como um fator que eventualmente contribua com a democracia[14]? Creio que sim. Ela contribui com a democracia, sem, no entanto, aprofundar esta questão, uma vez que muitos que nela entram, não tem um projeto coletivista e nem tampouco pouco a igreja consegue aprofundar muito este espírito[15]. O máximo a que ela consegue chegar nesse projeto é desenvolver um espírito de solidariedade com os menos favorecidos (Corten, 1996b). Por isso, creio ser correto dizer que o pentecostalismo tem afinidade com a cultura democrática, sem, entretanto, ser um veículo de aprofundamento dessa democracia (Burity, 1997).

3 - Considerações Finais

Creio que as ponderações aqui expostas nos apontam pistas concretas para entender a reconfiguração da identidade no mundo hodierno, sobretudo na interseção entre religião e política.

Como já dito, o presente texto tem a pretensão de ser exploratório do tema acolhido: etnia, religião e política. Entendo que além de várias questões terem sido analisadas, surgiram outras. Isto torna o tema sedutor.

Uma das linhas mestras da análise foi a de verificar como se consolida a relação binômica do público/privado, tendo como pano-de-fundo a religião. Para alguns teóricos da secularização, a religião confinou-se à esfera do privado. Creio que foi possível demonstrar, mesmo de forma introdutória, que, se não há o esmaecimento dessas fronteiras, há, sem dúvida, o seu deslocamento (Burity, s/d). Vimos como um elemento central na trajetória do entrevistado grande insatisfação ou frustração com o discurso modernizante. Dimitri manifestou ter imaginado que o partido com qual tinha afinidade ideológica, ao chegar ao poder, poderia efetivamente dignificar as pessoas por sua atuação. Queria ver essa dignificação em melhores salários e condições de trabalho, inserção dos excluídos dentro do sistema e, portanto, maior justiça social, segurança e educação para todos. Estas questões tornam-se um problema político para pessoas como Dimitri. Esses temas merecem ser tratados como políticos, pois mobilizam formas de ação coletiva, como os Movimentos Negros.

Podemos notar, a partir da referência identitária de Dimitri, uma perspectiva que aponta a inserção do pentecostalismo (como religião) na esfera pública? Isto é: dentro da esfera pública, é possível notar influências comportamentais que sejam mais que mera privatização do sagrado? Creio que sim. Se efetivamente Dimitri conseguir organizar um grupo de reflexão étnica dentro do mundo evangélico, não teremos apenas uma influência do mundo político na religião, mas também seu contraponto. Em outras palavras: esse movimento pode servir como referência, no mundo evangélico, para a luta anti-racista, uma luta que se faz na esfera pública. O que isso pode desencadear na sociedade? É claro que esse discurso precisaria ser assumido igualmente pela instituição religiosa. Porém, nada indica que isso seja improvável.

Penso que, assim, foram abordados alguns temas de profundidade teórica, que, pelo menos por ora, estão para ser melhor equacionadas. Considero que esta monografia evidenciou no mínimo duas questões instigantes. Primeiro, onde estabelecer a distinção entre a religião e a política, o público e o privado? Por um lado, não há como negar que a religiosidade é da ordem do privado. Entretanto, há claros indícios de uma volta de instituições religiosas à esfera pública. Isto pode ser verificado seja pelo aumento da bancada de evangélicos nos mais diversos fóruns da democracia representativa, seja pela linguagem que ela oferece e que pode contribuir para energizar as concepções utópicas de uma sociedade mais justa e igualitária na vida de muitos (ex)militantes de movimentos sociais contestatórios, ou ainda, seja na questão levantada neste trabalho, pela tentativa que Dimitri está por fazer: criar um grupo de reflexão étnica dentro do movimento evangélico. Isto pode significar um avanço e uma pluralização na concepção de atuações de políticas anti-racistas, bem como um questionamento à sociedade a partir de um segmento social até bem pouco tempo tido como alienado e autoritário.

Aqui engata-se a segunda questão. Tem o pentecostalismo a possibilidade de contribuir com a democracia? A resposta não é unívoca. Evidentemente, a resposta dependerá de fatores internos e externos das instituições religiosas. Um fator interno que merece ser melhor explorado, pesquisado e analisado é se a organização das instituições evangélicas pentecostais é ou não (potencialmente) democráticas? Discussão que há muito se vem fazendo, tendo posições em ambos os lados.


Referências Bibliográficas

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[1] O nome foi alterado em respeito ao entrevistado.

[2] Numa conversa informal, perguntei a Dimitri como ele tornou-se um drogadito. Ele respondeu que tudo começa com o “beber socialmente”. Depois disso, conheceu e usava maconha com alguma regularidade já antes de entrar no partido. As drogas a que ele se refere aqui, portanto, seria principalmente a cocaína.

[3] A sede Nacional dela é em São Paulo, mas tem secções no Brasil inteiro. A partir de março, a Unegro se muda para o edifício Cacique, na rua dos Andradas 15° andar.

[4] Tive a oportunidade de entrevistá-lo em dois momentos. Isso foi muito útil na complementação de questões e melhor enquadramento do valor das afirmações de Dimitri.

[5] No uso figurado da palavra, ela expressa o conjunto de características ou de sinais associados a uma condição crítica, suscetíveis de despertar reações de temor e insegurança (Aurélio Eletrônico – Século XXI – versão 3.0).

[6] Para Perter Berger,  autor de O Dossel Sagrado (1966), a secularização instala-se objetivamente em toda a vida cultural da sociedade, resultando numa diminuição crescente da influência da religião, o que gera uma crise de plausibilidade nas tradicionais definições da religião sobre a existência no mundo.

[7] Estes seriam os projetos que defendem o direito à diferença, que tem como seu projeto buscar responsabilizar a sociedade para que esta não discrimine grupos sociais, seja pela sua origem étnica, preferência sexual ou seu lugar subalterno na posição social e política.

[8] Aqui entendida no sentido restrito, isto é, no âmbito das relações de poder institucionais.

[9] Neste trabalho, distinguiremos política de político. Para Corten, a política refere-se às “instituições políticas, [que] realizam as atividades políticas” (Corten, 1999: 37). O político, apesar de seu sentido indefinido, é por ele usado quando se trata de “uma construção da realidade a partir da qual (no limite) se estabelece a ‘discriminação’ entre amigos e inimigos” (Corten, 1999: 39). Para Burity, “o político é o nome da dimensão instituite de toda prática e identidade”, enquanto “a política diz respeito à explicitação de uma lógica da ação coletiva que demanda a definição de programas e projetos e que implica na institucionalização de práticas e normas de alcance coletivo” (Burity, 1997: 23-24). Há, portanto, uma esfera do exercício de poder a partir de instituições políticas e existe o político como um campo mais amplo, mas que está fundamentalmente relacionado à constituição de identidade, estando ligado, portanto, com a questão da ideologia.

[10] Para Michel, a palavra francesa politique parece expressar tanto a política quanto o político. Apesar de o autor usar, no francês, o artigo masculino definido le, considero que ele esteja se referindo ao que nós aqui chamamos de a política, mas com fundamento ideológico. Isso, contudo, faz-nos transitar nos dois campos de sentido. Dizendo de forma diferente: a política a que se refere este autor, é a política como resultante de um confronto ideológico.

[11] Corten defende a tese de que a religião carrega uma linguagem potencialmente política. O círculo discursivo, seja político ou religioso, não ocorre no registro de verdadeiro/falso, mas de aceitável/inaceitável. Hoje, a religiosidade pentecostal opera sobre o registro do inaceitável para o discurso da política, mas não significa que isso não possa se alterar (Corten, 1996b).

[12] Neste texto, entre outras análises, é realizada uma comparação entre as religiões afro e a religiosidade católica popular, mostrando que as fronteiras não são tão nítidas como os religiosos nos querem fazer pensar.

[13] Novaes e Floriano (1985) abordam a dificuldade de um Movimento Negro articular-se a partir de evangélicos, uma vez que exporia a diferenciação no tratamento das pessoas. Isso conflita com o discurso dos evangélicos que procuram explicitar mais suas relações de igualdade do que de diferença.

[14] A religião pentecostal, de cunho teológico ocidental (para não dizer norte-americano), é veículo e pregadora de uma igualdade entre todos, a qual, de fato, pouco se percebe nas estruturas hierárquicas dessas denominações, onde as posições-chave normalmente são ocupadas por brancos. Pelo discurso, o pentecostalismo tem conseguido, em parte, camuflar esta questão. Por outro lado, não se pode deixar de reconhecer que as denominações pentecostais têm como seus principais freqüentadores uma ampla maioria de pessoas pobres e negras (Novaes, Floriano, 1985).

[15] Trata-se de uma colocação um tanto superficial, mas que, no momento, me vejo impossibilitado de entrar mais profundamente neste tema da relação entre pentecostalismo e democracia.


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