49 Congreso Internacional del Americanistas (ICA)

Quito Ecuador

7-11 julio 1997

 

Juliana Beatriz Almeida de Souza.

49º Congreso Internacional de Americanistas.

Simposio de Historia de las Mentalidades y Nueva Historia Cultural (HIST 14).

Pontificia Universidad Católica del Ecuador.

Av. 12 de octubre y Roca.

Quito, Ecuador.

MarianaAmérica.

Devoção a Virgem na colonização ibéricana América.

Juliana Beatriz Almeida de Souza.

Universidade Federal do Rio de Janeiro.

"Dentro da grande mesquita há entre salas onde estão os ídolos principais, todos de maravilhosa grandeza... Os principais destes ídolos e nos quais eles tinham mais fé, eu derrubei de seus assentos e os fiz descer escada abaixo... Em lugar dos ídolos mandei colocar imagens de Nossa Senhora e de outros santos..." (Hernán Cortés)

A Virgem Maria é um dos símbolos femininos mais fortes do mundo ocidental católico, o que aliás se pode compreender levando em consideração o domínio que a Igreja Católica teve sobre a vida social durante séculos e as marcas que ainda deixa na cultura dos povos de raízes cristãs. Ao longo dos anos e dos Concílios, a Igreja foi amadurecendo suas afirmações doutrinais relativas a essa figura. E a expansão da sua devoção permitiu a apropriação dessa imagem que ganhou histórias em diferentes culturas.

Seria um erro, do ponto de vista doutrinário, dizer que há muitas Nossas Senhoras, mas é de certo modo tentador, estilisticamente, construir essa frase. Afinal, a imagem de terracota de Nossa Senhora Aparecida, a pintura bizantina de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro ou o retrato da Virgem de Guadalupe no poncho mexicano não nos faz pensar na multiplicidade de realidades que esse símbolo pode representar? Talvez seja exatamente aí que resida a sua força: ao ser única e ao poder tomar diferentes representações, Maria se consolidou como mediadora do povo cristão junto a Deus.

Os tipos mais habituais de representação de Maria são:

" Hodigitria , 'a que aponta o caminho', isto é Cristo.

Eléousa , a Mãe de Deus toda ternura, inclinando a cabeça para o Seu Filho.

A Déesis , a que intercede, de pé, braços levantados ao céu.

O Véu : a Mãe de Deus, figura da Igreja, que envolve com a sua proteção a multidão dos seus filhos.

O Sinal : Maria em Quem está representado o Menino Deus, Seu Filho."

As histórias das devoções marianas podem fascinar. Mas a falta de trabalhos mais sistemáticos de cunho comparativo acerca da devoção mariana, quer no mundo europeu, quer no mundo ibero-americano, tornam o esforço de se querer fazer esse quadro ao mesmo tempo que instigante, difícil. Exceção feita à Virgem de Guadalupe do México que tem merecido certa atenção Quetzacóatl y Guadalupe . México: Fondo de Cultura Economica, 1992., não conheço análises históricas que se dediquem à devoção mariana em outros países de colonização espanhola ou mesmo na colonização portuguesa na América. Assim, encontrar estudos que dêem atenção mais do que passageira e que não sejam comprometidos quer por um posicionamento católico militante quer por seu oposto, não é tarefa fácil.

Ainda assim, ciente dos riscos, proponho nas páginas seguintes um esboço de um panorama da devoção mariana no contexto mental da época moderna, a fim de avaliar sua importância no âmbito do catolicismo colonial O diabo e a Terra de Santa Cruz : feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 86 - 156.. Por isso, aqui se encontrará um pouco das histórias de Maria no Novo Mundo e um esforço de aproximação entre elas, procurando perceber os significados que fizeram delas importantes para seus países. Como símbolos, as imagens da Virgem são passíveis de diferentes interpretações. Imagens, feitas ícone e discurso, cujas leituras permitem penetrar no universo das representações. Segundo R. Darnton O beijo de Lamourette . SP: Companhia das Letras, 1990. p. 289., "os historiadores da cultura talvez tenham a ganhar se (...) pensarem nos simbolismos como polissêmicos, fluidos e complexos." É, seguindo essa orientação, que minha reflexão procura caminhar.

1. De Eva a Maria :o imaginário europeu sobre a mulher .

No começo da Idade Moderna, na Europa ocidental, a mulher foi identificada como um perigoso agente do Demônio. Essa é uma afirmação de J. Delumeau História do medo no Ocidente . 1300 - 1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 310. que percebe na ambiguidade da atitude masculina em relação à mulher, oscilante entre atração e repulsa, uma longa história que atingiu àquela altura uma maior difusão graças, inclusive, à imprensa e cuja formulação não partia apenas dos homens da Igreja Católica, mas, também, de leigos. É verdade, no entanto, que a Idade Média tinha inventado o amor cortês e exaltara, como nunca antes se tivera feito, a Virgem Maria, consagrando-lhe inúmeras obras de arte. Mas quer o culto mariano, quer a literatura dos trovadores, ambos contribuíram, fundamentalmente, apenas a longo prazo. Afinal, esses personagens femininos exemplares, idealizados, de modo algum parece terem sido percebidos como representativos do "segundo sexo".

O medo da mulher esteve presente no cristianismo desde muito cedo, mas seria um engano pensar que era a leitura dos Evangelhos que levava, obrigatoriamente, a essa misoginia. Aliás, essa questão não esteve sequer restrita ao imaginário judaico-cristã. Os historiadores, hoje, têm procurado fazer uma análise histórica da leitura, o que corresponde dizer que o significado de um texto não está inscrito nas suas páginas, mas é, sim, construído pelo leitor.

"A leitura tem uma história. Não foi sempre e em toda a parte a mesma. Podemos pensar nela como um processo direto de extrair informação de uma página; mas se a considerássemos um pouco mais concordaríamos que a informação deve ser esquadrinhada, retirada e interpretada. Os esquemas interpretativos pertencem a configurações culturais, que têm variado enormemente através dos tempos. Como nossos ancestrais viviam em mundos mentais diferentes, devem ter lido de forma diferente, e a história da leitura poderia ser tão complexa quanto a história do pensamento. [...] É uma atividade que envolve uma relação particular - por uma lado o leitor, por outro lado o texto." In : BURKE, Peter (org.). A escrita da História : novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. p. 233.

A atitude de Jesus, descrita nos Evangelhos era inovadora para o seu tempo e propunha uma igualdade radical entre homens e mulheres. Elas cumprem papéis importantes na sua vida de pregador. Ele se cerca delas e as defende do desprezo. Um caso exemplar nesse sentido é o da mulher que atacada por homens como adúltera é protegida por Jesus que os impede de apedrejá-la, dizendo: "Quem dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra!"A Bíblia de Jerusalém. 4ª ed. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 2006 (Jo 8, 7). Nesse episódio, claro está, que não se trata de uma atitude de tolerância ao adultério, mas demonstra que a caridade deve ser para todos. Aí é que estaria a igualdade radical da sua pregação. Foram mulheres ibid .. p. 1895. as primeiras a tomar conhecimento da sua ressurreição.

Mas a igualdade preconizada esbarrou no universo mental ainda marcado pela ambiguidade de atitudes em relação à mulher. Os escritos de S. Paulo demonstram bem isso: ao mesmo tempo em que apregoava o universalismo religioso, não escapou no seu discurso de dar contribuições para a colocação da mulher em um patamar de submissão em relação ao homem, no casamento e na Igreja:

"As mulheres estejam sujeitas aos seus maridos, como ao Senhor, porque o homem é cabeça da mulher, como Cristo é cabeça da Igreja e o salvador do Corpo. Como a Igreja está sujeita a Cristo, estejam as mulheres em tudo sujeitas aos seus maridos." ibid .. p. 2203 (Ef 5, 22 - 24).

A exaltação da virgindade e da castidade e a interpretação do relato da queda no Gênesis também contribuíram para acentuar a discriminação da mulher ibid .. p. (Gn 3, 1- 7). Segundo J. Le Goff, a sexualização do pecado original foi uma invenção cristã, pois, no texto hebraico, ele aparecia ligado ao conhecimento e à obediência devida a Deus, e não ao sexo. S. Agostinho foi quem definitivamente relacionou a concupiscência e o pecado original. E foi essa interpretação sexualizada que estimulou a imagem diabolizada da mulher, em oposição ao homem espiritual, mais infenso ao pecado, embora responsável por ele sempre que agisse como Adão. LE GOFF, J. Le refus du plaisir. Histoire , n. spécial, 1983, p. 54.. Acusada de ter introduzido o mal na terra, seja como Eva, seja como Pandora, na mulher o homem encontrava um responsável para o sofrimento e o desaparecimento do paraíso terrestre.

"Assim a Idade Média 'cristã', em uma medida bastante ampla, somou, racionalizou e aumentou as queixas misóginas recebidas das tradições de que era herdeira. Além disso, a cultura encontrava-se agora, em vastíssima medida nas mãos de clérigos celibatários que não podiam senão exaltar a virgindade e enfurecer-se contra a tentadora de quem temiam as seduções. Foi bem o medo da mulher que ditou à literatura monástica esses anátemas periodicamente lançados contra os atrativos falaciosos e demoníacos da cúmplice preferida de Satã." História do medo no Ocidente . 1300 - 1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 318.

Quando Deus descobre que Adão e Eva comeram do fruto proibido, condena a serpente, o homem e a mulher. A essa diz:

"'Multiplicarei as dores de tuas gravidezes, na dor darás à luz filhos. Teu desejo te impelirá a teu marido e ele te dominará.'"A Bíblia de Jerusalém. 4ª ed. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 35. (Gn 3, 16).

A condenação atinge os culpados naquilo que era suas atividades essenciais. O homem é condenado como trabalhador e terá que lutar contra um solo hostil, ao invés de ser o jardineiro de Deus no Éden. A mulher é atingida no seu papel de esposa e mãe. Ela perde a condição de associada ao homem e de ser sua igual que tivera no momento de sua criação ibid .. p. 34. e passa a ser a sedutora do homem que sujeitará para ter filhos. O pecado fora um atentado à soberania de Deus. Fora um pecado de orgulho que transtornou a ordem querida por Ele. O grande castigo será a perda da familiaridade com Deus, com a expulsão do Paraíso. Todas essa penas eram hereditárias e S. Paulo desenvolverá a teoria da solidariedade de todos em Adão pecador e a solidariedade de todos em Cristo salvador.

"Para enaltecer o dom de Deus que nos foi concedido em Jesus Cristo, S. Paulo revela-nos por contraste, o triste estado em que se encontraria a humanidade abandonada a si mesma. Mas 'onde abundou o pecado, superabundou a graça' (Rom. 5, 21). Dois tipos de homens estão aqui em oposição: 'O primeiro homem, tirado da terra, é terreno; o segundo veio do céu' (Cor. 15, 47). Paulo retoma várias vezes esse paralelismo, e Cristo, finalmente, aparece como o segundo Adão, tipo do homem novo criado segundo Deus na justiça e na verdade (Ef. 4, 24), fonte de graça (Rom. 5, 17 - 19) e espírito vivificante (1 Cor. 15, 45)"

Depois da queda, Adão deu a sua mulher um nome carregado de esperança: Eva Hawah , é aparentado com um derivado da raiz Hay , viver. ibid .. p. 130 - 131., "por ser mãe de todos os viventes"A Bíblia de Jerusalém. 4ª ed. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 36. (Gn 3, 20). Mas se Adão foi restaurado em Cristo era justo que Eva fosse restaurada em Maria. Um dos primeiros que defendem essa idéia e de quem se tem notícia é S. Irineu, na segunda metade do séc. II. Segundo ele, a Virgem Maria apagou e anulou a desobediência de Eva pela sua obediência. O entendimento de Maria como a nova Evaganha força na alta Idade Média, quando se apregoa a maternidade espiritual da humanidade pertencendo a Maria.

Eva possuía o dom da justiça original, mas se deixou levar pelo Demônio, enquanto Maria, que teve também esse dom desde o primeiro momento de sua existência, soube ouvir Deus e experimentou a graça do seu Espírito, tornando- -se exemplo de mulher: mãe, virgem, esposa e cristã perfeita. A mulher, com a Virgem Maria, tornou-se o canal de toda a graça e imagem da bondade suprema.

Maria era o primeiro ser humano que seria redimido, graças a sua concepção imaculada que foi dada a venerar, propondo-se que, desde o início da sua existência, ela fora libertada da herança da excomunhão de Adão. Não há menção alguma em qualquer dos quatro Evangelhos sobre a concepção de Maria, mas esse tema é contemplado pelos apócrifos e A Lenda Áurea de Jacob de Varazze tornou conhecida uma versão desses evangelhos, estando a importância dessa obra, sobretudo, em dar informações sobre as relações de parentesco de Jesus, trazendo uma narrativa dos evangelhos mais próxima da vida no século XV A cristandade no Ocidente . 1400 -1700. Lisboa: Edições 70, 1990. p. 24..

Doutrina tradicional da Igreja Nova Enciclopédia Católica , doutrina da Igreja é a fé e o costume gerais da Igreja Católica em questões que não são definidas. Nova Enciclopédia Católica. Rio de Janeiro: Ed. Rênes, 1969. v.12. p. , a Imaculada Conceição de Maria, cujo significado é o de que a futura Mãe de Jesus foi concebida por uma graça especial de Deus livre da mancha do Pecado Original que macula todos os homens desde o nascimento, foi defendida por uma parte dos clérigos desde tempos antigos, mas nem todos a tinham como certa. O Evangelho Apócrifo de Tiago, no século II, traz a narrativa da conceição virginal de Ana, mãe de Maria. Diz o Evangelho que Joaquimsentiu-se triste por não ter filhos e retirou-se para o deserto, afastando-se de sua mulher até que Deus o escutasse. Enquanto isso, Ana lastimava o afastamento de seu marido e sua esterilidade.

"E eis que apareceu um anjo do Senhor, dizendo:

-'Ana, Ana, o Senhor Deus ouviu a tua oração. Conceberás e darás a luz e, em toda a terra, se falará de tua descendência'." ibid .. p. 32.

Joaquim retornou a sua casa depois de ter também sido avisado por um anjo que Ana "concebeu em seu seio" ibid ., p. 33. O pretérito "concebeu" é por muitos considerados como a forma autêntica e significaria que a concepção de Maria em Ana se deu na ausência de Joaquim, sendo, portanto, miraculosa. Ao invés de ter sido decorrência de uma união carnal, proveio da vontade de Deus. Há, entretanto, outras interpretações. No séc. IV, S. Epifânio dá ao pretérito o sentido de futuro. Seria tão certo o que ia acontecer que já se poderia considerar realizado. Outra interpretação supõe que o pretérito designa uma concepção normal que se tenha dado antes de Joaquim retirar-se para o deserto e só conhecida algum tempo depois. Essa versão, no entanto se contradiz com a passagem em que o anjo, depois da partida de Joaquim, diz a Ana: "Conceberás (...)." Há tradutores, ainda, que para contornar essa dificuldade preferem o futuro "conceberá". A concepção se daria, então, depois da volta de Joaquim..

Enquanto os primeiros Concílios não se pronunciavam a esse respeito, padres como S. Efrém, S. Ambrósio e S. Agostinho exaltavam Maria como isenta de pecado desde o primeiro momento de sua existência. Depois de várias tentativas de definição dogmática, em vários concílios, com festa e missa desde 1476 e dia santo a partir de 1708 para celebrar essa prerrogativa de Maria Maria na História da Salvação . Lisboa: Difusora Bíblica, 1989. p. 90., só em 1854 sua imaculada conceição foi definida como dogma, através da Bula IneffabilisDeus de Pio IX.

"Declaramos, pronunciamos e definimos que a doutrina, a qual retém que a beatíssima Virgem Maria no primeiro instante de sua concepção, por singular graça e privilégio de Deus onipotente e em vista dos méritos de Jesus Cristo, salvador do gênero humano, tenha sido preservada imune de qualquer mácula da culpa original, é revelada por Deus e portanto deve ser crida firmemente e constantemente por todos os fiéis." apud . GEBARA, I. & BINGEMER, M. C. L.. Maria, mãe de Deus e mãe dos pobres : Um ensaio a partir da mulher e da América Latina. Petrópolis: Vozes, 1988. (Coleção Teologia e Libertação, Série IV: A Igreja, Sacramento da Libertação, tomo 13) p. 127.

O dogmaNova Enciclopédia Católica, Rio de Janeiro: Ed. Rênes, 1969. v.12. p. 1143. é uma construção que vincula o a priori da maternidade e virgindade de Maria com uma certa leitura dos textos bíblicos. O texto básico no qual se fundamenta o dogma está no livro do Gênesis (3, 15). Nele, a mulher aparece como inimiga da serpente, a qual ela destrói, esmagando sua cabeça. À mulher corresponde a pessoa de Maria, personificação do bem, enquanto a serpente representa todo o mal, o pecado. Teria dito à serpente:

"Porei hostilidade entre ti e a mulher, entre tua linhagem e a dela. Ela te esmagará a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar."A Bíblia de Jerusalém. 4ª ed. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 35..

O dogma confirma a "inimizade radical" entre Maria e "o pecado, o mal" Maria na História da Salvação . Lisboa: Difusora Bíblica, 1989. p. 92.. É com base nesse texto bíblico que S. Justino, no século II, pela primeira vez, contrapõe Eva e Maria. Eva foi vencida pelo pecado, ao passo que Maria o esmaga desde a sua conceição. No antigo Testamento, a leitura dos exegetas correlaciona a figura de Maria a símbolos como "arca", "cidade", "casa", identificando-a como "morada de Deus". Como "filha de Sião"

Jeremias emprega com frequência para evocar o povo desta cidade, votada à desventura das invasões e à ruína pela infidelidade dos seus reis. No regresso do exílio, os discípulos de Isaías esboçam os traços do novo Israel: nasce com um nome novo (65, 15), uma longevidade nova (65, 20), um sacerdócio novo (66, 21) numa terra nova e em novos céus (66, 22). Estes discípulos retomam o ' alegra-te ' de Sofonias, endereçado desta vez a Jerusalém - Sião. Ela dá à luz um povo novo, uma nação nova, num só dia (66, 8):'Antes que tivesse dor de parto, deu à luz, antes de sentir dores, deu à luz um filho' (66, 7).

À luz destes textos, o Novo testamento, sobretudo Apocalipse, 12, pode falar de Maria como daquela pela qual Sião dava à luz o povo novo cujo 'filho varão' (12, 5) era o chefe triunfante, e aquela que, neste povo novo, exercia a função materna para o 'resto dos seus filhos' (12, 7). DICIONÁRIO MARIANO. Porto: Editorial Perpétuo Socorro, 1988. p. 78., Maria é figura e símbolo do povo de Deus que nele encontra o fim de seu intinerário a caminho do Messias. Sua Imaculada Conceição a torna mais próxima de Deus e dos homens. Ela representa a criação na sua plenitude: bem-aventurada, bendita, cheia de graça. Sobre a sua carne foi derramado o Espírito Santo. Em seu ventre, repousa o Verbo encarnado. Aos homens, mostra que o paraíso perdido foi reencontrado. Traz, pois, em si, a salvação do gênero humano, sem deixar de permanecer vinculada à concretude da sua condição histórica, terrena.

Além da Imaculada Conceição, a Maria são relacionadas outras afirmações doutrinais como a concepção virginal de Jesus, o que quer dizer que Maria concebeu Jesus sem "conhecer homem", mantendo-se, pois, virgem. Os Evangelhos de Mateus e Lucas Santo que nascer será chamado Filho de Deus." (Lc 1, 34 - 35) O sentido semítico de "conhecer" é "ter relações conjugais" como se encontra no livro do Gênesis (4, 1): " O homem conheceu Eva, sua mulher; ela concebeu e deu á luz Caim (...)" A Bíblia de Jerusalém. 4ª ed. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 36, p. 1838 e p. 1927. relatam o fato que está também presente na oração do Credo Catecismo da Primeira Eucaristia . São Paulo: Paulinas, 1978. p. 86., uma das principais orações do cristão. Um dos significados desse fato está na demonstração de que a salvação só vem de Deus, e não de poderes humanos. Ao anunciar a Maria sua concepção, Deus, entretanto, a condiciona à sua aceitação, ao consentimento de sua fé. Assim, também, Deus nos pede permanentemente o livre consentimento de nossa fé para que Jesus possa nascer em nós por graça do Espírito Santo.

Segundo a tradição católica, Maria, depois de ter concebido, permaneceu virgem. Nenhum dos evangelhos fornecem dados a esse respeito, mas não foram poucos os que defenderam esse argumento. Conforme diz S. Paulo (1 Cor. 7, 17 - 35), Maria teria se conservado no estado em que Deus a encontrou quando fez a Sua anunciação, para se unir a Deus sem desvios.

O Evangelho Apócrifo de Tiago, entretanto relata o nascimento de Jesus:

"(...) e na gruta apareceu uma luz tão forte que os olhos não podiam suportá-la.

Pouco depois a luz começou a afastar-se e apareceu um recém-nascido, que foi sugar o peito de Maria sua mãe.

e, em seguida descreve a comprovação da virgindade de Maria:

"A parteira entrou e disse:

- 'Prepara-te, Maria, porque há entre nós não pequena dúvida a teu respeito.'

Ouvindo isto, Maria preparou-se. E Salomé colocou o dedo em sua natureza. Salomé saltou um grito:

- 'Ai de mim! pela minha maldade e pela minha incredulidade. Tentei o Deus vivo.(...)'.

S. Ambrósio, S. Jerônimo e S. Agostinho foram ardentes defensores da virgindade perpétua de Maria, modelo das mulheres consagradas. E a justificativa mais recorrente parece ter sido mesmo a da entrega total à missão que Deus lhe confiara. Nesse sentido, talvez seja válido notar que os títulos de Virgem venerável e Virgem fiel concedidos pela Igreja dizem respeito não só à virgindade física, mas também ao amor total, sem partilha, que Maria dispensou a Jesus.

Mas foi o título de "Mãe de Deus", Theotokos , o primeiro a ser afirmado como dogma, aprovado oficialmente pelo Concílio de Éfeso, em 431. Maria é Mãe de Deus porque nela e por ela o Verbo se fez carne. Se Jesus é o único salvador, o é na condição de homem. Ele precisou se fazer homem para salvar a todos, daí, portanto, a importância sem igual da contribuição de Maria: pela sua aceitação Jesus fez-se Deus-homem ibid . p. 111 - 113. O dogma mariano mais recentemente fixado foi o da sua Assunção pelo Papa PIO XII na Bula Munificentissimus , em 1950: "a Imaculada Mãe de Deus sempre Virgem, depois de ter concluído o curso da Sua vida terrestre, foi elevada em corpo e alma à glória celeste." ibid . p. 25 - 28..

No século XV, para mostrar a humanidade de Jesus foi preciso entendê-lo como tendo um parentesco humano. Nesse sentido, o parentesco mais próximo era o de Maria. Na crise do Renascimento, Maria foi representada cada vez mais humana e isso acabou dando ensejo à reação protestante contra as imagens. Mas segundo os preceitos católicos, as imagens não devem ser adoradas. Elas são necessárias na medida que precisamos de objetos sensíveis. Além do mais, só a Deus, na sua Tríplice Pessoa, é digno de adoração, a Ele se presta o tipo de culto especial: latria . Os santos merecem dulia , ou seja, veneração. E Maria, como mediadora principal, que pertence ao céu e a terra conjuntamente, é titular de um culto próprio: hiperdulia .

Maria, enfim, é uma figura polivalente que aparece de muitas formas. Um símbolo feminino, o ideal feminino católico personificado, um mito de dois mil anos que atravessa as culturas ocidentais.

2. Virgens ibero-americanas: devoçãomariananomundo colonial.

O homem da época dos descobrimentos era, ainda, marcado por uma profunda religiosidade. As regiões que ele desconhecia mais do que caracterizadas pelo profano, representavam o próprio caos. Espaço que, inadequado à sobrevivência humana, só podia ser habitado por monstros. Espaço que precisava ser subjugado para ganhar norma e ordenação e se tornar sacralizado. Ao conquistador europeu, cristão cabia, pois, transpor as dificuldades naturais e cumprir sua parte na criação divina do cosmos .

A cristandade tinha uma dimensão social Cf . NEVES, Luiz Felipe Baêta. O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios : colonialismo e repressão cultural. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1978. que devia ser cumprida. Nesse sentido, a expansão ocidental se coadunava com as idéias de universalidade, integração e unidade tão caras ao cristianismo da época moderna, diferente do medieval fechado em si mesmo: a sua vocação universal não podia admitir regiões cindidas que não conhecessem o verdadeiro Deus, o único Deus, o Deus católico. A cristandade atravessava territórios para anunciar o Evangelho, onde ele não era conhecido, impondo ao mundo uma homogeneidade ideológica.

A descoberta da América recolocava a questão da antiga crença na quarta parte do mundo. Durante toda a Idade Média se aventou a possibilidade de um quarto continente, além dos já conhecidos Europa, Ásia e África. Mas com a "descoberta" tornava-se imprescindível comprovar alusões/profecias à sua existência nas Sagradas Escrituras Sumé no Brasil; Chimé em Angcor, nomes que aparecem relacionados, um e outro, a impressões de pegadas humanas, que tanto no Oriente, como aqui, se associavam, por sua vez, às notícias do aparecimento em remotas eras de algum mensageiro de verdades sobrenaturais, essas coincidências podem parecer deveras impressionantes. Não seria difícil, pelo menos na órbita da espiritualidade medieval e quinhentista, sua assimilação à lembrança de um São Tomé apóstolo, que os autores mais reputados pretendiam ter ido levar às partes da Índia, a luz do Evangelho cristão. Não só as pisadas atribuídas ao santo, mas tudo quanto parecesse assinalar sua visita e pregação aos índios da terra." HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso : os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. 5ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1992. Cap. V: Um mito luso-brasileiro, p. 114 - 115..

Anchieta, em seu sermão da Assunção, dizia que Deus conferiu a Virgem Maria a missão de multiplicar seus filhos, estendendo a ela a quarta parte do mundo, para ali, também, repartir suas graças A Gesta de Anchieta : a construção do "outro" nas idéias e práticas jesuíticas nos quinhentos. Niterói, 1993. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal Fluminense.. Maria, única a gozar o privilégio da proximidade de Deus e dos homens, ao mesmo tempo, se fazia elo de ligação entre o Céu e a terra.

Atrás do porto de Palos, de onde saíram as embarcações - uma delas, a Santa Maria - comandadas por Colombo, ficava a capela de Nossa Senhora de Rábida, de quem o navegador era devoto e que mais tarde seria chamada de Nossa Senhora das Américas ou a Virgem do Descobrimento da América. Segundo relatos, todas as noites era entoada a Salve Rainha durante a travessia. A segunda ilha denominada por Colombo foi chamada Santa Maria da Conceição. A expedição de Cabral chegou às novas terras trazendo a imagem de Nossa Senhora da Esperança. Antes de sair de Portugal, o navegador teria pedido proteção a Nossa Senhora de Belém. A Primeira Missa na colônia teria contado com o retábulo de Nossa Senhora da Piedade. A devoção mariana, assim, aportava em terras ameríndias com os primeiros conquistadores.

O conquistador europeu, como homem religioso O sagrado e o profano : a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992., transformava o Novo Mundo, simbolicamente, no cosmos, lugar da Criação, zona do sagrado por excelência, refúgio e ponto de encontro entre a terra, o Céu e o inferno.

A expansão do catolicismo foi estimulada desde o início da colonização ibérica. A instituição do padroado real - Padroado Real em português e Patronato ou Patronazgo em espanhol - da Igreja do ultramar exercido pelas Coroas Ibéricas era revelador da estreita aliança entre o altar e o trono, apesar das não poucas divergências. O Padroado Real Português pode ser, segundo C. R. Boxer,

"[...] vagamente definido como uma combinação de direitos, privilégios e deveres, concedidos pelo papado à Coroa portuguesa, como patrono das missões católicas e instituições eclesiásticas na África, Ásia e Brasil. Estes direitos e deveres provinham de uma série de bulas e breves papais, começando pelo breve Dum Diversas de Nicolau V, em 1452, e culminando no breve Praecelse Devotionis de Leão X, em 1514. O campo de ação do Padroado Real Português no mundo não europeu foi, durante muito tempo, apenas limitado pelos direitos, privilégios e deveres paralelos conferidos ao Patronato Real da Coroa de Castela, por outra série de bulas e breves papais, dos quais o mais importante foi a bula Universalis Ecclesiae de Júlio II em 1508." A Igreja e a expansão ibérica (1440 - 1770). Lisboa: Edições 70, 1989. p. 99. Segundo o autor, "os monarcas ibéricos foram autorizados pelo papado: a) a erigir ou permitir a construção de todas as catedrais, igrejas, mosteiros, conventos e eremitérios dentro da esfera dos respectivos patronatos; b) a apresentar à Santa Sé uma curta lista de candidatos mais convenientes para todos os arcebispados, bispados e abadias coloniais e para as dignidades e funções eclesiásticas menores, aos bispos respectivos; c) a administrar jurisdições e receitas eclesiásticas e a rejeitar as bulas e breves papais que não fossem primeiro aprovados pela respectiva chancelaria da Coroa." p. 100..

Dessa forma, todo clérigo, de qualquer status , dependia da aprovação da Coroa para exercer seu cargo, assim como de seu apoio financeiro.

A Igreja Católica se estabeleceu na colônia portuguesa na América, mediante a orientação da Coroa, através da Mesa de Consciência e Ordens. Não sem razão, portanto, a cristandade, aqui, uniria os interesses políticos aos religiosos. Não é de estranhar, portanto, que, como expressão do sistema colonial, tenha colaborado em guerras contra os ameríndios e de expulsão aos estrangeiros - franceses e holandeses - e ainda tenha tolerado a escravidão, construindo-lhe um discurso legitimador Cf . VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e escravidão : os letrados e a sociedade escravista no Brasil. Petropólis: Vozes, 1986. Segundo o autor, os que escreveram sobre a escravidão africana, a partir do século XVII, procuraram justificá-la, fornecendo, no geral, quatro visões essenciais da sua legitimidade. Em primeiro lugar, a escravidão é fruto do pecado original, fonte da perdição humana. Assim, a escravidão é punição e remédio, enquanto o escravo é pecador e penitente. Em segundo, a escravidão parece ser cativeiro, mas é salvação; o escravo redime a humanidade por meio do sacrifício. Em terceiro, a escravidão é o único meio de se criar riquezas na colônia. E, por fim, a escravidão é legítima se estiver adequada às instituições do direito civil e canônico. Nesse último sentido, pode-se, inclusive, lembrar da expressão "guerra justa" presente nos escritos do século XVI, referindo-se à escravização de ameríndios..

Durante mais de cem anos, a colônia portuguesa na América só contou com um único bispado, o da Bahia, criado em 1551. Em 1576, foi criada a prelazia do Rio de Janeiro História da Igreja em Portugal . Porto: Livr. Civilização Ed., 1968.v. 2. p.23, 33 - 34.. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1707, foram a única legislação eclesiástica em todo o período colonial. À colônia também não foram recomendadas visitas pastorais por Trento. O Concílio, aliás, não contou com prelado colonial algum para assistir a suas sessões, assim como não formulou, entre suas resoluções, uma política específica para o Novo Mundo. Distante de Roma, com uma estrutura eclesiástica fluida, tendo nos jesuítas os primeiros organizadores do catolicismo na colônia, nossa religiosidade caracterizou-se, assim, por seu caráter específico: colonial. "Branca, negra, indígena, refundiu espiritualidades diversas num todo absolutamente específico e simultaneamente multifacetado" O diabo e a Terra de Santa Cruz : feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 88..

Talvez, fosse mais adequado falar em religiosidades coloniais, uma vez que não houve uniformidade nas suas manifestações quer no espaço, quer no tempo. Próxima às crenças mágicas e sincréticas do catolicismo europeu - que atravessaram as classes sociais da Europa, e não só de Portugal, até o século XVII -, a religiosidade colonial misturou às tradições católicas, elementos das culturas africanas, ameríndias e judaicas. A religiosidade colonial caracterizou-se, sobretudo, por servir de estratégia na solução dos conflitos cotidianos que a religião oficial parecia não poder resolver. Assim, também uma das marcas constantes do catolicismo colonial foi o apego às exterioridades: profusão de capelas, aspecto teatral, culto a santos, afeição maior ao externo, à imagem do que a coisa figurada, do que ao espiritual. As festas coloniais do século XVIII - as ditas festas barrocas - são exemplares, nesse sentido. Via de regra, comemoravam motivos religiosos e políticos e, portanto, oficiais, mas não deixavam de apresentar aspectos lúdicos, com manifestações coletivas da cultura popular. Expressavam a singularidade e a mestiçagem cultural do espaço colonial caracterizado pela profusão de simbioses, sincretismos, complexificações, reinvenções Cf . GUIMARÃES, Dulce M. P. A festa do colonizado: aspectos das comemorações brasileiras do século XVIII e LAMBERT, H. M. F. C. Festa política: a face visível do poder. In : A Festa . Lisboa: Sociedade Portuguesa de Estudos do Século XVIII, 1992. v. I. Organizadas, predominantemente, pela Igreja, não deixavam de ter essas comemorações muito de um lazer profano. Tríduo, missa pontificial, procissão, iluminação da cidade e das casas, touradas, cavalhadas, congadas, óperas e danças várias eram elementos que caracterizavam tais festas. Mais do que isso, artifícios engenhosos promoviam uma ilusão de grandiosidade que envolvia o público e os seus participantes: a atenção com os trajes e alegorias, a profusão de efeitos visuais, os ornamentos, a iluminação, a suntuosidade e a pompa. Motivos tipicamente barrocos eram, pois, revividos e se revelavam no tom superlativo dos documentos que relatam essas festas. O barroco colonial acabava, assim, por reinventar o "maravilhoso", presente desde os primeiros relatos de viagens à América e que povoou a Europa medieval, estando presente no imaginário dos "descobrimentos" "O fato é que apesar de sua importância, a sacralização do maravilhoso é apenas um segmento de uma estrutura mais complexa. A mirabilia pertence como fenômeno, ao âmbito do desejado e por isso compartilha uma característica típica do desejo: a ubiquidade. Está em toda parte e em parte alguma. Dessexualizada, apesar de pertencer ao âmbito fortemente corporal dos homens monstros, perseguidora de um objetivo ausente, ela está destinada - como desejo reprimido - a sofrer contínuos deslocamentos e ainda assim permanecer elusiva." GIUCCI, Guilhermo. Viajantes do maravilhoso . Rio de Janeiro: CIEC/UFRJ, 1988. v.8. (Série Papéis Avulsos). p. 1. A América era a última fronteira do maravilhoso. As fantasias européias transmigravam à medida que se conheciam os lugares: da Índia passou à Etiópia e da Etiópia chegou à América; do mar Mediterrâneo veio ao Oceano Índico e do Índico ao Atlântico..

Se o Brasil, ainda hoje, não possui santos próprios, no período colonial, como demonstra Luiz Mott In : REUNIÃO DA ANPUH, 1991, Rio de Janeiro (UERJ), mimeo., vários homens e mulheres viveram e/ou morreram com fama de santidade. Homens e mulheres que foram objetos de devoção, mas que raras vezes mereceram processos de beatificação e, na maioria, não foram reconhecidos oficialmente pela Igreja Católica. Homens e mulheres que davam supostas provas de santidade desde a mais tenra idade, que tinham poderes sobrenaturais e eram capazes de ter visões. Além disso, as mortificações por que se faziam passar não eram poucas, assim como não foram os poucos os santos e santas que a colônia portuguesa na América conheceu, sem, no entanto, os ver subirem aos altares.

É também Luiz Mott quem estuda a influência da Espanha na formação religiosa do Brasil A influência da Espanha na formação religiosa do Brasil . Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1993. O autor procura resgatar quais elementos e tradições da religiosidade do Brasil tiveram na Espanha sua origem e inspiração, tendo encontrado quatro canais através dos quais se fez mais notável essa influência: "através de sacerdotes espanhóis que aqui missionaram; pela tradição do culto a diferentes invocações de Nossa Senhora cujas aparições se deram originalmente em território espanhol; pela devoção a santos e santas hispânicos e, finalmente, através de tratados de teologia e espiritualidade traduzidos do espanhol para a língua portuguesa" p. 8.. Entre os santos, o autor aponta S. Pedro de Alcântara, de Estremadura, que viveu entre 1499 e 1562. Rigoroso reformador da Ordem Franciscana na Espanha e em Portugal e conselheiro de Santa Teresa D'Ávilla e do Rei D. João III, seu culto se propagou no Brasil, especialmente, no século XIX, por ser o principal patronímico do nosso segundo Imperador. Mais do que isso, S. Pedro de Alcântara é patrono do nosso país In : FAUSTO, Bóris (org.). História geral da civilização brasileira . São Paulo: Difel, 1984. Tomo III, vol. 4. p. 294.. Então, seguindo a linha de pensamento de Luiz Mott, a influência da Espanha na nossa religiosidade teria ganho até mais vulto do que ele percebe. E mais ainda se levarmos em conta o que ele diz citando o Padre Machado:

"Segundo alguns estudiosos de nossa história religiosa, 'a estátua de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, não é senão a cópia em barro, do retrato miraculoso da aparição de Nossa Senhora de Guadalupe' uma portentosa evidência de quanto a mariologia hispânica marcou nossa piedade popular." A influência da Espanha na formação religiosa do Brasil . Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1993. p.18.

Caberia talvez perguntar se a devoção à Nossa Senhora de Guadalupe foi importada diretamente da Espanha - onde sua aparição se deu em finais do século XIII para o pastor Gil Cordero, no sítio Villuercas, em Toledo, e recebeu o encargo de fazê-la venerada em todo mundo, ou se chegou via México, em que a Virgem, em 1531, apareceu no monte do Tepeyac ao índio Juan Diego e pediu-lhe que intercedesse junto ao Bispo, para que este construísse um templo em sua honra; interpretação essa que parece mais provável. Aparecida na história e na literatura . Campinas: s/ed., 1975. p. 94 - 98.. Segundo N. B. Megale:

"De Portugal, para onde foi levada por dois lusitanos que estiveram no México, a devoção de Nossa Senhora de Tepeyac veio para a Terra de Santa Cruz com os primeiros colonizadores. Os pardos e os mestiços tomaram logo a Virgem Morena por padroeira, erigindo-lhe templos na Bahia e em Olinda." 107 invocações da Virgem Maria no Brasil : história, iconografia, folclore. Petropólis: Vozes, 1980.

Em 1590, um dos fundadores da Capitania de Sergipe, o capitão de mar e guerra, Pedro Homem da Costa, lá se estabeleceu, colocando sua estância sob a proteção da Virgem de Guadalupe. Em 1614, ela teria ajudado na expulsão dos franceses do Maranhão e Jerônimo de Albuquerque teria se tornado herói da expulsão dos holandeses, após invocar sua proteção ibid .. Cf . também MACHADO, João Corrêa. Aparecida na história e na literatura . Campinas: s/ed., 1975. p. 98 - 99..

Os descendentes de Pedro Homem da Costa vieram para São Paulo e formaram uma fazenda perto de Guaratinguetá, onde ergueram uma ermida em homenagem a Guadalupe. Pouco depois, na primeira década do século XVIII, em conflitos com os mamelucos, a capela teria sido arrasada e a imagem quebrada em dois pedaços, separada a cabeça do corpo. Um escravo, ordenado a fazer desaparecer a imagem, a teria atirado no rio O retrato de Nossa Senhora . Petrópolis: Vozes, 1954.. Esse relato explicaria o aparecimento da imagem quebrada nas águas do Paraíba e a idéia de que a imagem da Virgem de Aparecida é a de Guadalupe.

De qualquer forma, Nossa Senhora de Guadalupe mereceu na colônia portuguesa na América vários altares Cf . SANTA MARIA, Agostinho de, Fr. Santuário mariano , e história das imagens milagrosas de Nossa Senhora... Lisboa: Oficina de Antonio Pedroso Galram, 1722. tomo 9 e 10. em que foi venerada e na América espanhola, a Virgem Morena do Tepeyac, cujo culto se caracterizou sempre por expressões variadas de devoção coletiva, teve reconhecida sua proteção tanto pelos índios quanto pelos criollos ou espanhóis Quetzacóatl y Guadalupe . México: Fondo de Cultura Economica, 1992. passim ..

A devoção à Virgem de Guadalupe no México estava ligada, no seu início, à prática jesuítica de rezar o rosário. Sua primeira igreja, cuja obra se completou em 1622, foi construída com a ajuda dos devotos, notadamente criollos , demonstrando a força do culto desde o seu começo. Em 1694, foi inaugurado um novo prédio que foi edificado no mesmo lugar do anterior como fazia o antigo costume asteca de sempre construir as suas pirâmides no local das precedentes. As dimensões desse novo prédio fizeram dele um destaque entre os templos marianos na América Espanhola ibid .. p. 384 - 386..

A basílica da Guadalupe não foi a primeira construção religiosa no monte do Tepeyac. Antes dela, o lugar tinha abrigado o templo da deusa asteca da fertilidade, Tonantzin, que era associada à lua e possuía poder de proteger o seu povo, o que possibilitava a construção de laços de similitude com a Guadalupe O poder sagrado da imagem provocou peregrinações desde os primeiros tempos devocionais, assim como expressões variadas de devoção coletiva. O monte era, ao mesmo tempo, visitado por autoridades mexicanas e visitantes ilustres.

"Asilo prometido a toda la cristiandad en el día del juicio, el Tepeyac era, más simplemente, el refugio de las tribulaciones, la etapa de los adioses para los virreyes que llegaban al término de su gobierno y una especie de embajada celeste, que gozaba del privilegio de la extraterritorialidad a una media legua al norte de la capital." ibid ., p. 386.

Foi na segunda metade do século XVII que veio o reconhecimento da aparição pela Santa Sé.

"Para los doctores romanos sólo había una imagen más de María Inmaculada; para los españoles era una cópia de la Guadalupe de Extremadura, pero a los ojos de los indios en el Tepeyac sólo estaba la diosa madre de los aztecas, Tonantzin." ibid .. p. 388.

A aparição da Virgem de Guadalupe corresponde a uma espécie de segunda encarnação do Verbo divino. Maria, como acontecera com Jesus, encarnava no Tepeyac para trazer a salvação do México. Guadalupe é, ao mesmo tempo, rainha e mãe dos mexicanos. Consagrar-se a essa Senhora era dar-se completamente a ela e, por seu intermédio, a Jesus.

Com a cor morena, Guadalupe fez dos criollos , mestiços e índios um só povo unido pela fé, ainda que não se tivesse eliminado as diferenças culturais.

"Mucho antes de tener conciencia de estar formando 'el pueblo mexicano', los mexicanos, todos los mexicanos, tuvieron conciencia de ser 'hijos de Guadalupe' (...)." Mesías, cruzadas, utopías . El judeo-cristianismo en las sociedades ibéricas. México: Fondo de Cultura Económica, 1984. p. 135.

A Virgem foi estandarte na luta pela independência e quando esta aconteceu os sentimentos da nacionalidade já haviam se manifestado. Foi bandeira desse combate político, assim como um século esteve presente nos estandartes carregados pelos camponeses na revolução zapatista Palavra e sangue : política e sociedade na América Latina. São Paulo/Campinas: Trajetória Cultural/Ed. da UNICAMP, 1989. p. 119. e, hoje, pode ser encontrada não só nos templos mexicanos, mas adornando a frente das casas, no interior de restaurantes, em ônibus e táxis. ibid .. p. 226.

A bem-aventurança da Guadalupe em representar a nação deita raízes na tradição cristã da mulher do Apocalipse, vestida de sol, que luta contra o Anticristo. A imagem da Virgem, a serenidade de sua expressão exercia - e exerce - atração sobre as pessoas, misturando devoção e sentimentos patrióticos. Os seus milagres, ao mesmo tempo que são reveladores da difusão da crença na Guadalupe, podem fazer vislumbrar como se desenvolveu o seu culto, colocando em evidência a amplitude do seu poder protetor.

Como uma mãe especial, a Virgem de Guadalupe pode dar vida e esperança aos mexicanos, mas sua importância vai para além disso.

"The Guadalupe is important to Mexicans not only because she is a supernatural mother, but also because she embodies their major political and religious aspirations" ibid .. p. 229.

Para os índios, Guadalupe representava a esperança de salvação no retorno de Tonantzin e, mais ainda, um testemunho simbólico de que, como os espanhóis, eles podiam ser recebidos e salvos pelo cristianismo. A Virgem lhes garantia um lugar na ordem e na organização social da Nova Espanha e lhes trazia a promessa de libertação da opressão colonialista. Para os mestiços, ela também assegurava um lugar na sociedade, fazendo-os se perceberem mexicanos e acreditarem que o México poderia se libertar do domínio espanhol.

Se a primitiva imagem do Tepeyac era uma cópia da espanhola Virgem de Guadalupe de Villuercas, a intervenção da Guadalupe nas terríveis inundações no México em 1629, fez com que se iniciasse seu processo de "mexicanização" Quetzacóatl y Guadalupe . México: Fondo de Cultura Economica, 1992. p. 408.. As diferentes etnias pertencentes ao México passaram a ter em comum a devoção a Nossa Senhora de Guadalupe. Ao aparecer a um índio, Guadalupe teria elegido um humilde como aquele que deveria transmitir sua mensagem que poderia assim atingir toda a comunidade, conquistando um caráter popular a sua devoção.

"The Guadalupe symbol thus links toghether family, politics and religion; colonial past and independent present; Indian and Mexican. It reflects the salient social relationships of Mexican life, and embodies the emotions which they generate. It provides a cultural idiom through which the tenor and emotions of relathionships can be expressed. It is, ultimately, a way of talking about Mexico: a 'collective representation' of Mexican society." In : Cessa, W. A. & Vogt, E. Z.. Reader in comparative religion . New York, 1965. p. 230.

A Virgem de Guadalupe pode ser um símbolo para uma sociedade que afirmou, assim, sua identidade nacional. Espécie de paradigma da devoção latino- -americana à Maria, ela se tornou a padroeira principal da América Latina. Em 1963, foi inaugurada a primeira igreja-paroquial dedicada especialmente ao culto de Nossa Senhora Aparecida fora do território brasileiro. Foi no México, país da Virgem de Guadalupe.

Nessa tentativa de construir uma visão de conjunto da devoção mariana na colonização ibérica na América, ainda vale lembrar duas histórias de outras colônias hispânicas, escolhidas dentre as devoções marianas, por apresentarem aspectos bastante interessantes, ora pelo ineditismo, ora pelo caráter emblemático. A primeira delas é a de Nossa Senhora de Lujan, padroeira da Argentina, a outra é a de Nossa Senhora de Coromoto da Venezuela.

Por volta de 1630, o português Antonio Farias Sá, desejando construir uma capela em honra da Virgem Maria na sua fazenda Sumampa, em Santiago del Estero, na Argentina, escreveu para seu amigo, o também português André Juan, morador de São Paulo, para que lhe conseguisse uma imagem da Imaculdada Conceição. Seu amigo então lhe enviou duas imagens: uma da Imaculada Conceição e outra da Virgem com o Menino Jesus nos braços. Os caixotes com as imagens chegaram ao porto de Buenos Aires e de lá foram mandados por carretas para Sumampa. No caminho, fizeram uma parada para descanso, à margem esquerda do rio Lujan. Ao amanhecer, quando puseram os carros para se mover, os bois não conseguiram tirá-los do lugar. Depois de várias tentativas, alguém da comitiva sugeriu que fossem retirados os caixotes. Um por um foi sendo retirado para ver se a carreta voltava a andar, mas isso só aconteceu quando um certo caixote foi retirado. Ao ser aberto, percebeu-se que era o da imagem da Imaculada Conceição.

A mensagem parecia então clara: a Virgem não desejava deixar aquele local. A imagem foi então levada para uma fazenda próxima e um escravo negro que acompanhava a viagem resolveu acompanhá-la para dedicar-se a Virgem. O lugar ficou conhecido como o da "detenção da carreta" ou "Milagre de Lujan". A partir daí, começaram as peregrinações e milagres.

O que mais chama atenção nessa história, do ponto de vista dos objetivos desse trabalho, são as semelhanças dessa imagem com a de Nossa Senhora Aparecida Manual do devoto de Nossa Senhora Aparecida : "A estatuazinha, de traços delicados, se apresenta com um sorriso nos lábios, descobrindo os dentes da frente. O rosto arredondado tem uma covinha no queixo. O penteado trabalhado cai em duas pequenas tranças ladeando a fronte ampla. Nos cabelos aparecem flores e na testa há um diadema com três pérolas pendentes. As mãos postas, pequenas e delicadas, são como as de uma menina. As mangas, simples e justas, vão até o punho. A túnica e o manto são pregueados e chegam ao chão. Aos pés, estão uma cabecinha de anjo e a meia-lua, como geralmente é representada a Imaculada Conceição." REDENTORISTAS. Manual do devoto de Nossa Senhora Aparecida . Aparecida: Ed. do Santuário, 1978. p. 19..

"Imagem pequenina (38 centímetros de altura), de terracota. Mãos juntas ao peito, a lua debaixo dos pés, sobre nuvens, rodeada de anjos. O corpo todo coberto com um manto de cetim azul, bordado de ouro, deixando aparecer somente o rosto e as mãos. Um colar com uma cruz e na cabeça uma coroa imperial." Maria na América . Bragança Paulista: A & B Editora, 1992.

Lida fora de contexto essa descrição bem que poderia passar como a da Virgem de Aparecida, tirando um detalhe ou outro. Levando em consideração ainda que foi um morador de São Paulo a fornecer a imagem ao português e na mesma época em que se estima a feitura da imagem de Aparecida, essas semelhanças são bastante intrigantes e um estudo mais pormenorizado poderia ser revelador.

A teimosia da Virgem na escolha do lugar em que quer ficar é comum a várias dessas histórias, como a de Nossa Senhora dos Anjos da Costa Rica e de Nossa Senhora da Paz de El Salvador.

Em 1652, o cacique Coromoto e sua mulher se dirigiam à lavoura quando viram uma belíssima mulher com um menino no colo, andando sobre as águas do rio. A mulher dirigiu-se ao cacique e, falando em sua língua ordenou que fosse aonde moravam os brancos e se batizasse. Coromoto, convencido, procurou a catequese, mas logo perdeu o entusiasmo e abandonou o estudo.

A Virgem, então apareceu-lhe de novo, insistindo com ele. O cacique se revoltou e disse que não faria o que ela pedia. Disse ele: "Por ti deixei os meus afazeres e vim passar aqui dificuldades." Sua mulher tentou acalmá-lo, mas Coromoto, não suportando a presença da Virgem que lhe sorria, pegou o seu arco e atirou na Virgem uma flecha com ponta de pedra, gritando: "Só te matando me deixarás." E a Virgem desapareceu.

O cacique ficou imóvel, com uma das mãos fechada. Ao abri-la, nela apareceu uma pequena imagem resplandecente da Virgem. Coromoto levou a imagem para casa e lá se tornou local de orações e romarias.

Essa história impressiona pela diferença da atitude do vidente que normalmente é sempre muito dócil e solícito. Aqui se trava um verdadeiro embate e o discurso do índio revela as dificuldades que podiam ser enfrentadas pelo deu povo nos aldeamentos catequéticos. É uma história, ao mesmo tempo, com elementos de violência e de rara beleza.

Finalmente é interessante observar um quadro com os países da hoje América Latina e suas respectivas Virgens padroeiras ou de mais significativa devoção.

PAÍS: NOSSA SENHORA: INÍCIO DA DEVOÇÃO: MILAGRE: PERSONAGENS PRINCIPAIS:
Argentina de Lujan Séc. VII "Detenção da Carreta" Fazendeiro português e escravo negro.
Bolívia Copacabana Séc. XVI A imagem feita pelo índio se auto-restaura, tornando-se bela e aceitável para devoção Índio de descendência Inca
Brasil Aparecida Séc. XVIII Encontrada nas águas do rio com corpo separado da cabeça Três pescadores mamelucos.
Chile do Carmo Séc. XVII Devoção importada San Martin, às vésperas da Independência do Chile, coloca o exército dos Andes sob a proteção da Virgem do Carmo.
Colômbia de Chiquinquirá Séc. XVI A Virgem se desprende da imagem de um quadro e torna-se resplandecente, restaurando toda a pintura em estado de deterioração. Uma espanhola, uma índia e seu filho mestiço.
Costa Rica dos Anjos Séc. XVII Encontrada em um bosque a imagem teima em lá retornar até que o padre local reconhece o milagre e ali resolve construir um oratório para a imagem Uma jovem negra
Cuba da Caridade Séc. XVII A imagem foi encontrada boiando sobre uma tábua nas águas do mar, depois de três dias de forte temporal, estando suas vestes de pano secas Dois índios e um escravo negro
El Salvador da Paz Séc. XVII Encontrada dentro de uma caixa que estava atirada nas areias, é levada até as autoridades em um burro que empaca na praça diante da Igreja Mercadores
Equador de El Quinche Séc. XVI Aparições aos índios de uma tribo pedindo um altar em troca da proteção contra ursos que os atacavam. Índios da tribo e artista espanhol que presenteia a tribo com uma imagem da Virgem em troca de madeira
Guatemala do Rosário - Devoção importada -
Honduras de Suyapa Séc. XVIII A imagem da Imaculada Conceição incomodava as costas do lavrador que tentava dormir na relva. Jogada ao longe, ela retorna. O rapaz coloca na mochila o objeto que só vai reconhecer na manhã seguinte. Um jovem lavrador.
México de Guadalupe Séc. XVI Aparição e deixa sua imagem pintada no poncho mexicano. Índio
Nicarágua La Puríssima - Devoção importada Missionários franciscanos que introduziram a devoção a Imaculada Conceição
Panamá da Assunção - Devoção importada Missionários franciscanos que introduziram a devoção a Assunção de Maria
Paraguai de Caacupé Séc. XVII Encontrada dentro de uma mala por um índio quando baixavam as águas do rio que inundara aldeias indígenas Dois índios: o que pescou a imagem e o que, segundo a tradição a teria feito, anos antes, como pagamento de uma promessa que fez a Virgem quando estava sendo perseguido por índios de uma tribo inimiga e ela o salvou.
Peru das Mercês - Devoção importada Mercedários.
Rep. Dominicana de Altagracia - Um dono de terras procura uma imagem de N. S. de Altagracia a pedido de sua filha mais nova sem sucesso, nem o Arcebispo a conhecia. Um velhinho se apresenta como tendo uma imagem a oferece e depois some. Colonos.
Uruguai dos Trinta e Três Séc. XVIII Proteção à Pátria no momento da independência. Os 33 homens comandados pelo General A. Lavalleja que participaram da independência uruguaia.
Venezuela Coromoto Séc. XVII Aparece a índios e lhes pede sua conversão ao cristianismo. Cacique Coromoto.

Devoção importada refere-se aqui às devoções que introduzidas a partir dos colonizadores não tiveram fato especial algum ocorrido na colônia que as fizesse ganhar um tom novo, local, como a aparição da Virgem, ou de uma imagem sua ou a confecção de uma imagem sua por colonizados .

* Fonte: FERREIRA, José Lélio Mendes. Maria na América . Bragança Paulista: A & B Editora, 1992.

O quadro nos revela dados interessantes. O primeiro deles é a incidência, na América espanhola, de histórias cujo interlocutor da Virgem são índios. Os casos se repetem na Bolívia, Colômbia, Equador, Paraguai, República Dominicana e Venezuela, além do já citado caso mexicano. História devocionais com personagens negros encontramos na Argentina e Costa Rica. E há o caso curioso de Cuba, onde a Virgem é encontrada por um negro e um índio juntos. Ainda se pode notar a importância dada aos índios para o crescimento das devoções importadas , como na Guatemala, além do caso da Virgem de Honduras conhecida como morenita . Em todos esses casos, o que se dá a perceber é que a Virgem Maria na América parece ter precisado se colorir da cor mestiça daqueles que deviam ser convertidos e engrossar as suas fileiras de fiéis.

Por outro lado, é também interessante notar que, na América espanhola, o tema indígena aparece mais forte, possibilitando-nos levantar a hipótese de que Maria ao falar ora com índios, ora com negros, em uma sociedade colonial com dificuldade para integrá-los, abria um canal para a Igreja chegar aos setores populares mais distantes do seu discurso. A Igreja encontrava um meio de transformar o colonizado que lhe parecia rebelde em aliado no fortalecimento da sua presença nas colônias americanas. Não seria casual, portanto, tantos casos de aparição a índios na América espanhola, uma vez que lá a sua domesticação, inclusive como mão-de-obra, foi uma preocupação mais constante do que na América portuguesa. Nesse sentido, também, pode-se buscar o caminho para o entendimento da atribuição da cor negra a Aparecida. Atribuição essa que teve que transcorrer um longo percurso até que se tornasse oficial o discurso de sua cor negra.

Vale ainda ressaltar que o fenômeno das Virgens negras não é exclusivo da América. Há o caso da Virgem negra Czestochowa, padroeira da Polônia e o da padroeira da Cataluña, entre outras. Entretanto, o que aqui se procurou demonstrar foi a importância da devoção mariana para a compreensão do período colonial na América ibérica. Tantos casos de manifestações e encontros de imagens da Virgem Maria a colonos e colonizados nos levam a perceber que esses fenômenos não eram isolados, mas, sim, faziam parte de todo um universo de crenças e práticas religiosas que cabia a Igreja Católica normatizar e incorporar, na medida em que lhe parecesse útil para a sua obra evangelizadora. Dessa forma, este trabalho alia-se às análises do projeto evangelizador catequético da Igreja Católica na América ibérica colonial, ao procurar compreender seus intrumentos simbólicos, no caso específico desta pesquisa, a promoção de devoção mariana.


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