49 Congreso Internacional del Americanistas (ICA)

Quito Ecuador

7-11 julio 1997

 

Nanci Leonzo

IDEAS, CULTURA E HISTORIA EN LA CREACION INTELECTUAL LATINOAMERICANA, S. XIX-XX

HIST 18

ANISTIAS: DO CLAMOR À LUTA POLÍTICA

NANCI LEONZO

Resumen

O Brasil conheceu, neste século, diversas anistias, todas obtidas graças ao empenho de intelectuais comprometidos com as liberdades democráticas. Duas delas merecem destaque: a de 18 de abril de 1945 e a de 28 de agosto de 1979, resultantes de significativas campanhas de mobilização incentivadas pela necessidade de retorno ao Estado de Direito. Discutirei as estratégias que permitiram a passagem das palavras aos atos, dando voz, sempre que possível, aos que, longe da pátria, não desistiram de batalhar pelos direitos fundamentais do homem.

Texto

Fustel de Coulanges, registrou, em conhecidas páginas de sua obra máxima, A Cidade Antiga , a condição do exilado na antiguidade greco-romana, partindo do pressuposto de que tudo o que o homem podia ter de mais caro se confundia com a pátria .Lembrou, ainda, que o exílio comparava-se à pena capital e até mesmo à morte (1). Vários exilados célebres registraram, ao longo dos séculos, suas experiências e opiniões sobre a vida longe da terra natal, atestando a perene validez das informações colhidas, no século XIX, pelo historiador francês. No caso do Brasil, o estudioso do tema não poderá negligenciar as Cartas de Inglaterra , escritas, no deserto moral do exílio (2), por Rui Barbosa, um personagem controvertido, cuja história de vida atravessa o fim do império e a consolidação da república brasileira. Mas as Cartas , publicadas em 1895, por si só, pouco dizem. É preciso avançar e enveredar pelos textos jurídicos coetâneos, onde Rui batalha, incansavelmente, num cenário repressivo, em prol das garantias constitucionais e das liberdades individuais.

Ao me deter em Anistia Inversa , recomponho os episódios que levaram Rui Barbosa ao exílio e, principalmente, aqueles que o consagraram como crítico contumaz dos excessos cometidos pelos que, em sua opinião, sustentavam a mísera política brasileira (3). Chegava ao fim o ano de 1891. A república, proclamada a 15 de novembro de 1889, se consolidava a duras penas. Floriano Peixoto substituíra Deodoro da Fonseca. Protestos eram respondidos com prisão ou desterro. Um deles, ocorrido em abril de 1892, selou o envolvimento de Rui com os revoltosos. São famosos seus pedidos de habeas corpus encaminhados, a partir deste momento, ao Supremo Tribunal Federal. O ódio dos florianistas aumentava dia-a-dia. Rui não lhes dava trégua: os artigos no Jornal do Brasil completavam as manobras jurídicas. Assim, ao tomar conhecimento, na noite de 5 de setembro de 1893, de que tudo estava preparado para a chamada Revolta da Armada , exilou-se, seguindo a orientação do amigo Tobias Monteiro, na legação do Chile, abandonando-a quando surgiu a oportunidade de deixar o Rio de Janeiro e viajar para Buenos Aires. Após uma permanência de seis meses, trocou a cidade platina por Lisboa. Foi uma opção infeliz. Ao se manifestar, publicamente, contra a detenção, em prisões militares, de alguns oficiais brasileiros que haviam buscado refúgio em duas embarcações portuguesas, perdeu a simpatia daqueles que o haviam acolhido. Não lhe restou outra alternativa senão partir para a Inglaterra. Residiu na cidade de Londres até novembro de 1895, quando retornou ao Brasil (4).

Anistia Inversa veio a público em 1896, quando o Brasil já estava em mãos de um civil. Prudente de Moraes, interessado em pacificar o Rio Grande do Sul, palco da Revolução Federalista , que se desenvolvera paralelamente à Revolta da Armada , incluiu nas negociações com os revoltosos um projeto de anistia, sancionado pela lei nº 319 de 21 de outubro de 1895. Rui Barbosa, que acabara de voltar do exílio, decidiu questionar a referida lei, defendendo a tese de que nela se caracterizavam uma expropriação de alienáveis direitos individuais e uma invasão das atribuições atribuições privativas da justiça . Na condição de advogado dos 47 oficiais reformados, alegou que se tratava de uma anistia condicionada , pois determinava que os suplicantes não poderiam ser reintegrados ao serviço ativo antes de dois anos. Além disso, penalizara os oficiais, trazendo-lhes perdas pecuniárias. Vendo-se como cidadão, patriota e homem preocupado com a honradez do regime republicano, argumentou:

(...) em face do direito penal e do direito político, na Europa e na América, anistiar é absolver, relevar, esquecer. Rotular com o dístico de anistia uma sentença condenatória, pronunciada pelo Congresso, trocando a função de legislar pela de julgar, e dissimulando sob a prerrogativa de agraciar o arbítrio de punir, não é exercer a bemfazeja atribuição, que a carta republicana deu à representação popular: é invertê-la (5).

Rui Barbosa concentrou seus esforços no sentido de obter da justiça o reconhecimento de que a anistia prejudicara, financeiramente, os suplicantes. Ganha esta causa estaria garantida, em sua opinião, a reintegração dos militares em seus antigos postos.

Apesar da sentença favorável de 27 de julho de 1896, a decisão final se arrastou, como demonstra Roberto Ribeiro Martins, até 1916, quando a lei nº 3.178 suspendeu os entraves impostos pela anistia de 1895. Rui voltou a abordar a questão em 1905 e 1910, quando defendeu, no Congresso Nacional, dois projetos de anistia, beneficiando, respectivamente, os implicados na Revolta da Vacina Obrigatória e na Revolta da Chibata (6). Vale, entretanto, ressaltar que seus argumentos acabaram se constituindo, conforme observou Aloysio Carvalho Filho, em doutrina, mormente no que diz respeito às chamadas anistias condicionadas (7).

O Brasil conheceu diversas anistias, antes e depois de Rui Barbosa nos legar essa apreciada peça jurídica. A de 9 de novembro de 1930 compreendeu crimes políticos e militares, beneficiando todos os envolvidos nos movimentos revolucionários da década de 20; a de 23 de outubro de 1931 limitou-se a anistiar os implicados em crimes eleitorais praticados até 24 de outubro de 1930; e a de 28 de maio de 1934 favoreceu os participantes da chamada Revolução Constitucionalista irrompida, dois anos antes, em São Paulo. Uma anistia ampla, geral e irrestrita viria com a promulgação, em 16 de julho, da carta magna de 34 (8). Seus dias, porém, estavam contados. Com a implantação, em novembro de 1937, do Estado Novo, o terror se espalhou pelo país. Getúlio Vargas mostrou-se implacável com seus opositores, condenando-os à prisão e, em alguns casos, ao exílio.

Para a maior parte dos historiadores a campanha pela anistia de 1945 tornou-se um grande movimento de massas. Como quase todos foram partícipes desse processo, é preciso aceitar com cautela essa afirmação, comum aos que, mais de trinta anos depois, em pleno regime militar, passaram a reinvindicar uma nova anistia (9). Minhas pesquisas demonstram que a referida campanha foi idealizada pelos setores mais esclarecidos da sociedade e dirigida aos que, de alguma maneira, a eles se agregavam. Sem negar o peso do processo de conscientização empreendido pelo jornal carioca Correio da Manhã , assim como a relativa eficácia das semanas pró-anistia organizadas, a partir de 6 de abril, nos diferentes estados brasileiros, ouso refutar essa dita participação popular .

O que se tem de concreto é o decreto-lei 7.474 de 18 de abril de 1945, anistiando todos os que, desde 16 de julho de 1934, tivessem cometido crimes políticos e conexos (10). Dias antes, isto é, a 11 de abril, o Supremo Tribunal Federal havia concedido habeas corpus para Armando de Sales Oliveira, Otávio Mangabeira e Paulo Nogueira Filho, os quais, apesar de exilados, haviam sido condenados pelo Tribunal de Segurança Nacional, órgão criado, em 1937, para julgamento dos delitos contra a segurança do Estado (11). Outras anistias foram decretadas ainda em 1945: a de 23 de julho, correspondente ao decreto-lei nº 7.769, dirigida aos militares integrantes da Força Expedicionária Brasileira (FEB) que haviam desertado ou cometido crimes cuja pena fosse inferior a dois anos e a de 10 de setembro, formalizada pelo decreto-lei nº 7.943, anistiando os acusados por crime de injúria aos poderes públicos e aos agentes que os exerciam. Oportuno ainda lembrar que a anistia de 23 de julho foi complementada a 28 de agosto, com a promulgação do decreto-lei nº 7.906, favorecendo os indiciados que pertenciam às fileiras da Marinha e da Aeronáutica (12).

O escritor e jornalista Paulo Duarte, duas vezes exilado na década de 30, foi um dos beneficiados pela anistia de 18 de abril de 1945. Ao retornar, em setembro do mesmo ano, legou-nos um bom testemunho do estado de espírito peculiar ao proscrito que, por uma benesse do poder, ganhava o direito de regressar à terra natal:

Mentalmente, volto ao Brasil da mesma forma que daqui parti, há cerca de sete anos: visceralmente incompatível com a ditadura. Entretanto, ser-me-ia difícil externar qualquer opinião definitiva sobre o Brasil, logo após a minha chegada. Estive ausente durante sete anos e este período, se é muito curto para a permanência, no poder, de um caudilho, é logo demais para quem viveu praticamente sem nenhum contato com a terra(13).

Na mesma época, mas em outra parte da América, um exilado alemão, que nos anos posteriores tornar-se-ia famoso pelos seus estudos filosóficos, Theodor Adorno, admitiria que:

Para quem não tem mais pátria, é bem possível que o escrever se torne uma morada. Aí ele tambem produz inevitavelmente, como a família, detritos e refugos. Mas ele não tem mais um quarto de depósito e em geral não é fácil separar-se dos trastes. Ele arrasta-os então consigo, correndo o risco de, no final, preencher suas páginas com ele(14).

Sirvo-me de Adorno para examinar, com uma cautela ainda maior do que aquela que me guiou na análise da campanha pela anistia de 1945, os escritos e pronunciamentos de Paulo Duarte. Não estarei diante de uma leva de detritos e refugos materializados em artigos de jornais e revistas e em dez livros conhecidos como suas Memórias ? Quem se vê como um semimorto, como um exilado dentro do seu próprio país (15), é uma fonte autorizada para que eu possa obter uma boa compreensão do que ocorreu nesse próprio país? Sim e não. Sim, quando contabilizo as inúmeras vezes em que se mostrou solidário para com os exilados portugueses que lutaram, mais com palavras do que com ações, contra o salazarismo. Não, quando levo em conta o conteúdo repetitivo de seus textos, a falsa linearidade imposta à narrativa de suas lembranças e as tentativas de dotá-las de credibilidade mediante a transcrição de parte de sua correspondência particular. Importa mediar essa flagrante contradição através do entendimento de que, para o escritor e eventual orador, nada tinha valia senão o diagnóstico intransigente de si próprio e dos outros . Seguindo Adorno, sou levada ainda a admitir que, no exílio, todos os pesos se tornam falsos (16). Devo, portanto, aproveitar a oportunidade para colocá-los, mais uma vez, na balança.

No rastro do disposto pela Constituição de 1946, que anistiou, em suas disposições transitórias, todos os cidadãos insubmissos ou desertores , bem como os trabalhadores que haviam sido punidos em consequencia de greves ou dissídios trabalhistas (17), foram concedidas, no período de treze anos, diversas anistias. Para os que combatiam, à distância, o regime salazarista, urgia tirar proveito do clima de liberdade reinante no Brasil. Assim, foi organizada, em janeiro de 1960, a 1ª Conferência Sul Americana Pró Anistia dos Presos Políticos de Portugal e Espanha . Nas dependências da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo reuniram-se, sob o comando de Álvaro Lins, que pouco tempo antes se destacara por ter concedido asilo diplomático ao general Humberto Delgado, ex-candidato à presidência da república portuguesa, delegados do Brasil, Chile, Paraguai, Uruguai e Venezuela(18).

Ao fim do evento, que mobilizou boa parte da intelectualidade paulista, foi constituída a Comissão Executiva do Movimento Pró Anistia dos Presos Políticos de Portugal e Espanha . 1960 trouxe muitas esperanças aos portugueses aqui refugiados. Em setembro conseguiram o apoio de Jean Paul Sartre, ora visitando o Brasil, e em outubro comemoraram, com um jantar, mais um aniversário do advento da república, convidando para orador Paulo Duarte (19), proprietário da Revista Anhembi , publicação onde jamais faltou espaço para a condenação do salazarismo. No início do ano seguinte realizou-se, na cidade de Montevidéu, a II Conferência Latino-Americana Pró Anistia dos Presos Políticos de Portugal e Espanha . Nas vésperas de sua abertura, o próprio Paulo Duarte saldou-a, lembrando que nada faria calar o clamor que em todos os países livres se erguia contra as arbitrariedades cometidas nas prisões portuguesas (20). É preciso relativizar esse clamor, isto é, colocá-lo na balança, a fim de confrontá-lo com o peso das evidências recolhidas. Sustento a hipótese de que, no Brasil ele quase não se fazia ouvir, como revela o testemunho do jornalista exilado Urbano Tavares Rodrigues que atuou, durante bom tempo, na grande imprensa paulista:

Não ignoro que há no Brasil centenas de milhares de portugueses que acreditam em Salazar. Negar essa evidência seria faltar à verdade. Mas sei, também, que a maioria veio à aventura para esta terra irmã e generosa. Foi aqui que encontraram o ensejo para afirmarem as virtualidades magníficas da raça, foi neste maravilhoso Brasil que se realizaram como homens, que se encontraram. Não admira, pois, que no seu apego saudoso ao torrão natal tenham tendência a identificar Portugal a um governo que para eles simbolize a Pátria e do qual conhecem apenas para figurino do uso externo. Estão errados, profundamente errados, por muito que isso lhes pese (21).

Errados ou não, eram centenas de milhares alheios à luta política que unia intelectuais brasileiros e portugueses adeptos das mais diferentes tendências ideológicas. Os primeiros acumulavam êxitos, como a anistia geral de 15 de dezembro de 1961, repassando-os, através de atos de solidariedade, aos segundos. Pelo decreto legislativo nº 18 foram anistiados os que haviam participado de fatos ocorridos, no território nacional, desde 16 de julho de 1934. Servidores civis e militares, trabalhadores, estudantes e jornalistas foram beneficiados, porém aqueles que reinvindicavam o retorno ao serviço ativo tornaram-se dependentes de um despacho favorável por parte dos Ministérios competentes (22). A ascensão de João Goulart, após a renúncia de Jânio Quadros em 25 de agosto do mesmo ano, trouxe para primeiro plano a esquerda brasileira interessada, particularmente, em questões como a nacionalização das principais empresas de serviços públicos e a reforma agrária. Uma política externa independente garantiu o fortalecimento de laços de amizade com Cuba e União Soviética, incentivando o repúdio ao imperialismo norte-americano .

A oposição portuguesa no exílio, valendo-se de líderes políticos de esquerda como Miguel Arraes e Leonel Brizola, ao tempo, respectivamente, prefeito da cidade do Recife e governador do estado do Rio Grande do Sul, tornou-se mais ofensiva. É o momento em que são criticadas as estratégias pessoais e incentivadas aquelas idealizadas sob a forma de uma unidade fraternal e combativa referendada pela politização das massas (23). Uma poderosa aliada veio dar um novo alento aos que, espalhados pelo mundo, combatiam o salazarismo: a Anistia Internacional , fundada, na cidade de Londres, em 1961, por iniciativa do advogado Peter Benenson, que ficara indignado ao ler uma notícia sobre a prisão de um grupo de estudantes portugueses que, em um restaurante, haviam erguido um brinde para a liberdade (24).

O artigo de Benenson, publicado em The London Observer Weekend Review, colocou à disposição dos denominados prisioneiros de opinião seu escritório em Londres. Embora me faltem dados sobre o número de portugueses arrolados pela Anistia Internacional até 25 de abril de 1974, data oficial do fim do regime salazarista, julgo que eles não eram poucos. Minha suspeita adquire maior consistência quando lembro que, dentre os livros proibidos de circular em Portugal, estava Cartas de Inglaterra (25), onde Rui Barbosa condenava o despotismo das nações e recomendava, pensando no Brasil de 1895, uma união entre os espíritos sólidos, cultos e moderados de todas as convicções no sentido de um movimento educador, pacificador, reconciliador , capaz de restituir a essas mesmas nações o direito de orientar-se, retemperar-se em sangue novo , enfim de conquistar o governo do qual haviam sido espoliadas (26).

Enquanto Portugal se libertava do jugo salazarista o Brasil sofria as consequências da intervenção militar de 31 de março de 1964. O exílio foi, para muitos, a única saída. Neste momento não nos faltou a solidariedade portuguesa. Em maio de 1975 já estava constituído, em Lisboa, o Comité Pró-Amnistia Geral No Brasil , que contava com o apoio de importantes segmentos da sociedade local. Este Comité, além de editar um jornal denominado Amnistia , promoveu diversas campanhas em prol dos exilados brasileiros. Dentre elas destaco o livro Dos Presos Políticos Brasileiros , dedicado ao Tribunal Bertrand Russell. O jornalista Fernando Piteira Santos, diretor do Diário de Lisboa e membro do Comité , ao redigir a apresentação do citado livro, além de lembrar o apoio dado, no passado recente, pelos brasileiros aos exilados portugueses, ressaltou o fato de que a fraternidade não mais podia se restringir ao quadro oficial, diplomático, acadêmico (27).

Apesar dessas demonstrações de apoio, é possível afirmar, com base em depoimentos de exilados, que as condições de vida, em Portugal, eram difíceis. O contexto adverso, semelhante ao encontrado em outros países da Europa como França, Suíça e Bélgica, alimentava o sonho de uma anistia que, no dizer de Márcio Moreira Alves, deveria servir para direcionar a abertura política. Na opinião do ex-deputado federal, era preciso, porém, agir com cautela, pois o retorno poderia se transformar num pesadelo, principalmente para aqueles que não souberam partilhar suas experiências com as esferas mais politizadas das sociedades que os abrigaram (28). Trata-se de um testemunho exemplar no que diz respeito à anistia, pois condiciona sua eficácia à plena consciência de que com ela teria início uma nova fase da luta em prol das liberdades democráticas.

Em meados de 1975 a campanha pela anistia, no Brasil, intensificou-se. Por iniciativa de Therezinha de Godoy Zerbini, esposa de um general cassado e reformado a 9 de abril de 1964, foi organizado o Movimento Feminino Pela Anistia, que percorreu o país, nos anos subsequëntes, incentivando a formação de núcleos dispostos a trabalhar pela pacificação da família brasileira. Na segunda quinzena de novembro do ano de 1978 ela visitou Portugal a convite do Comité Pró-Amnistia Geral No Brasil . Falando à imprensa local, explicou que o Movimento era apartidário, embora nos últimos tempos tivesse abraçado a bandeira da Constituinte, uma solução proposta ao país pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) (29).

Uma das principais teses defendidas pelos que atuaram nessa ampla campanha, na qual se destacou o Movimento Brasileiro Pela Anistia , era de que a anistia fazia parte da história do povo brasileiro. De fato, cerca de sessenta já haviam sido promulgadas desde 26 de janeiro de 1654, quando os pernambucanos anistiaram os portugueses e súditos de outras nacionalidades acusados de envolvimento com os invasores holandeses (30). Nada mais natural e justo, portanto, do que a concessão de mais uma. A lei nº 6.683 de 28 de agosto de 1979, regulamentada pelo decreto nº 84.143 de 31 de outubro de 1979, anistiou todos os que, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, haviam cometido crimes políticos e conexos (31). Embora alguns juristas tenham se preocupado em apontar as imperfeições presentes no corpo desta lei (32), não há como negar sua importância para a restauração do que os próprios militares vinculados ao poder denominaram normalidade democrática (33).

Para o historiador alemão Reinhart Kosellech se o historiador parte da idéia de que as condições que tornaram possíveis os acontecimentos interessam-lhe na mesma proporção que os próprios acontecimentos, cabe-lhe transcender todos os testemunhos disponíveis do passado (34). Foi o que tentei realizar neste estudo, sem dúvida com maior êxito quando tinha em mãos os textos elaborados em decorrência das anistias promulgadas no período que se estende de 1895 a 1945. Quando o conhecimento histórico se produz no mesmo lugar onde aprendemos a depositar nossas experiências de vida torna-se difícil legitimá-lo. Paira sobre nós a maldição do presente empírico(35). Mas não devemos temê-la. Neste combate desenvolvido em um campo minado pelas ideologias esta maldição é uma dádiva. Sem ela jamais desvendaríamos os paradoxos desse presente saturado de ressentimentos e ilusões cristalizadas.

Felizmente o passado não morre nunca completamente para o homem. Ele pode esquecê-lo, mas conserva-o sempre consigo , escreveu Fustel de Coulanges (36). Os exilados brasileiros e portugueses que lutaram, durante anos, por uma anistia, sabem disso muito bem. E nós, como cidadãos e historiadores, melhor ainda.

NOTAS

( 1) - Coulanges, Fustel - A Cidade Antiga. Estudo sobre o culto, o direito e instituições da Grécia e de Roma . Tradução de Sousa Costa. Lisboa: Livraria Clássica Editora de A.M. Teixeira & Cia, 1911, p. 350-356.

( 2) - Barbosa, Rui - Cartas de Inglaterra . 2ª ed. São Paulo: Livraria Acadêmica Saraiva & C., 1929, p. 121.

( 3) - Idem - Anistia Inversa. Caso de Teratologia Jurídica . 2ª ed. Rio de Janeiro: Typ. do Jornal do Comércio, 1896.

( 4) - Chiacchio, Carlos - Cronologia de Rui. In: Rui Barbosa. Escritos e Discursos Seletos . Rio de Janeiro: Editora José Aguilar Ltda, 1960, p. 37-47. Pereira, Baptista - Prefácio às Cartas de Inglaterra , p. 5-117.

( 5) - Barbosa, Rui - Anistia Inversa , p. 92.

( 6) - Martins, Roberto Ribeiro - Liberdade para os Brasileiros. Anistia Ontem e Hoje . Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A, 1978, p. 60-67.

( 7) - Carvalho Filho, Aloizio - Comentários ao Código Penal . Rio de Janeiro: Forense, s/d, vol. IV, p. 124-129.

( 8) - Jornal Anistia . São Paulo: Edição S.A., 1978, p. 4-6.

( 9) - Dentre eles ressalto Nelson Werneck Sodré. Ver, a propósito, Jornal Anistia , p. 9-10.

(10) - Lex. Coletânea de Legislação e Jurisprudência , vol. IX, 1945, p. 108.275.

(11) - Ferreira, Waldemar Martins - História do Direito Constitucional Brasileiro . São Paulo: Max Limonad, 1954, p. 114-164.

(12) - Lex. Coletânea de Legislação e Jurisprudência . Vol. IX, 1945, p. 290 e 410.

(13) - Regressando ao Brasil. In: Duarte, Paulo - Prisão, Exílio, Luta... Rio de Janeiro: Livraria Editora Zelio Valverde, 1946, p. 275.

(14) - Adorno, Theodor - Atrás do Espelho. In: Minima Moralia. Reflexões a partir da vida danificada . Tradução Luiz Eduardo Bicca. São Paulo: Ática, 1992, p. 75.

(15) - Duarte, Paulo - Memórias . São Paulo: Hucitec, 1979, vol. IX (E vai começar uma nova era), p. 189. Jornal Portugal Democrático , ano III, nº 76, outubro de 1963, p. 1 e 5.

(16) - Adorno, Theodor - Proteção, auxílio e conselho. In: Minima Moralia , p. 27.

(17) - Pereira, Osny Duarte - A Constituição Federal e suas modificações incorporadas ao texto . Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S/A, 1966.

(18) - Jornal Portugal Democrático . São Paulo, ano IV nº 33, fevereiro de 1960, p. 4.

(19) - Jornal Portugal Democrático . São Paulo, ano IV, nº 41, outubro de 1960, p. 4.

(20) - Revista Anhembi . São Paulo, IX (122): 374, janeiro de 1961.

(21) - Jornal Portugal Democrático . São Paulo, ano II, nº 14, junho de 1958. p.2.

(22) - Lex. Coletânea de Legislação . Ano XXV, 1961, p. 960.

(23) - Jornal Portugal Democrático . São Paulo, ano VII, nº 65, outubro de 1962, p. 3.

(24) - Site http:www.amnesty-usa.org/observer.html. Sobre a Anistia Internacional ver, também, Léaud, Aimé - Amnesty International. Le parti des droits de lhomme . Paris: Éditions du Seuil, 1993.

(25) - Revista Anhembi . São Paulo, V (57): 568, agosto de 1955.

(26) - Barbosa, Rui - Cartas de Inglaterra , p. 132.

(27) - Jornal Portugal Democrático . São Paulo, ano VII, nº 65, outubro de 1962, p. 3. Dos Presos Políticos Brasileiros . Acerca da Repressão Fascista no Brasil . Lisboa: Edições Maria da Fonte, 1976.

(28) - Jornal Anistia , p. 43-44. Cavalcanti, Pedro Celso Uchôa et alii - Memórias do Exílio, Brasil 1964-19?? 2ª ed. São Paulo: Editora e Livraria Livramento, 1978. Vol.1 (De muitos caminhos), p. 232-236.

(29) - Zerbine, Therezinha Godoy - Anistia. Sementes da Liberdade . São Paulo, 1979, p. 10, 158, 217, 230-237.

(30) - Jornal Anistia, p. 4-7.

(31) - Lex. Coletânea de Legislação e Jurisprudência . Ano XLIII, 1979, p. 652-654 e 866-870.

(32) - Ver, por exemplo, Batista, Nilo - Aspectos Jurídicos-Penais da Anistia. Encontros com a civilização brasileira . Rio de Janeiro, III (19): 195-205, janeiro de 1980 e Tempo de Luta. Boletim do Deputado Federal Hélio Bicudo . São Paulo; Brasília, fevereiro de 1996.

(33) - Carvalho e Albuquerque, General-de-Exército Walter Pires de - Ordem do Dia do Exército. Noticiário do Exército nº 5.440 de 27 de novembro de 1979. In: Carvalho, General Ferdinando de - Lembrai-vos de 35 . Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1981, p. 529-532.

(34) - Koselleck, Reinhardt - Le Futur Passé . Contribution à la semantique des temps historiques . Traduit par Jochen Hoock et Mari-Claire Hoock. Paris: École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1990, p. 182-185.

(35) - A expressão é de Adorno. As Florezinhas Todas. In: Minima Moralia, 145-146.

(36) - Coulanges, Fustel - A Cidade Antiga , p. 10.


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