49 Congreso Internacional del Americanistas (ICA)

Quito Ecuador

7-11 julio 1997

 

Jacqueline Hermann

O sebastianismo atravessa o Atlântico Análise de um documento da Primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil

Jacqueline Hermann

Doutora em História Social e

Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro/Brasil

1- Introdução

A crença na volta de um rei para salvar Portugal das mãos dos castelhanos e devolver-lhe a independência e a glória dos primeiros tempos dos descobrimentos surgiu entre os lusitanos entre fins do século XVI e meados do século XVII. Ancorado no infortúnio da trágica derrota do exército lusitano frente aos mouros no Norte da África, em 1578, o fenômeno messiânico do sebastianismo foi lenta e definitivamente tecido a partir do desaparecimento do corpo do jovem rei D.Sebastião e de grande parte de sua tropa de quase vinte mil homens, na fatídica batalha de Alcácer Quibir. Dirigindo pessoalmente o ataque a um exército mouro que as narrativas chegam a estimar em cem mil combatentes, D.Sebastião assumiu o papel de um verdadeiro rei cruzado em luta pela expansão da fé em terra de infiéis. Resgatando o antigo sonho luso de instaurar uma base do império português no Norte da África, D.Sebastião teria se deixado levar, segundo seus inúmeros críticos e detratores, por um projeto infantil e irrealizável, sendo por isso responsabilizado por todas as desventuras que caíram sobre Portugal depois de Alcácer Quibir.

O curto reinado desse jovem monarca que desapareceu aos 24 anos, solteiro, sem deixar herdeiros para o trono e tendo como substituto o já velho e doente Cardeal D.Henrique, trouxe para Portugal a urgente e gravíssima questão sucessória que acabou levando à união das coroas portuguesa e castelhana, ultrajante para os lusitanos e perseguida há muito pelos espanhóis. Para a imensa maioria dos historiadores e estudiosos portugueses do período, toda essa humilhação só pode ser explicada pelas doentias peculiaridades pessoais de um monarca considerado no mínimo despreparado, quando não louco, irresponsável e aventureiro, e que em nada se identificaria com a gloriosa e honrada dinastia dos Avis, da qual nosso rei também fazia parte. Último representante de uma linhagem que já tivera um monarca do porte de um D.Manoel, o Venturoso, D.Sebastião herdara apenas, ainda segundo seus críticos, a bravura de seus antepassados, mas uma bravura insana, infantil e inconsequente (1).

Mas para que possamos compreender um pouco melhor como um rei tão criticado, e pessoalmente responsabilizado pela dupla desonra que levou Portugal a ser derrotado pelos seus dois inimigos ancestrais mouros e castelhanos , acabou nomeando um fenômeno extremamente complexo e duradouro como foi o sebastianismo, é preciso que lembremos quanta expectativa cercou a vida deste monarca que já nasceu com o codinome de Desejado. Quando em 20 de janeiro de 1554 nasceu D.Sebastião, as ruas de Lisboa se encheram de louvações e agradecimentos a Deus pelo envio de um herdeiro para o trono, poucos dias depois do falecimento de seu pai, o Príncipe D.João. Neto de D.João III, que teve seu reinado marcado pelo recuo do ímpeto conquistador que celebrizara D.Manuel, D.Sebastião chegou ao trono aos três anos de idade e esteve durante toda a sua infância em meio às disputas políticas que opuseram a rainha D.Catarina, castelhana, sua avó e tutora, e o Cardeal D.Henrique, tio-avô do pequeno rei e ferrenho adversário às pretensões espanholas de união dos dois reinos.

Nascido e criado para dar continuidade à exitosa história de sucessos expansionistas dos Avis, D.Sebastião recebeu esmerada educação jesuítica e cuidadosa preparação para a arte da guerra. Cercado e pressionado pelos partidários de D.Catarina e do Cardeal, o Desejado assumiu o comando do reino aos 14 anos e desde pequeno esteve enredado em conspirações palacianas que tinham como principal articulador ninguém menos que Felipe II de Espanha, seu tio. Este quadro de expectativas e pressões, aqui brevemente enunciado, deve ser considerado para que entendamos o contexto em que D.Sebastião organizou e dirigiu a desastrosa batalha no Norte da África, isso para não falarmos na conjuntura da história marroquina e da especificidade de suas disputas políticas, aspectos que tiveram peso decisivo para o desenrolar final dos acontecimentos.

O fato é que a espera da volta de D.Sebastião, iniciada depois da derrota em Alcácer Quibir, fez do Desejado o rei esperado para resgatar Portugal de seu sofrimento e acabou nomeando um fenômeno que atravessou os séculos, conheceu manisfestações eruditas e populares, produziu cortes farsescas e visionárias que diziam visitar o rei desaparecido e toda sua família numa Ilha Encantada e Encoberta. No conjunto de modalidades da crença sebástica que até agora pude analisar, é possível estabelecer uma nítida diferença entre manisfestações e registros deixados pelos letrados nobres, astrólogos e religiosos, dentre os quais se inclui ninguém menos que o célebre jesuíta Antônio Vieira e pelos populares: enquanto para estes últimos a espera da volta do Encoberto é vivida intensa e positivamente, seja através da encenação de cortes que abrigam falsos reis, seja através de visitas a palácios imaginários, para os homens de letras a expectativa da volta do Encoberto se traduz em textos sombrios, nostálgicos e profundamente marcados por um messianismo de fundo explicitamente judaico.

A presença desse ingrediente filosemita no tipo de messianismo régio que Portugal conheceu depois da desventura de D.Sebastião indica não só a presença e a força da cultura judaica no mundo ibérico, como é capaz de explicar o papel desempenhado por aquele que seria considerado o profeta do sebastianismo, o sapateiro Gonçalo Annes, o Bandarra. Habitante da vila de Trancoso, sítio de concentração de cristãos novos, suas famosas Trovas, produzidas antes mesmo de D.Sebastião nascer, acabaram alçadas à categoria de profecias que prediziam a volta do Encoberto, indicavam seu nome e previam a data de sua chegada.

A entrada desse personagem em nossa história e a importância dos versos que lhe foram atribuídos nos obrigam a recuar à primeira metade do século XVI para conhecer um pouco melhor este artesão que acabou sentenciado pela Inquisição de Lisboa, em 1541.

2- As Trovas do Bandarra e o início da crença sebástica

Segundo os poucos dados biográficos disponíveis, Gonçalo Annes Bandarra teria nascido em 1500 na vila de Trancoso, região da Beira, durante séculos disputada por cristãos e muçulmanos por ser área de passagem entre o sul e o norte do país e onde acabou se instalando um pequeno centro de comércio dirigido por judeus. Transformada em região de grande concentração de cristãos novos, depois do estabelecimento da conversão forçada, em 1497, tornou-se um dos alvos de suspeição do Santo Tribunal da Inquisição, instaurado em Portugal em 1536. Vale dizer que, diferentemente do principal tribunal medieval da inquisição, organizado pelos dominicanos, subordinado ao papa e principalmente dedicado à perseguição dos cátaros, albigenses e outras seitas heréticas dos séculos XIII e XIV, o Santo Ofício ibérico se organizou não só como tribunal eclasiástico diretamente subordinado à Monarquia, como teve na sistemática perseguição anti-semita seu principal alvo persecutório, intensificando sua atuação de forma violenta a partir da segunda metade em Portugal, à semelhança do que ocorria em Espanha desde 1478.

Processado ainda nos primeiros anos da ação inquisitorial lusitana, o processo de Gonçalo Annes, extremamente sumário e sem contar com a parte dedicada à genealogia, instituída posteriormente nos ritos processuais, não apresenta nenhuma prova de sua origem judaica(2). Seu processo o penitenciou por ser amigo de novidades, e com ela causar alvoroço em cristãos novos, escrevendo trovas que por falta de declaração se entendiam de outra maneira, o que nos indica a convivência de nosso sapateiro com uma grande comunidade de recém conversos,convivência esta, aliás, explícita nos depoimentos que compõem o seu processo, a maioria deles de cristãos novos. Some-se a isso outro dado eloquente e estranhamente ignorado pelos inquisidores: o fato de Bandarra ser considerado uma espécie de rabi por um grupo de cristãos novos, gente que o procurava para consulta-lo sobre a interpretação dos textos que escrevera e a realização que esperavam das profecias (3).

Mas para que não pareça que Bandarra era o único em seu ofício de escrever e divulgar profecias, que a bem da verdade ele mesmo chamava de trovas, cabe lembrar que não só em Portugal, como em vários outros países europeus, na virada do século XV e ao longo de todo o século XVI, houve uma verdadeira proliferação de profetas, quando não de pseudomessias que diziam ser mensageiros de Deus que criam e anunciavam o Juízo Final. Em Portugal, para nos restringirmos ao nosso tema, não foi pequena a presença e a força desses aspectos milenaristas e escatológicos entre os populares quinhentistas, grupo a que pertenceu Bandarra, e só para citar um exemplo, lembro o caso da alfaiate Luís Dias, que saiu no mesmo Auto de Fé de nosso sapateiro, em 1541, depois de afirmar ser o próprio Messias reencarnado(4).

Talvez pelo fato da inquisição estar ainda dando seus primeiros passos; talvez porque tivesse casos mais graves como o de Luís Dias a averiguar e até mesmo por Bandarra jamais ter se considerado um profeta, o fato é que seu processo mereceu pouca atenção dos inquisidores, embora, curiosamente, suas trovas tenham se tornado, décadas depois, a principal referência para os que passaram a alimentar a crença na volta de um Rei-Messias, encarnado primeiro por D.Sebastião e, depois da Restauração, por D.João IV (5).

Mas para que nos situemos melhor na complexa conjuntura que permitiu a produção de um documento que acabou finalmente publicado no século XVII, mas que à época da prisão de Bandarra circulava manuscrito, além de provavelmente ser lido em voz alta para pequenos grupos, precisamos estar atentos às questões que envolveram a produção de uma literatura escrita na Europa quinhentista. Ainda embrionária mesmo para os chamados grupos letrados leigos da época, as possibilidades de confecção, circulação e apreensão de um documento escrito por parte de seus prováveis escritores, leitores e ouvintes obedeceram às limitações impostas pelas condições materiais de sua produção e às características de um longo período de transição em que as relações com o mundo das letras ainda eram incipientes. Devemos acrescentar a esse quadro todas as dificuldades já conhecidas para uma definição precisa e unívoca da expressão cultura popular, categoria na qual estou incluindo nosso sapateiro, questão na qual não me deterei por fugir aos objetivos deste texto(6).

Nessa perpectiva, para que nos aproximemos do sentido da produção de um texto escrito, seja para seu autor, seja para o seu eventual público, é preciso uma operação delicada de reconstrução do processo que conjugou a necessidade da escritura, num momento em que seu valor como discurso autônomo ainda se construía, com o sentido que o papel da mensagem elaborada poderia ter tanto para o provável produtor do texto numa época em que o valor da autoria, sobretudo entre os populares ainda começava a se formar, quanto para seus leitores e/ou auditores. Este cuidado faz-se necessário para que não atribuamos a um texto popular um papel de porta-voz de um certo grupo ou cultura, conferindo-lhe um peso social e político impensáveis para a comunidade que o produziu. Estas observações gerais são importantes não somente para uma melhor compreensão das trovas atribuídas a Bandarra, como para as releituras a que este texto se prestou dentro e fora de Portugal, como é o caso do exemplo a ser aqui analisado.

Por ora convém lembrarmos que, embora Bandarra não tenha sido acusado e condenado por crimes de judaísmo, toda sua vida foi passada em meio a judeus recém conversos que ainda não tinham assimilado completamente as novas imposições político-religiosas institucionalizadas em Portugal com o Tribunal do Santo Ofício. A convivência de Bandarra com essa comunidade específica nos coloca diante de um aspecto precioso para que entendamos a importância da presença da cultura judaica na disseminação de uma maior aproximação e intimidade com a literatura escrita, já que o judaísmo se define como a religião do Livro Revelado, isto é, não só como a religião codificada em livro, mas a religião em que o livro bíblico é o centro. Este aspecto da vida do sapateiro de Trancoso, aliado à sua origem e ofício populares, coloca Bandarra na intersecção entre o oral e o escrito no início da Época Moderna, o que nos permite encontrar em suas Trovas tanto elementos das religiosidades cristã e judaica, como ingredientes do maravilhoso medieval e reminiscências do ciclo arturiano que ainda alimentavam as esperanças e os medos dos homens da Europa quinhentista.

A história construída pelo sapateiro de Trancoso sobre as glórias, as dificuldades e o destino imperial do reino português, percorreu um tortuoso caminho até chegar à edição publicada em 1989, considerada, hoje, a provável versão original da primeira publicação completa que esse texto conheceu em 1644. A essa edição seicentista se seguiriam as de 1809 e 1866(7). Vale ressaltar que todas essas versões, além de outras consideradas ilegítimas, surgiram em momentos difíceis da história política portuguesa, momentos esses em que novamente, por diferentes razões e em diferentes contextos, a soberania do reino e mesmo da monarquia se viram ameaçadas. A recorrência ao apelo nostálgico e melancólico inscrito na imagem da volta de um rei messiânico e soberano conferiu ao sebastianismo um inegável poder de resistência política e às Trovas de Bandarra um peso inquestionável na construção da crença sebástica, sobretudo àquela surgida entre os letrados portugueses na época barroca.

Entre os populares, a penetração, disseminação, releitura e reinterpretação das Trovas de Bandarra, em Portugal, nesse mesmo período e fora da comunidade de cristãos novos ainda conhecem poucos estudos. Mas não há dúvida que, com estes últimos, os escritos do sapateiro de Trancoso acompanharam a diáspora que espalhou os recém conversos portugueses pelos quatro cantos do Império Lusitano, estivessem esses fugindo da sanha inquisitorial ou sendo deportados por ela. Também é certo que muitas são as dificuldades para o resgate da trajetória e do destino dos escritos messiânicos de Bandarra em culturas diversas da portuguesa, trabalho tão difícil quanto fértil para o conhecimento de impensadas imbricações culturais. A análise de um pequeno documento que atesta, no mínimo, uma importante via de chegada de escritos atribuídos ao sapateiro de Trancoso no Brasil, é o que tentarei fazer a seguir. O objetivo, até mesmo pela precariedade da fonte, é tão somente levantar algumas hipóteses sobre os caminhos que o sebastianismo de fundo judaico, e ancorado nas Profecias do Bandarra, conheceu no Brasil colonial.

3- As Trovas Proféticas atravessam o Atlântico

O Brasil não chegou a ter tribunal Inquisitorial próprio, embora no tempo da dominação filipina em Portugal, fase de consolidação do sebastianismo no reino, Felipe IV de Espanha tenha proposto a criação de um tribunal do Brasil, a exemplo do que já existia em Goa desde 1560 e dos que, na América Hispânica, funcionavam em Lima, México e Cartagena. A resistência portuguesa ao projeto acabou impedindo a criação do tribunal colonial, embora não tenha impossiblitado a ação da inquisição portuguesa no Brasil, ação essa que se deu através de algumas visitações inquisitoriais, entre 1591 e 1646 (8).

A ação inquisitorial no Brasil deu continuidade ao processo de expansão levado a efeito pelo Tribunal do Santo Ofício no final do século XVI. Depois de consolidada no reino e, acrescentando a seus propósitos originalmente anti-semitas o espírito da Contra Reforma, a Inquisição ordenaria diversas inspeções nos domínio lusitanos do ultramar, como aponta Vainfas. Exemplo disso é que ainda na última década de 1590, além do Brasil, receberam visitações inquisitoriais Açores, Madeira e Angola.

O pequeno documento que vou analisar faz parte da documentação produzida por ocasião da Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil, dirigida pelo visitador Heitor Furtado de Mendonça entre 1591-1595(9). Devemos o conhecimento de parte das denúncias e confissões produzidas nessa visita ao inestimável trabalho de Capistrano de Abreu, que compilou parte dessa documentação e abriu um vasto e fértil campo de investigação para o conhecimento do cotidiano, das relações de poder, dos costumes e das religiosidades populares no Brasil colonial (10).

A denúncia contra Gregório Nunes, ou Gregório Nidrophi, foi feita por João Batista, em 13 de agosto de 1591, portanto pouco mais de um mês da chegada do Visitador à Bahia, portanto ainda no tempo da Graça , período de 30 dias no qual os que confessassem seus erros ficavam livres de castigos corporais e do confisco de bens. O denunciante, um cristão novo que fugira da Turquia para Portugal, era penitenciado pela Inquisição de Lisboa e, provavelmente, temeroso de novo envolvimento com as malhas inquisitoriais, apressou-se a denunciar suspeitos de judaísmo, de curandeirismos e de atitudes que podiam indicar pactos demoníacos.

Parece clara, portanto, a intenção de nosso denunciante em colaborar com a visitação, o que confirma as análises que já apontaram o medo que tomava conta dos habitantes da colônia quando das inspeções inquisitoriais, gerando uma atmosfera de vigilância, um atiçar de memórias, sentimentos de culpa e acessos de culpabilização, como tão bem resume Vainfas. Mas talvez mais deletério que isso tenha sido o sucesso das inquirições em, além de estimular cumplicidades e resistências, minar as solidariedades, arruinando lealdades familiares, desfazendo amizades, rompendo laços de vizinhança, afetos, paixões. Despertavam rancores, reavivavam velhas inimizades, atiçavam velhas desavenças(11).

Não temos como saber se João Batista denunciara Gregório Nunes, Lionel Mendes e as mulheres conhecidas como Boca Torta e Mineira por vingança pessoal ou se queria mostrar-se plenamente recuperado de seus erros, mas não parece impossível admitir que pelo menos em ou outro caso pudesse estar tratando de desavenças pessoais. No caso de Gregório Nunes, não só a quebra de solidariedade aparece claramente no fato de um cristão novo já penitenciado estar denunciando outro recém converso, como pelo fato dos dois terem partilhado um cotidiano de dificuldades e privações durante a viagem que os trouxe ao Brasil. Isto porque João Batista conheceu Gregório no navio que, vindo da ilha Madeira, os aportou na Bahia em 1587.

Não parece também impossível supor que ambos estivessem chegando ao Brasil ou fugindo da inquisição ou degredados por ela, como quase certamente foi o caso do denunciante. Laura de Mello e Souza nos informa que desde 1535 o rei D.João III começou a incentivar o degredo para o Brasil, transferindo o degredo de São Tomé para a nossa antiga colônia, função reforçada pela transferência do degredo da ilha do Príncipe, em 1549. Mas foi certamente a partir do início do século XVII que o destino de parte dos penitenciados pelos Tribunais de Évora, Lisboa e Coimbra passou a ser o Brasil, transformando-o, junto com as demais colônias portuguesas, no que o historiador português Costa Lobo chamou de ergástulo de delinquentes(12).

As acusações de João Batista a Gregório Nunes se referiam ao tempo da viagem, onde os dois, e mais um grupo de cristãos novos e velhos, viajavam no mesmo camarote. A considerarmos a análise de Angélica Madeira sobre como a divisão dos espaços e das funções dentro dos navios quinhentistas podiam espelhar a hierarquia social(13), parece razoável presumir que todos estivessem cumprindo pena de degredo. A compartimentação dos espaços, embora pudesse ser, em alguns casos, transgredida durante o dia, informava sobre os lugares sociais dos viajantes quanto a suas habitações noturnas, o que significa dizer que todo o grupo no qual se incui o denunciante e o acusado de nosso documento se encontravam no mesmo degrau da escala social revivida no microcosmo das naus que atravessavam os perigos dos oceanos.

Segundo a denúncia de João Batista, Gregório Nunes, ou Nidrophi, era meio flamengo, filho de flamengo e de cristã nova, segundo ouviu dizer e morador e casado em Lisboa(14). Além de acusá-lo de fazer pouco caso das ladainhas e das orações, praticar com mulheres durante as missas rezadas no navio, o denunciante toca no ponto que mais nos interessa: afirma que Gregório Nunes algumas vezes se referia às trovas do sapateiro de Trancoso que chamam de Bandarra, e chega a recitar uma das estrofes, devidamente registrada pelo notário, para sorte de nosso texto.

Mas antes que entremos na análise da estrofe citada, podemos fazer algumas observações sobre estas primeiras informações do denunciante. Em primeiro lugar o fato de João Batista afirmar que seu conhecimento sobre as origens do denunciado se baseavam no que ouviu dizer, procurando claramente demonstrar que não conhecia o acusado. Um pouco mais adiante, entretanto, João Batista afirma que um de seus primos, residente na ilha da Madeira, de onde todos vieram, não nos esqueçamos, era casado com uma irmã de Gregório. Ora, essa relação não só pode nos indicar a proximidade dos dois, como nos levar de volta à hipótese de que João Batista pudesse ter alguma questão pessoal a resolver com Gregório Nunes, e por isso o delatara. Além disso, ou a lembrança de uma estrofe inteira de Bandarra nos indica tão somente um elemento precioso da cultura popular desse tempo, como já apontei acima a memória , ou o denunciante também era um leitor das trovas de nosso sapateiro, fato bastante provável já que João Batista era cristão novo e as inúmeras reproduções que as trovas devem ter conhecido circulavam preferencialmente entre a comunidade de recém conversos. Denunciante e denunciado tinham praticamente a mesma idade, entre 30 e 35 anos, e ambos viveram em Lisboa durante um período que não podemos precisar, o que signica dizer que nasceram entre 1552 e 1557, pouco tempo depois da condenação de Bandarra, em 1541, e certamente cresceram em meio a uma comunidade na qual o sapateiro de Trancoso era bastante valorizado.

Outro aspecto a ser considerado diz respeito ao fato de terem vindo da ilha da Madeira, próximo portanto dos Açores, onde em 1580 foi aclamado rei D.Antônio, primo bastardo de D.Sebastião. A história do curto e atrapalhado reinado de D.Antônio se aproxima de nosso caso na medida em que um de seus seguidores foi ninguém menos que D.João de Castro, o corifeu do sebastianismo, primeiro letrado a valorizar as trovas de Bandarra e considerá-las profecias da volta do Encoberto. Embora D.João de Castro não tenha chegado a participar da efêmera corte de D.Antônio, sua importância para a difusão das trovas fora do reino é inegável. Não temos como saber, pelo menos por enquanto, se foi na ilha ou no reino que nossos personagens tomaram o primeiro contato com as trovas, mas parece razoável supor que tenham ouvido falar da aventura dos antonistas e que a expectativa sobre a volta de um rei legítimo para Portugal tenha realimentado o interesse pelos escritos de Bandarra.

Claro que é preciso cuidado para não encontrar sentido político em ações que podem ter tido propósito absolutamente diverso e, no caso, revelar tão somente a valorização de um texto de base judaica entre recém conversos. Por outro lado, também não se pode negar a importância da disseminação dos escritos messiânicos de Bandarra conjugados à perda de soberania do reino em 1580. Seja como for, o fato é que a estrofe anotada no documento fala de uma luta, narrada em castelhano, que diz:

aguillas e leones

ganarão la fortaleza

subiram em tanta alteza,

que amnsen los dragones

y todos rebueltos en lid,

vernam em sus comfusiones

subiram francos leones

con uno de sangre de David

Em primeiro lugar não é fácil saber porque João Batista, reproduzindo Gregório Nunes, recitou em espanhol. João Lúcio de Azevedo cita, dentre as inúmeras influências que Bandarra possa ter recebido no processo de construção de suas trovas, a importância da divulgação e circulação de textos proféticos oriundos de Espanha. Afirma ainda que a figura do Encoberto foi trazida de Espanha para Portugal(15), o que parece difícil de aceitar sem ressalvas, face à imensa comunidade de cristãos novos no reino lusitano e à base claramente, mas não exclusivamente, judaica presente nesse novo Messias. O fato é que este documento indica que versões castelhanas de escritos atribuídos a Bandarra também circulavam entre os populares, o que pode revelar um alcance ainda maior de textos de fundo judaico, nada estranha, aliás, se pensarmos no tempo e na profundidade das raízes da cultura judaica na Península Ibérica.

A luta de águias e leões contra os dragões e todos os que se revoltam, com a vitória final de um leão da linhagem de David, do ponto de vista formal nos coloca diante de um texto que embasa sua força retórica na construção de imagens aladas, típicas de textos que ainda guardam fortes elementos de uma cultura pagã e oral que precisava falar com as imagens, combinando literatura e oralidade. A expressão de uma luta entre aves, mamíferos e monstros fabulosos não só confirma o recurso alegórico usado pelos populares, também presente ao longo das 159 estrofes de Bandarra, como fala da superioridade do leão, motivo favorito na decoração da sinagoga, significando o poder da soberania, a luminosidade solar ou ainda a força penetrante do Verbo e da Justiça(16).

Mas apesar da forma e do significado geral da luta do bem contra o mal e da clara mensagem messiânica estarem de acordo com o conjunto das trovas de Bandarra, bem como a valorização do leão como imagem do rei vencedor, não há, pelo menos na edição de 1989, considerada herdeira da primeira edição de 1644, nenhuma estrofe igual à citada na denúncia contra Gregório Nunes. Esta observação nos leva de volta à questão posta pelas inúmeras versões que este documento possa ter conhecido, dentro e fora de Portugal, reforçando a dificuldade, ou mesmo a impossibilidade, de resgatarmos o documento original, nesse contexto de transição que ainda combina cultura oral e escrita. Mas exatamente por essa razão, o fato de termos um documento atribuído a Bandarra, mas diferente do registro que temos dele, hoje, nos coloca em contato com a complexidade e a riqueza desse mundo popular, o que, por outro lado, só dificulta a vida do historiador que procura se aproximar desse tempo tão distante e tão diferente do nosso.

As trovas de Bandarra não fazem, ainda, nenhuma menção direta a David, rei de Israel, como o vitorioso da luta contra os infiéis. Para Bandarra, Todos terão um amor / Gentios como pagãos / Os Judeus serão Cristãos / Sem jamais haver error(17), embora a estrutura de seu argumento explicite a necessária e inevitável volta do Encoberto e a lógica de um messianismo de fundo judaico, mas já totalmente comprometida com a idéia de que será Portugal, e por consequência o monarca luso, a cabeça do Quinto Império.

Segundo o denunciante, a intenção de Gregório Nunes, ao dizer que ainda esperava a volta do Messias, fora atraí-lo para as práticas da religião proibida, pois lhe parece que ele sabe de judeus e trata com eles a lei judaica. Ao chamar o acusado de judeu e luterano, João Batista não só reafirma a disseminação do preconceito entre os populares, como empresta às trovas de Bandarra um sentido que não lhe fora atribuído nem mesmo pelos inquisidores que o penitenciaram por ser amigo de novidades. Esta dimensão da interpretação popular das trovas e da associação do nome de Bandarra a práticas de judaísmo, pelos menos diante dos inquisidores, a diferencia da apropriação que delas fizeram alguns letrados, como o já citado D.João de Castro, que as valorizou como profecias que prediziam a volta do Encoberto.

Estas foram as acusações feitas a Gregório Nunes. Infelizmente, não temos como saber, apenas por este documento, qual foi o destino de João Batista e de Gregório Nunes; como se integraram à sociedade baiana; se de fato faziam parte do grupo de comerciantes bem sucedidos a que não raro judeus e cristãos novos são identificados. Seja como for, e no que toca ao objeto desse pequeno artigo, o fato é que conheciam as trovas de Bandarra, da qual tinham versão própria que recitavam em pequenos grupos. O destino dessas versões no Brasil deve ter sido variado, provavelmente se amalgamou a outras expectativas e crenças que aqui já existiam e a outras tantas que chegaram. Mas não há como negar que o nome de Bandarra e o poder de suas profecias chegaram ao Brasil desde fins do século XVI, balançando nos navios que traziam mercadorias, sonhos de riqueza fácil e degredados. Estes, como tão bem analisou Laura de Mello e Souza, foram importantes instrumentos de circularidade cultural(18), observação que se adequa perfeitamente ao caso aqui analisado. As trovas de Bandarra chegaram de navio e provavelmente se transformaram em profecias nas ladeiras daquela cidade que, talvez não por acaso, tinha o nome de São Salvador de Todos os Santos.

Como Profecias ou como prova de adesão ao judaísmo, as trovas da humilde sapateiro de Trancoso ganharam notoriedade e atravessaram oceanos e fronteiras certamente inimagináveis para seu provável autor, ou autores. No Brasil, e segundo um cristão novo já penitenciado, conhecê-las era o indício, senão a prova de um crime. Devastando as solidariedades e atiçando suspeitas, a visitação do Tribunal do Santo Ofício ao Brasil não parece ter deixado nada a dever ao pânico que a ação inquisitorial espalhava por onde quer que passasse. No caso de nosso Gregório, fosse ou não verdade a grave acusação que João lhe fizera, foi através dela que pudemos conhecer um dos caminhos através dos quais o sebastianismo deve ter chegado ao Brasil. Digo sebastianismo mas poderia dizer bandarrismo, já que nesse momento não se pode ainda estabelecer uma relação direta entre as trovas de Bandarra e a crença sebástica, tal como foi possível fazer no caso de Portugal. Por todas as razões já apontadas e, sobretudo por essa última, ainda há muito a descobrir para que cheguemos a compreender porque, mais de três séculos depois, o nordeste brasileiro abrigou movimentos rurais que se intitulavam sebastianistas, pregavam a volta de D.Sebastião e esperavam viver um tempo de riqueza, fartura e liberdade(19).

Notas

1- Para uma análise mais aprofundada das discussões historiográficas sobre a vida e o reinado de D.Sebastião, bem como as demais referências sobre o sebastianismo em Portugal, ver Jacqueline Hermann. No Reino do Desejado . A construção do sebastianismo em Portugal (séculos XVI e XVII). São Paulo, Cia. das Letras, 1997, no prelo.

2- O processo contra Gonçalo Annes Bandarra, n. 7.197 da Inquisição de Lisboa, se encontra no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa. Apesar do próprio Tribunal ter fornecido uma certidão a familiares de Bandarra, em 1687, negando sua origem judaica, alguns poucos estudiosos afirmam ter sido o nosso sapateiro descendente dos judeus que el-rei D.Fernando, o católico expulsou de Espanha, como é o caso de Julio Caro Baroja. Los judios en la España moderna e contemporanea , Tomo I, p. 414

3- Apud João Lúcio de Azevedo. A Evolução do Sebastianismo . Lisboa, Ed. Presença, 1984., p.9.

4- Para outros exemplos ver Maria Jose Ferro Tavares. O Messianismo Judaico em Portugal ( primeira metade do século XVI) in Luso-Brazilian Review , vol. 28, 1991, pp.141-151. Para um estudo mais detalhado do caso de Luís Dias ver Elias Lipiner. O Sapateiro de Trancoso e o Alfaiate de Setubal . Rio de Janeiro, Imago, 1993.

5- Depois do fim da união ibérica, que durou de 1580 a 1640, a crença na volta de um salvador para as agruras do reino português, esperança essa fartamente alimentada durante a dominação espanhola, acabou tomando novos contornos e incluindo novos personagens para a encarnação do Messias, dentre as quais primeiro o Duque de Bragança e depois D.João IV, rei que deu início à dinastia dos Bragança, após a Restauração. Este processo de transfiguração do Encoberto contou com eleboração de verdadeiros sistemas proféticos como o construído pelo padre Antônio Vieira, que, aliás, acabou recolhido aos cárceres inquisitoriais, em 1665, exatamente por pregar a volta de D.João IV, ressuscitado para comandar, de Portugal, a fundação do Quinto Império do Mundo.

6- Só para citar alguns trabalhos que procuraram enfrentar está delicada questão, seja de forma conceitual, seja tentando enumerar e analisar algumas de suas características : E. P. Thompson. Tradición, revuelta y consciencia de clase . Estudios sobre la crisis de la sociedad preindustrial. Barcelona, Editorial Crítica, 2a. ed. 1984; M. Bakhitin. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento .O contexto de François Rabelais. São Paulo, Hucitec, 1987; Peter Burke. A cultura popular na Idade Moderna . Europa, 1500-1800. São Paulo, Cia. das Letras, 1989; Roger Chartier Cultura política e cultura popular na Antigo Regime in A História Cultural . Entre práticas e representaçoes. Lisboa, Difel, 1990; Natalie Z. Davis. Culturas do Povo . Sociedade e cultura no início da França Moderna. São Paulo, Paz e Terra, 1990. Para o conceito de cultura e para o tipo de abordagem usado neste trabalho foi de especial importância o clássico de Carlo Ginzburg. O Queijo e os Vermes . O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição.São Paulo, Cia. das Letras, 1987.

7- Parte das Trovas de Bandarra já haviam sido publicadas por D.João de Castro, considerado para alguns estudiosos do tema, como João Lúcio Azevedo, o corifeu do sebastianismo in Paraphrase et Concordancia de Alguas Propheçias de Bandarra çapateiro de Trancoso , Paris, 1603; a de 1644 foi editada em Nantes pelo fidalgo D. Vasco Luís da Gama, V Conde da Vidigueira e I Marquês de Niza, embaixador de D.João IV. A edição de 1809 foi impressa em Barcelona e a de 1866 no Porto pela Imprensa popular de J.L. de Sousa e entre as ilegítimas estão as de 1810, Bandarra descuberto nas suas Trovas, contendo uma Colleçam de Profecias notáveis, respeito a felicidade de Portugal, e Cahida dos maiores Impérios do Mundo . Londres. impresso por W. Lewis. Patternoster-row e as de 1815, Trovas inéditas de Bandarra; natural da Villa de Francoza. Londres, 1815. Mas além dessas versões impressas há inúmeras outras versões manuscritas e ainda pouco trabalhadas na Biblioteca Nacional de Lisboa, Seção de Manuscritos, que apresentam variações sobre o documento considerado original.

8- Para uma análise detalhada da ação do Tribunal do Santo Ofício no Brasil, especificamente quanto a sua estrutura e organização ver Ronaldo Vainfas. Trópico dos Pecados . Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro, Campus, 1989, especialmente o cap.7, Inquisição, moralidades e sociedade colonial, pp. 215-239. As únicas visitas documentadas são as da Bahia e de Pernambuco entre 1591-1595; outra enviada à Bahia entre 1618-1620, e a do Grão-Pará e Maranhão, já no século XVIII, entre 1763 e 1769. Há notícias de duas outras, uma enviada a Pernambuco e ao sul, em 1627 e outra novamente à Bahia, em1646.

9- A visitação de 1591-1595 produziu quatro livros de denunciações, três de confissões e dois de ratificações. As denunciações relativas ao Recôncavo Baiano são praticamente inéditas e dependem ainda da leitura dos processos, todos depositados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, cf. R.Vainfas. Op.cit., p.340.

10- A denúncia que vamos examinar se encontra trasladada em Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça Denunciações da Bahia 1591-1593 , introdução de Capistrano de Abreu, São Paulo, ed. Paulo Prado, 1929.

11- R.Vainfas. Op.cit, p.226.

12- Cf. Laura de Mello e Souza. Inferno Atlântico . Demonologia e colonização, séculos XVI-XVIII. São Paulo, Cia. das Letras, 1993, respectivamente p. 218 e 90.

13- Angélica Madeira. Relações de Poder. Ensaio sobre a cultura marítima portuguesa do século XVI. Série Sociologia n104, Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília. Brasília, 1993.

14- Denunciações do Estado da Bahia , op. cit., pp-316-319.

15- João Lúcio de Azevedo. Op. cit., p.17.

16- Cf. Alan Unterman. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições . Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992, p.150-151.

17- A edição das Trovas com a qual trabalho foi publicada com o título Profecias do Bandarra. 4a. edição, apresentação de António Carlos Carvalho. Lisboa, 1989. Esta estrofe está na p. 87.

18- Laura de Mello e Souza. Op. cit. Por dentro do Império: infernalização e degredo, pp. 89-101

19- Refiro-me ao movimento surgido na então província de Pernambuco, na década de 1810, cujo líder dizia ser leitor das trovas de Bandarra e acabou fundando a Cidade do Paraíso Terrestre para onde viriam D.Sebastião e seu exército. Quase 20 anos depois, também em Pernambuco, trabalhadores rurais fundaram o Reino da Pedra Bonita, que também aguardava a volta de D.Sebastião. Outro movimento, bem mais famoso e também considerado sebastianista, foi o de Canudos, estado da Bahia, liderado pelo beato Antônio Conselheiro, e cujo massacre pelas tropas federais da República brasileira faz, em outubro de 1997, cem anos.


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