V Congreso de Antropologia Social

La Plata - Argentina

Julio-Agosto 1997

Ponencias publicadas por el Equipo NAyA
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BRASILEIROS DE ALÉM FRONTEIRA: PARAGUAI1

marcia anita sprandel 2

Quando pensamos nos brasileiros que vivem no Paraguai e nos seus descendentes, nascidos nesse país, costuma nos vir à mente a expressão "brasiguaios". Quem são, afinal, os brasiguaios? Seriam todos os brasileiros que residem no Paraguai? Seriam também os que sazonalmente se dirigem a esse país para trabalhos temporários? O que fazem, onde vivem, quantos são? Trata-se, como veremos a seguir, de uma definição problemática, espelho da(s) realidade(s) vivida(s) por camponeses (mas não só camponeses) que residem (ou não residem mais) em território paraguaio, próximo à fronteira internacional com o Brasil. Para destrinchar esta questão, será preciso trilhar o surgimento, as transformações e as adaptações da identidade brasiguaios, assim como sua atribuição aos diversos grupos circunstancialmente cobertos por ela.

O início do governo Stroessner, em 1954, coincidiu com as primeiras entradas significativas de brasileiros em território paraguaio, em sua maioria grandes proprietários de terra. Um dos pioneiros foi Jeremias Lunardelli, que em 1954 teria comprado 500 mil hectares3 . O programa "Marcha al Este", criado em 1961, que objetivava oficialmente ocupar a fronteira leste com camponeses paraguaios, acabou apenas acelerando o processo de venda de imóveis rurais a latifundiários e empresas estrangeiras nos departamentos Caaguazú e Alto Paraná- que em 1973 seria desmembrado para a criação do departamento Canindeyú. Nesta região encontram-se as terras mais férteis do Paraguai, uma continuação geológica da famosa "terra roxa" do oeste do Paraná. Em 1963, para facilitar estas vendas, Stroessner excluiu da Lei de Terras de 1940 a proibição de venda de terras a estrangeiros nas fronteiras do país.

Os latifundiários brasileiros que compraram terras na fronteira seca de Canindeyú com o Mato Grosso do Sul e no Alto Paraná, necessitaram de mão de obra para desmatar suas terras, tarefa imprescindível para a posterior mecanização de lavouras ou para o plantio de pastos para pecuária. Ao invés de contratar camponeses locais, que teriam de alguma forma a proteção do estado paraguaio, estes fazendeiros preferiram aliciar nos estados do Paraná e do Mato Grosso do Sul, famílias de pequenos produtores rurais sem terra, provenientes principalmente do Nordeste, de Minas Gerais e do oeste de São Paulo.

Estes camponeses já haviam sido atraídos, anos antes, ao oeste do Paraná, onde arrendaram terras para plantar lavouras comerciais ou trabalharam como assalariados rurais. Muitos haviam mesmo conseguido comprar terras. Mas o processo massivo de mecanização das lavouras para o plantio de soja, responsável pela violenta concentração fundiária ocorrida na região na década de 70, os atingira diretamente.

Para introduzir estas famílias em território paraguaio, poucos destes grandes proprietários utilizaram-se de meios legais, regularizando a situação imigratória das mesmas. Aqueles que compraram seus imóveis lindantes com a linha de fronteira com o Mato Grosso do Sul, simplesmente agiam como se estivessem ainda no Brasil. Aqueles que precisavam adentrar mais no país vizinho, entravam em acordos ilegais com policiais locais ou, simplesmente, entregavam as famílias à própria sorte. Nestes casos, os agricultores utilizavam-se do subterfúgio de renovar constantemente permissões de ingresso no país de curta validade, por serem bem mais baratas, e evitavam circular nos núcleos urbanos.

No Paraguai, estes agricultores desmataram áreas imensas de selva, limparam os terrenos, construíram suas casas, tiveram seus filhos e produziram, durante anos e anos de arrendamento, sucessivas lavouras de café, algodão e hortelã, entre outros produtos comerciais, que algumas vezes eram vendidos (principalmente no caso de Canindeyú), nas cidades brasileiras fronteiriças. O contato com a população paraguaia dependia da localização dos imóveis. Poderia ser inexistente, para aqueles que trabalhavam na fronteira seca, ou intenso, com a escolarização de filhos de brasileiros em escolas paraguaias. Muitas destas crianças já nasceram no Paraguai, mas eram registradas também em cartórios dos estados do Paraná ou do Mato Grosso do Sul, como se brasileiras fossem. Como veremos mais tarde, é destas famílias de arrendatários que se concentraram em Canindeyú que saíram a maior parte dos chamados brasiguaios que retornaram organizadamente ao Brasil em 1985.

Basicamente, os contatos sociais entre brasileiros e paraguaios ocorriam no circuito polícia-comércio-escola. Existem poucos registros de casamentos entre brasileiro(as) e paraguaias (os), assim como de estabelecimento de relações de compadrio ou de vizinhança. A população paraguaia local, numericamente pequena e formada por pequenos agricultores e pequenos comerciantes, sentiu logo a pressão da presença brasileira, com suas concepções muito próprias do que seja trabalho agrícola, visando mercados de exportação. A cultura e as técnicas do camponês paraguaio, com forte influência guarani, e que pressupõe o respeito às matas (área de caça e extrativismo) e o cultivo basicamente de subsistência, foram literalmente atropeladas pelos desmatamentos indiscriminados, e a posterior passagem de máquinas agrícolas, feitos pelos brasileiros.

Com o apoio do Instituto de Bienestar Rural (IBR), órgão fundiário paraguaio criado também em 1963, algumas destas áreas de terra de propriedade de brasileiros foram transformadas em projetos de colonização privados, muitos tendo como sócios militares paraguaios ligados ao governo. A oferta de terras férteis e baratas, amplamente divulgadas pela imprensa e por corretores, no sul do Brasil, atraiu milhares de famílias de pequenos proprietários vindas de áreas de colonização alemã e italiana do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. As novas colônias - que se concentraram nos departamentos Alto Paraná e Caaguazú- deram origem a cidades hoje bastante desenvolvidas, como Santa Rita, Naranjal e Santa Tereza.

Diferentemente daqueles na condição de arrendatários, estes brasileiros vinham de uma tradição familiar de propriedade da terra, possuindo um pequeno capital para mudar-se de país. Repetindo uma imigração que fora feita por seus avós, tinham experiência em mudanças e adaptação à novas culturas. Preocupavam-se em adquirir os documentos necessários para sua fixação no Paraguai, e lutaram muito para abrir as novas colônias. Não foi, no entanto, um povoamento fácil. Problemas como os de irregularidade nos documentos dos lotes, em função de casos de corrupção e grilagem- vitimaram muitas destas famílias. Deste grupo saíram os brasileiros que hoje controlam a economia4 - e começam a controlar o poder político- de toda fronteira leste paraguaia.

Ainda na década de 70, o número cada vez maior de brasileiros vivendo no país vizinho, e as dificuldades que estavam encontrando, não tardaram a ser objeto de denúncias e preocupação da imprensa brasileira e de relatórios de órgãos públicos ligados à questão fundiária (INCRA) e à segurança nacional (SNI), assim como de relatórios e documentos de organizações sindicais (FETAG's e CONTAG) e entidades confessionais brasileiras (CNBB, CPT, Missionários de São Carlos e SPM ). Enquanto isso, no Paraguai, erguiam-se tímidas (e intimidadas) vozes de políticos, sindicalistas e jornalistas, acusando o Brasil de utilizar população civil num projeto imperialista para a América Latina.

O Estado brasileiro, na época, realmente executava várias ações envolvendo deslocamento e assentamento de população civil na região de fronteira com o Paraguai, considerada de segurança nacional. Por esse motivo, era denunciado por intelectuais de países vizinhos, e cobrado a posicionar-se diante dos conflitos que vinham se sucedendo a partir da assinatura do Tratado de Itaipu.

Criticava-se a opção brasileira de desenvolvimento via modernização agrícola e exportação, em detrimento da realização de uma reforma agrária. Tal processo, baseado na monocultura da soja, ao se concentrar na zona do Alto Uruguai, de Iguaçú e no oeste do Paraná, afetaria as zonas fronteiriças com Paraguai e Argentina. Denunciava-se a União de Empresas Brasileiras, presidida pelo General Sá Tavares, por ter adquirido, nos anos setenta, 200 mil hectares no Paraguai, através do Instituto de Bienestar Rural. Este "expansionismo brasileiro" seria preocupante diante dos dados estatísticos que apontavam uma densidade demográfica de menos de 10 hab./km2 na zona leste paraguaia.5

Alertava-se para o fenômeno de "penetração civil brasileira", ou "invasão pacífica", na Bolívia, Paraguai e Argentina. Considerava-se alarmante a união de dois fatores: a grande quantidade de superfície terra nos primeiros dois países em mãos de brasileiros e o fato do Brasil estar concedendo empréstimos e créditos a países limítrofes para indústrias e obras viárias.6

Acreditava numa coincidência entre as medidas repressivas do governo paraguaio que liquidaram com as chamadas "ligas agrárias" que organizavam segmentos do campesinato desse país, entre 1971 e 1975, e o projeto de expansão brasileira na região leste. Através de mecanismos de despejos, saques e prisões, o governo teria se apropriado das terras desses camponeses (principalmente nas zonas de Itaipu, Alto Paraná, Caaguazú e Canindeyú) para redistribuí-las entre setores do próprio governo e empresas estrangeiras, além de auspiciar a instalação de milhares de colonos brasileiros.7

A atuação do governo militar brasileiro sobre a região de fronteira com o Paraguai atingiu, entre 1972 e 1975, 167.034 hectares, 89.034 no Estado do Mato Grosso do Sul e 78.000 no Estado do Paraná. No Mato Grosso do Sul, no início dos anos 70, o Governo Federal criou os Projetos Integrados de Colonização Iguatemi e Sete Quedas, objetivando "resolver os problemas de tensão social envolvendo agricultores, bem como de proporcionar a ocupação racional de áreas estratégicas para o desenvolvimento nacional"8 . No Paraná, foi construída a Usina Hidrelétrica de Itaipu, cujo reservatório alagou quando concluído, em 1982, 1.350 km2, sendo 780 do lado brasileiro e 570 do lado paraguaio. O lado brasileiro estava ocupado por 42.444 pessoas, destas, 38.445 na zona rural9 . A situação de tensão provocada por este projeto resultou em uma série de manifestações e mobilizações dos chamados "atingidos" por indenizações justas. Brasileiros "atingidos" no lado paraguaio também participavam das mobilizações (eram em sua maior parte pequenos proprietários de terra, que reivindicavam terras no Brasil, num esforço de retorno ao país, via mobilização). Percebe-se que o Paraguai se apresentava então como uma opção para aqueles agricultores que arrendavam terras na área atingida pela construção da barragem, no Estado do Paraná.

Em outubro de 1979, a grande imprensa denunciava as irregularidades existentes no Projeto Integrado de Colonização Sete Quedas, e violências contra brasileiros no Paraguai. Em 1981/82, quando de visitas do General Figueiredo aquele país, agricultores brasileiros realizaram manifestações denunciando violências sofridas e problemas na comercialização dos produtos agrícolas. Em abril de 1982, mais de 500 destas famílias foram levadas ao Projeto Braço Sul, na Chapada dos Guimarães (MT) e para o vale do São Francisco (BA). Começava aqui a se forjar a história dos chamados "brasiguaios". Em abril de 1984, na frustrada ocupação da Gleba Santa Idalina, em Ivinhema (MS), por 800 famílias da região, centenas delas eram provenientes do Paraguai.

Para estes primeiros grupos que retornaram organizadamente ao Brasil, as histórias do passado paraguaio parecem ter se perdido nos novos cotidianos encontrados na Amazônia ou no sertão baiano. Mesmo assim, quando pensamos, hoje, nestes camponeses, inevitavelmente nos vem à mente a expressão "brasiguaios". Tal expressão, no entanto, não apareceu em nenhum documento ou notícia anterior a 14 de junho 1985, quando- diante da divulgação de um Plano Nacional de Reforma Agrária no Brasil- mais de mil famílias assim se identificando retornaram massivamente do Paraguai e armaram um imenso acampamento na praça principal da cidade fronteiriça de Mundo Novo (MS), reivindicando terras.

Para entender um pouco esta confusão entre "brasiguaios" e "brasileiros no Paraguai", vamos buscar as primeiras reflexões feitas sobre a questão. Desde o inicio da década de 70, a presença de pequenos produtores rurais brasileiros em território paraguaio vinha sendo observada e refletida por entidades confessionais e conferências episcopais do Brasil e do Paraguai, que discutiam ações pastorais conjuntas envolvendo esta população. Veremos abaixo a mediação da Comissão Pastoral da Terra junto aos chamados brasiguaios10 que retornaram ao Brasil em 1985. A importância inegável desta entidade no êxito da mobilização camponesa e na formulação e fixação da identidade brasiguaios não obscurece, no entanto, o trabalho de outros segmentos da Igreja junto aos pequenos produtores rurais brasileiros residentes no Paraguai.

Destaca-se a Congregação dos Missionários de São Carlos, cuja atuação e documentos produzidos sobre o tema ampliaram sobremaneira o conhecimento acerca de realidades diferenciadas desta população, uma vez que seu mapeamento sobre terras e territórios ocupados por brasileiros no Paraguai poucas vezes coincide com aqueles ocupados pelos chamados brasiguaios que acamparam em Mundo Novo (MS).

O Seminário Maior da Congregação estabeleceu, em 1966, a Equipe Scalabriniana de Migrações, que tencionava incentivar e coordenar atividades apostólicas nos locais onde estariam ocorrendo "situações de migração". Em 1971 e 1972 foram programados "estágios pastorais" no Paraguai. Houve grande preocupação na realização de enquetes que levantassem dados sobre o número e a situação sócio-econômica dos brasileiros residentes naquele país, calculados então entre 20 e 30 mil, distribuídos em 13 colônias nos Departamentos Alto Paraná (que incluía, como já vimos, Canindeyú), Caaguazú e Amambay.

Nestas enquetes, e nas várias que se seguiram, já apareciam referências aos problemas de documentação, titulação das terras e comercialização de produtos agrícolas, além de carência de infra-estrutura básica, narrados anos mais tarde pelos brasiguaios acampados em Mundo Novo.

Os missionários scalabrinianos, no entanto, vieram acompanhando mais de perto os brasileiros descendentes de imigrantes europeus, provenientes do sul do Brasil, muitos dos quais conseguiram progredir consideravelmente em território paraguaio. Daí o estranhamento e a recusa de muitos deles em aceitar a confusão entre "brasiguaios" e "brasileiros no Paraguai", conforme se percebe no relato abaixo, de um religiosos da referida congregação:

"Nossos brasileiros são proprietários de terra, produtores maravilhosos. Esta é a realidade de todos esses migrantes que estão radicados definitivamente. 98% estão contentes. Se um ou outro voltou para o Brasil, ofende os paraguaios. Em condição de brasiguaios tem 1%." (Entrevista com padre carlista em Ciudad del Este, em maio de 1990) O mesmo religioso soube trabalhar muito bem a relação entre a mediação eclesial e a identidade brasiguaios, quando, ao referir-se à atuação da Comissão Pastoral da Terra junto a estes e à da Congregação entre os brasileiros que estariam "bem" e "satisfeitos" no Paraguai afirmou "eles são pastores da terra, nós somos pastores dos homens".

Os problemas enfrentados pelos brasileiros residentes no Paraguai apareceriam ainda nas reuniões entre as conferências episcopais do Brasil e do Paraguai, realizadas a partir de 1979. Neles foram programadas ações pastorais conjuntas e a realização de pesquisas e investigações. O Bispado do Alto Paraná criou em 1980 o Programa de Ayuda Cristiana (PAC), que por dez anos ofereceu apoio jurídico a camponeses (brasileiros e paraguaios) envolvidos em conflitos de terra.

A Comissão Pastoral da Terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra também produziram documentos sobre os brasileiros no Paraguai. Mas, por não poderem atuar diretamente em território paraguaio, tenderam a reproduzir as impressões já observadas nos documentos dos missionários. Destacam-se O Mausoléu do Faraó- a usina de Itaipu contra os lavradores do Paraná(1978)e Sem Terra e Sem Rumo (1979).

Sedimentava-se, assim, para o movimento social dos trabalhadores rurais, uma representação de "brasiguaios" que veio, pois, sendo construída através de relatórios e de documentos resultantes de "estágios pastorais", "pesquisas", "encontros", "seminários", com a participação de congregações religiosas, conferencias episcopais e entidades confessionais que atuam no Brasil e no Paraguai.

A partir de 1985, os documentos pastorais e sindicais passaram a tratar das mesmas questões - os problemas enfrentados pelos brasileiros no Paraguai- utilizando-se, porém, sem maiores refinamentos, da mesma expressão "brasiguaios". Este descuido tem dado margem a muitas dúvidas e desacertos, uma vez que religiosos e sindicalistas, ao atuar como mediadores, muitas vezes estão falando de grupos sociais diferentes.

Tal vulgarização do uso de "brasiguaios" para referir-se a todos os brasileiros residentes no Paraguai, é um equívoco metodológico ( e também político). Não podemos nos esquecer nunca que a expressão "brasiguaios" surgiu como auto-atribuição, exatamente para diferenciar os camponeses que retornaram em 1985 dos demais setores do movimento social que lutavam também por terra no Brasil, e para se distinguir do restante da população de brasileiros no Paraguai! Os chamados brasiguaios , ao utilizarem uma identidade étnica como bandeira de luta, souberam reivindicar um tratamento especial dos órgãos fundiários brasileiros! Os agricultores acampados em Mundo Novo (MS) divulgaram, com o apoio da imprensa, uma representação de brasiguaios que se tornou uma noção senso-comum e pré-concebida que perdura até hoje. Nos documentos produzidos pelos grupos de famílias que empunharam esta identidade pela primeira vez, os chamados brasiguaios se apresentaram à nação, narraram seu cotidiano no país vizinho e impuseram aos órgãos fundiários a urgência de suas demandas.

O documento Carta à População foi divulgado no Município de Mundo Novo, exatamente uma semana após o início do acampamento, quando decidiram tornar pública o que definiram como sua história:

"Nós Brasiguaios, acampados em Mundo Novo, queremos contar um pouco de nossa história. É cheia de dor e sofrimento (...)."

A primeira colocação do documento enfatizava a nacionalidade brasileira dos chamados brasiguaios, e sua profissão: agricultores. A seguir vinham as dificuldades enfrentadas no país de origem ("terra natal"), enquanto pequenos produtores rurais. A concentração da terra na mão de pecuaristas e produtores de soja ("latifundiários") teria impossibilitado a realização de novos contratos de arrendamento. Substituídos pelas máquinas agrícolas, teriam percebido a fragilidade de sua situação:

"(...) A situação no Brasil era difícil. A terra está nas mãos dos latifundiários. Não arrendam porque está cheia de capim ou plantada de soja. Os fazendeiros tocam a lavoura com máquinas. Não precisam de mão de obra.(...)"

Definiam o deslocamento para o território paraguaio como uma imigração forçada, uma vez que teria sido a única opção apresentada ao assalariamento rural:

"Fomos obrigados a ir para o Paraguai. (...) Fomos obrigados a deixar a terra natal para não viver como bóia-fria. Imigramos para o Paraguai.(...)"

O documento listava ainda quatro grupos principais de dificuldades ("sofrimentos") enfrentadas no Paraguai: a necessidade e o preço da documentação de imigrantes, problemas na produção e na comercialização de produtos agrícolas, irregularidades no mercado de terras e, imbricada nos três primeiros, a atuação de autoridades paraguaias entre os imigrantes brasileiros.

Os pequenos produtores rurais brasileiros ao cruzarem a fronteira com o Paraguai tinham a obrigação jurídica de regularizar sua condição de estrangeiros através da aquisição de alguns documentos. Tal procedimento é correto, e também é realizado pelo governo brasileiro em relação a trabalhadores de outros países que buscam o Brasil à procura de emprego. O problema seria o alto preço cobrado no Paraguai por estes registros, e a arbitrariedade e violência de autoridades locais contra aqueles brasileiros que não os possuíam.

Os brasileiros na condição de pequenos proprietários ou arrendatários de terra denunciaram que precisavam pagar 5% de sua produção ao "comissário" local (cargo com atribuições semelhantes àquelas de um policial militar, no Brasil). Aqueles na condição de arrendatários por sua vez, destinavam ainda de 20 a 30% da produção aos proprietários dos imóveis rurais. Os brasiguaios consideravam ínfimo o preço pago pelos produtos agrícolas, obrigatoriamente comercializados em empresas cerealistas determinadas. Caso tentassem vende-los em mercados brasileiros, onde encontrariam melhores preços, estariam, obviamente, infringindo legislação paraguaia referente à contrabando.

Muitos pequenos proprietários rurais brasileiros denunciaram ter recebido títulos de validade questionável ao comprarem suas terras. Teriam a partir daí sido pressionados a pagar diversas vezes pela mesma propriedade. Se não o fizessem, eram despejados ou detidos. A policia paraguaia foi denunciada por outros atos violentos e arbitrários, além de crimes de extorsão, contra brasileiros. O estado paraguaio foi acusado de inoperância, ao não cumprir com os encargos mínimos de educação, previdência social e transporte entre as comunidades de imigrantes.

A soma destas dificuldades configurou para os chamados brasiguaios um novo processo de expropriação, que teria levado à sua "expulsão" do território paraguaio. Apresentando os motivos de seus deslocamentos, buscaram justificar a formação do acampamento. Ao governo brasileiro, exigiram o cumprimento de promessas referentes à realização de uma reforma agrária, da qual se consideravam beneficiários em potencial.

Seguiram-se outros pequenos movimentos de retorno do Paraguai, com a formação de acampamentos em Sete Quedas (MS) e Eldorado(MS), que contaram com o apoio do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Mato Grosso do Sul. Juntos, configuraram-se como eventos diferenciados dentro da ampla mobilização nacional dos chamados sem terra, iniciada em maio de 1985 e que resultou num acordo onde as autoridades federais e estaduais se comprometiam a desapropriar terras e a fornecer assistência médica, alimentação e assentamento a todos os acampados.

Em abril de 1986, uma comissão de pequenos produtores rurais brasileiros, residentes ainda em território paraguaio, procurou as autoridades fundiárias brasileiras e entregou um documento que, nos moldes da Carta à População, narrava os motivos de seus deslocamentos e as dificuldades enfrentadas no seu cotidiano. Mais uma vez, havia a reafirmação da nacionalidade brasileira, da condição de agricultores e do duplo processo de expropriação e expulsão , no Brasil e no Paraguai.

Foram feitas denúncias referentes à uma série de atos violentos contra pequenos produtores rurais brasileiros. Estas são datadas, trazem o nome dos envolvidos, dados de naturalidade e familiares, e o local onde ocorreram. Saindo de um vago "brasileiros no Paraguai", estas informações incorporaram à analise um tempo e um espaço mais definidos. Referem-se a uma permanência de mais de 15 anos no Paraguai, e seus signatários definem-se como "Brasiguaios do Departamento Kanediju e proximidades". O Departamento Canindeyú e suas autoridades locais compõe, desta forma, o cenário onde se desenvolvem os fatos narrados pelos chamados brasiguaios.

O acampamento de Mundo Novo deu resultado. Tendo acontecido imediatamente após a assinatura do acordo do governo com o MST, e um mês antes de serem iniciadas as mobilizações que levariam à formação de dezenas de acampamentos do MST em beiras de rodovias nos municípios do oeste do Estado do Paraná, foi considerado situação "emergencial", por envolver cidadãos brasileiros vivendo no exterior. No intuito de atender suas demandas - numa espécie de repatriamento- em outubro de 1985 o governo desapropriou 18.468 ha. em Ivinhema (MS), e criou o Projeto de Assentamento Novo Horizonte, atual município de Novo Horizonte do Sul.

Estes seriam, pois, os "brasiguaios históricos", os que usaram a identidade para definir fronteiras e se organizar. Acontece que, mesmo eles, em certo momento da mobilização, abriram mão desta exclusividade. Acreditaram que se generalizassem a sua condição e a sua identidade a todos os pequenos produtores rurais brasileiros que viviam ainda no Paraguai, fortaleceriam politicamente sua ação. Tal estratégia, além de causar um temor que logo se transformou em reação, entre as autoridades dos estados brasileiros limítrofes com o Paraguai, acabou ainda deixando espaço para muitas dúvidas e mal entendidos.

No acampamento de Mundo Novo as confusões entre identidades regionais, locais e a expressão "brasiguaios" já estava presente. As decisões eram todas tomadas por grupos formados por local de origem no Paraguai. Enquanto isto acontecia, se reforçava o estratagema de demonstrar, para fora, a homogeneidade do acampamento, traduzida na expressão "brasiguaios". Para a maior parte dos acampados, no entanto, tal expressão não possuía nenhum significado anterior. Jamais ouvida ou utilizada como atribuição durante os tantos anos vividos no Paraguai, "brasiguaios" é um nome que "foi colocado" ou "que surgiu" já quando estavam em território brasileiro, conforme se percebe no depoimento abaixo, de um acampado:

"Eu acho graça desse nome, brasiguaio, que arranjaram pra nós. Nunca tinha ouvido falar de brasiguaio lá no Paraguai, só depois do acampamento que surgiu esse nome, de brasiguaio (rindo)."

Os depoimentos abaixo, de outros acampados de Mundo Novo, demonstram a variedade de definições que perpassam a expressão "brasiguaios" e as diferentes formas que aqueles que assim são chamados se relacionam com a mesma. Note-se a consciência de que a identidade, enquanto "título para a luta", lhes ajudou a conquistar a terra:

"Foi pela Pastoral que foi colocado esse nome de brasiguaio. Agora significa - o brasiguaio- que o povo foram do Brasil e entraram no Paraguai e voltaram do Paraguai para o Brasil. Aí então ponharam Brasil-Guai." "O nome surgiu de nós mesmos. A comissão ponhou o nome de brasiguaio e o próprio governo, o INCRA, botou o nome de brasiguaio. Porque é um nome que colou, né? Todo mundo brasiguaio, né? Mas lá no Paraguai não tinha esse nome, o nome criou em Mundo Novo".

"É brasiguaio porque a gente residia lá no Paraguai, então a gente era brasileiro, né, e, sei lá, aquilo foi um apelido que foi colocado na época da organização, prá facilitar um pouco também a organização da terra."

"Óia, eu acho que ser brasiguaio é um pessoal brasileiro que se dedicaram no momento que tavam com dificuldade no Brasil, arriscar a vida no Paraguai, e depois retornou ao Brasil, então levou esse titulo de brasiguaio. Mas somos brasileiros, então foi apenas um título que nós levamos"

"Prá mim, prá minha pessoa, esse título de brasiguaio deu força prá luta, porque se eles vem na época saídos do Paraguai e arrendando terra no Brasil, e depois eles quer formar acampamento, na época não tinha conseguido essa vitória. Então a vitória dos assentados de Novo Horizonte foi esse título"

No cotidiano do assentamento, a identidade brasiguaios perdeu muito de sua razão de ser, e houve um ressurgimento de regionalismos, com rivalidades, por exemplo, entre "gaúchos", "catarinenses", "paranaenses", "mineiros" e "nordestinos". Filhos e netos de parceleiros, muitos nascidos no Paraguai, tendem a assumir as identidades regionais de seus antepassados. São raras as referências feitas a crianças ou adolescentes nascidos naqueles anos em que a família viveu no Paraguai como "paraguaios". Não registrei nenhum caso de "paraguaio" como auto-definição..

Quanto às novas redes de vizinhança, percebe-se ter ocorrido um processo de estigmatização, conforme se percebe neste relato de uma agricultora, proprietária de terras em um projeto de colonização privado no município de Ivinhema (MS), ao ser questionada sobre o assentamento dos brasiguaios naquele município:

"Lá nos brasiguaios? O Antônio já pensou em comprar uma parcela lá, mas eu não quis, lá tem muita discriminação. Por exemplo, ninguém vai querer que a filha se case com um brasiguaio, que vá morar lá. Eu sei que lá até tem gente boa, como a gente, mas ficou naquilo de brasiguaio ser ruim. Já teve um brasiguaio aqui na minha casa, sentou aí nessa cadeira mesmo, ele disse que não gostava de ser chamado de brasiguaio".

O mesmo estigma foi verificado no discurso de parentes de brasiguaios assentados em Novo Horizonte, que haviam permanecido no Paraguai. Na condição de proprietários de terra, e desenvolvendo estratégias de permanência no Paraguai, viam na atitude de seus tios, primos ou irmãos uma "fraqueza", "uma preguiça de lutar". Recusavam-se veementemente a ser chamados de "brasiguaios", na concepção deles, "pessoas que precisam pedir terra para o governo para viver".

Note-se que em ambas as situações, quem fala são pessoas que compraram suas terras, lutaram muito para pagar pelas mesmas, e ressentem-se de pouco apoio oficial para plantio, colheita e comercialização. O fato dos brasiguaios "ganharem terras" lhes parecia injusto.

O sucesso da mobilização dos chamados brasiguaios, que poderia ter aberto um canal de retorno para milhares de outras famílias ao Brasil, esbarrou em poderes locais bem articulados e armados. Já a partir de setembro de 1985, o governo do Estado do Mato Grosso do Sul proibiu novos acampamentos e, em março de 1986, passou a exigir atestado de moradia de dois anos naquele Estado para assentar os que já se encontravam acampados.

Em junho de 1986, 250 famílias provenientes do Paraguai foram agredidas pela Polícia Militar, configurando a partir daí um processo gradativo de fechamento da fronteira brasileira para aquelas mobilizações. Em contrapartida, verifica-se um ascenso vertiginoso no número dos chamados sem terra que acamparam e reivindicaram terras naquele Estado.

Este aparente ciclo de aceitação- rejeição da categoria brasiguaios e das reivindicações das famílias que assim se identificavam, parecia apontar para sua contingência. Haviam ocorrido mudanças na política fundiária do Estado brasileiro, por pressão de grupos conservadores e anti- reforma agrária. A reação simpática e a permissão para o ingresso de cerca de 1.200 famílias , em junho de 1985, era coisa do passado. A tática de organizar-se em conjunto com os sem-terra do Estado do Mato Grosso do Sul, iniciada por aqueles que acamparam em Eldorado (MS), em abril de 1986, parecia um novo caminho de retorno ao país, e de acesso à terras. Neste sentido, os "brasiguaios" em território brasileiro estariam, hoje, "assentados" no Mato Grosso do Sul, ou misturados aos "sem terra" espalhados em acampamentos pelo sul do país, ou na condição de "favelados" nas cidades fronteiriças.

Calculou-se na época das primeiras mobilizações em 37.713 o número de brasileiros residindo legalmente no Paraguai, conforme o Ministério das Relações Exteriores do Brasil, sendo a principal concentração populacional a do Departamento Alto Paraná, com 20.450 pessoas. No entanto, o Diretor de Imigração paraguaio estimava em cerca de 250.000 o número de brasileiros lá residentes, com situação não regularizada. Os cálculos de organizações não governamentais e dos acampados, amplamente divulgados pela imprensa, estimava, em 400 mil este número. Dados censitários mais recentes, referem-se a 98 mil brasileiros residindo legalmente no Paraguai. A imprensa vem trabalhando com uma cifra de 350 mil, não regularizados.

Em função dos problemas decorrentes desta imigração, foi criado em 1982 o Grupo de Cooperação Consular Brasil- Paraguai. Em outubro de 1985, diante das mobilizações dos chamados brasiguaios , o Grupo de Cooperação Consular apontou para a necessidade da realização de um censo dos brasileiros em território paraguaio. Houve um consenso de que a raiz dos problemas dos "brasiguaios" (assim tratados nos documentos oficiais do evento) seria a irregularidade na documentação pessoal e fundiária.

O censo nunca foi realizado. Foram feitas algumas amostragens, que estão longe de espelhar a real situação e o número exato de brasileiros, e de filhos de brasileiros, residentes no Paraguai. Em 1993, por pressão de entidades sindicais, políticas e de apoio aos chamados brasiguaios , a chancelaria brasileira determinou que o Consulado Geral do Brasil no Paraguai realiza-se "missões consulares itinerantes", com o objetivo de fornecer documentos brasileiros aos nossos colonos, para que, a partir daí, pudessem regularizar sua situação de imigrantes. Soubemos da realização de três dessas missões, com resultados positivos. Porém, alegando falta de verbas, este trabalho consular praticamente cessou.

O que sabemos hoje sobre os brasileiros que permaneceram, retornaram11 , ou chegaram depois disto ao Paraguai é muito pouco. Os dados são escassos e superficiais, obtidos em visitas oficiais brasileiras de curta duração, ou em reportagens jornalísticas.

A grosso modo, os brasileiros no Paraguai estariam hoje reunidos em seis grupos: 1 - Proprietários de terra, comerciantes e madeireiros, com documentos regulamentados e estratégias de integração plena para participar da vida política local. Estão localizados em toda fronteira leste paraguaia, com maior concentração territorial nas colônias Santa Rita e Naranjal, no Departamento Alto Paraná. Seriam em sua maioria provenientes dos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, descendentes de imigrantes alemães e italianos, e ligados ao tradicionalismo gaúcho. Para parlamentares brasileiros, integrantes da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, conformariam uma elite "branca e rica" , que utiliza como mão-de-obra brasileiros indocumentados, que trabalham sem contratos e que recebem menos do que prevê a legislação paraguaia. Para isso, entram em relações ilícitas com funcionários dos órgãos paraguaios encarregados da imigração e do trabalho. Algumas abordagens jornalísticas referem-se a este grupo como "oligarquia brasiguaia".

Os referidos parlamentares assim descreveram este grupo, após uma reunião em Santa Rita:

"De toda sorte, foi possível perceber que os negros e os pobres não são bem-quistos pelas lideranças brancas e ricas. Os negros da região, que se dedicavam ao desmatamento e à cultura de hortelã, transferiram-se para outras regiões. Percebeu-se também que há exploração de trabalhadores braçais brasileiros por parte de proprietários brasileiros e paraguaios, motivada, em parte, pelo fato de que os trabalhadores não tem, em sua grande maioria, documentação para permanência no Paraguai"12

Matérias jornalísticas dão rostos e falas a este grupo, permitindo-nos analisar depoimentos que demonstram um descaso muito grande com o país escolhido para emigrar. Os brasileiros pertencentes a este primeiro grupo tendem a desqualificar a população paraguaia local, a ser coniventes com os abusos de autoridades paraguaias, entram em relações ilegais com as mesmas, e, ainda, tem projetos pragmáticos para seu futuro no Paraguai:

"Por conta do sangue índio, os paraguaios são extremamente preguiçosos e não tem vocação empreendedora". (declaração de um brasileiro oriundo do Rio Grande do Sul, dono de gráficas, do motel, da concessionária de automóvel e do posto de gasolina de Santa Rita)13

"Aqui ainda é o lugar para se ganhar dinheiro, vou me naturalizar paraguaio para concorrer à prefeitura" (gaúcho, proprietário de madeireira em Santa Rita)14

"Aqui na empresa não tem ninguém legal. A culpa é do Estado paraguaio, onde a corrupção é a regra. Aparece um fiscal do Ministério do Trabalho, pede 500 reais para fazer vista grossa. Depois vem o sujeito da Delegacia Florestal, e como há desmatamento em área de preservação, o cara cobra uns 600 reais para não lavrar multa. Acaba sendo vantagem para nós. Mesmo porque não adiantaria nada ficar com tudo direito. Eles viriam de qualquer forma e dariam um jeito de cobrar propina" (catarinense, proprietário de madeireira em Santa Rita)15 2 - Pequenos proprietários de terras com algumas atividades acessórias ( arrendamentos, assalriamento rural, motoristas de caminhões e máquinas agrícolas), espalhados por toda faixa de fronteira. Grande parte está no Paraguai há 20 anos ou mais. Vivem do trabalho familiar, e produzem lavouras comerciais. Entre seus filhos e netos encontramos um sentimento maior de pertencimento ao Paraguai. Atualmente, estão sendo vitimados pelo processo de encarecimento de terras e de concentração fundiária que acontece na região. Deste grupo, que foi o que comprou terras nos projetos de colonização privada da década de 70, e cujos filhos estão tendo dificuldades de reproduzir sua condição camponesa através do acesso a terras novas, sairam muitas das famílias que em 1985 retornaram organizadamente ao Brasil.

3 - Empregados de lavouras, de madeireiras e carvoarias pertencentes à brasileiros. São os "trabalhadores braçais", que recebem o equivalente a 60% do salário mínimo paraguaio. Muitos são provenientes do Paraná, e parte é nascida no próprio Paraguai, de pais brasileiros, mas não tem registro algum. Calcula-se que existam 35 mil "brasileiros" apátridas , sem documentação paraguaia nem brasileira. As crianças ajudam o grupo familiar exercendo tarefas nas lavouras, nas madeireiras e carvoarias, caracterizando situações de trabalho escravo. Vivem em situação de extrema pobreza, em habitações precárias, sem água, nem luz, nem rede de esgotos. Seriam cerca de 175 mil pessoas, "a parte pobre" , os "brasiguaios" no sentido mais restrito do termo: "O que em princípio parece um qualificativo de dupla cidadania, que indicaria o cumprimento de deveres e gozo de direitos tanto no Brasil quanto no Paraguai, é na verdade um carimbo discriminatório. Os brasiguaios são relegados deste e daquela lado da fronteira".16

Em reunião com Deputados da Comissão de Constituição e Justiça e da Comissão de Trabalho, parlamentares brasileiros constataram que estariam sem documentação no Paraguai cerca de 150.000 brasileiros.

4 - Os ex-arrendatários que, após desmatar as grandes fazendas do Alto Paraná onde plantavam hortelã e outras lavouras comerciais, foram deslocados para outras regiões do Paraguai, provavelmente Canindeyú. Não se descarta que muitos deles tenham permanecido na região como "trabalhadores braçais". São os "pretos e pobres" assinalados no documento dos parlamentares brasileiros. O depoimento de um comissário paraguaio parece referir-se a este mesmo grupo, embora possa incluir também os representantes do grupo dois:

"Aqui, brasileiro rico e branco é bem-vindo. Dos pobres e pretos, queremos distância"17

5 - Aqueles brasileiros em situação marginal. Os detidos em prisões, os prostituídos e os meninos e meninas de rua. Em maio de 1996, aconteceu uma viagem de parlamentares brasileiros ao Paraguai, para apurar denúncias de violações dos direitos humanos contra 186 brasileiros detidos naquele país. Nas visitas feitas a presídios, os deputados não verificaram violências contra brasileiros, e sim a inoperância do Poder Judiciário para resolver sua situação. Cerca de 90% dos brasileiros detidos não tinham sentença condenatória e estavam presos há vários anos. Conforme os parlamentares, não há assistência jurídica por parte do consulado brasileiro. Em relação aos menores presos, sua situação estaria de acordo com a legislação paraguaia, na qual a idade de responsabilidade criminal é de 14 anos.

Relatório do prefeito da cidade de Hernandarias, também no Alto Paraná, recentemente divulgado, informa que a maioria das boates e bares da cidade funciona como ponto de prostituição infantil controlado por brasileiros. De acordo com o levantamento, das 198 prostitutas que trabalham nas ruas de Hernandarias, 132 são brasileiras e, dessas, 66 são menores de idade. Uma pesquisa feita em 1996 pela consultora da UNICEF no Paraguai, Luz Acosta, indicou que há cerca de duas mil prostitutas brasileiras somente na região do Alto Paraná. Dessas, 1.500 são menores. O problema é mais grave nas cidades de Hernandarias, Santa Rita, Naranjal, Ciudad del Este e Santa Rosa.

6 - Neste último grupo entrariam os brasileiros ligados ao crime organizado. São inúmeras as quadrilhas de roubo de carros, roubo de cargas, contrabando, tráfico de drogas, aliciamento de prostitutas e jogos de azar atuando na fronteira do Brasil com o Paraguai. Não existem estatísticas sequer aproximadas de quantos sejam, nem onde estão fixados seus membros. Sabe-se, no entanto, que sua ação criminosa atinge e envolve os agricultores brasileiros que residem naquela região. No Departamento Canindeyú, por exemplo, algumas reuniões de camponeses que tentavam se organizar para retornar ao Brasil só aconteceram com a autorização prévia de um chefe de quadrilha de roubo de carros, que tem um latifúndio no local. As mobilizações camponesas atraem policiais, e não interessa ao crime organizado este tipo de situação política em "suas" áreas de atuação. Camponeses brasileiros também são vítimas de assaltos à suas casas, animais, máquinas agrícolas e automóveis.

O governo paraguaio durante algum tempo esteve expedindo documentos de dupla cidadania para tentar regularizar a situação imigratória dos brasileiros em seu país, mas tal processo está suspenso devido à suspeitas de falsificação de 30.000 destes documentos, que estariam sendo destinados à "máfia chinesa" de Ciudad del Este, ao "Comando Vermelho" e a outros integrantes de organizações clandestinas do Brasil.

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Obviamente que estes seis grupos identificados acima não se pretendem totalizadores, muito menos estou propondo uma tipologia sobre os brasileiros no Paraguai. Diante da fraqueza dos dados disponíveis, estas seriam apenas pistas para futuros trabalhos. A situação é bastante complicada. Os brasileiros parecem ter transferido para território paraguaio suas relações sociais injustas, sua pobreza e sua tensão social.

As autoridades locais paraguaias, os mesmos comissários denunciados pelos chamados brasiguaios em 1985, parecem não se abalar com esta situação, entrando em relações de reciprocidade positiva com os brasileiros que exercem o poder econômico na região. Mas, se os comissários não mudaram, o mesmo não se pode falar do resto do país. O Paraguai de hoje não é mais aquele encontrado pelos agricultores brasileiros que para lá se transferiram durante a ditadura do General Alfredo Stroessner. A sociedade civil vem se reorganizando, e arduamente buscando reconstruir a honra e a dignidade de seu país. Se a estrutura rígida e muitas vezes corrompida do Partido Colorado ainda atua, novos atores transformaram rapidamente o cenário político do campo paraguaio.

Destacam-se, sem sombra de dúvidas, as organizações camponesas. Existem naquele país dez organizações de nível nacional, 58 regionais, 11 zonais, e 768 de base, sendo que destas últimas, 86 são comitês de mulheres.18 . Em 1996, aconteceram 56 conflitos de terra no Paraguai. Sobressaíram os departamentos de San Pedro e Caaguazú, com 11 e 9 casos, respectivamente, seguidos de Alto Paraná e Canindeyú, com 6 casos cada um. O maior número de ocupações, despejos e detenções aconteceu em San Pedro. Os localmente chamados "sin tierras" realizaram 20 ocupações: algumas em terras de brasileiros, algumas em novos latifúndios e outras em áreas já ocupadas em anos anteriores; e sofreram 27 despejos, a maioria violentos, com queima de barracas, destruição de cultivos e roubo de utensílios de lavoura e animais domésticos. Chama a atenção o grande número de camponeses detidos em 1996: aproximadamente 553, muitos deles sem ordem escrita de juizes competentes e em muitos casos com ordens judiciais ilegais de captura genérica.

Durante 1996, as diversas organizações camponesas realizaram 40 manifestações de protestos para reclamar melhores preços para os produtos agrícolas, para o fim das perseguições aos ocupantes de terras, pela liberdade aos ocupantes detidos, para repudiar o assassinato de dirigentes camponeses , pela reforma agrária e por mudanças na política neoliberal do presidente Wasmosy.19

A Câmara dos Deputados do Paraguai votou uma nova "Ley de Migraciones", que estabelece reciprocidade de tratamento entre brasileiros no Paraguai e paraguaios no Brasil. Tal lei trará problemas para os brasileiros sem documentação legal no Paraguai. Deputados da Comissão de Relações Exteriores paraguaia afirmaram ter tentado discutir o assunto com autoridades brasileiras durante dois anos, sem resultados, denunciando o pouco caso com que o governo brasileiro tradicionalmente trata as demandas e propostas paraguaias de resolução de problemas. Os políticos paraguaios discutem ainda um novo "Codigo del Trabajo" e um novo "Código Agrario", aprovados na Câmara e em tramitação no Senado.

Ou seja, o Paraguai, a duras penas, tenta restabelecer no país leis que protejam seus cidadãos e seu território da competição estrangeira. Não é uma tarefa fácil, foram muitos anos de ditadura militar comprometida com Brasil e com o crime organizado. Mas o povo paraguaio tem demonstrado nas ruas e nas urnas que não está disposto a aceitar o retorno à velha ordem. Ironicamente, muitos brasileiros sonham com a volta de Stroessner, época em que tudo lhes era garantido, e não haviam camponeses paraguaios organizados demandando terras na fronteira leste.

Foram estes brasileiros que retomaram certos componentes da representação coletiva "brasiguaios" quando enfrentaram a ameaça da criação de "zonas de seguridad" na fronteira, proibitivas a estrangeiros, e as ocupações de camponeses sem terra paraguaios. Por estar sendo utilizada de forma mais genérica, a identidade "brasiguaios" permitiu, nestas situações, o agrupamento de pessoas de diferentes categorias sociais e ocupacionais, mas não redundou em organizações de longo prazo.

Tem-se, deste modo, uma variabilidade do uso da categoria brasiguaios, as quais conformam grupos diferentes, que criam fronteiras étnicas diversas. Através da mesma identidade de atribuição são representadas realidades políticas e sociais bastante diferenciadas. Os chamados brasiguaios podem ser - conforme os planejamentos recentes do MST- apenas aqueles brasileiros que se encontram na condição de peões, bóias-frias, posseiros e empregados de fazenda em território paraguaio. Mas, em circunstâncias políticas diversas, de um discurso ideal, a expressão pode abranger igualmente os pequenos proprietários de terra.

Para autoridades diplomáticas, e algumas entidades sindicais e confessionais, podem ser mesmo todos os brasileiros que vivem e trabalham em território paraguaio, espectro que engloba grandes proprietários de terra, comerciantes, colonizadores e empresários.

Brasiguaios podem ser aquele que desejam retornar ao Brasil e também aqueles que se mobilizam para permanecer no Paraguai. Brasiguaios, coerentemente com estas diferentes estratégias e com o tipo de mediação em jogo (setores diversos da Igreja, sindicatos ou membros dos aparelhos de poder), dispõe-se como categoria que transita de discursos progressistas até discursos e ações de grupos mais conservadores.

A variabilidade da categoria e seu uso diferenciado aponta para uma multiplicidade de visões que vão conformar o que seja brasiguaios. Na medida em que cada agente social ou instituição o recorta conforme suas estratégias políticas, poder-se-ia dizer que o objeto de nossa análise conhece sucessivos rearranjos. A unidade da categoria brasiguaios, desta forma, não é resultante de uma definição harmônica e consensual. Parece, antes disso, resultar do confronto entre perspectivas opostas, de manipulações de distintos valores e interesses, de lacunas, de ambiguidades e superposições de significados.20 . A complexidade que envolve a sua significação é coerente , pois, à complexidade das situações sociais que tenta abarcar.

Os brasileiros que vivem hoje em território paraguaio, passados quase 30 anos das primeiras emigrações massivas, parecem não ter aprendido a respeitar o povo e a cultura paraguaia. Sequer parecem dar-se conta que o Paraguai é terra natal de seus filhos e netos. O desconhecimento sobre o Paraguai parece mesmo estender-se à opinião pública brasileira como um todo.

Nós todos, brasileiros, e principalmente os que trabalham com as populações analisadas acima, precisamos mudar nossa atitude em relação ao Paraguai. E esta mudança passa pela informação. Precisamos ler mais sobre o país, conhecer a produção de seus literatos, seus sociólogos, economistas e historiadores e acompanhar mais de perto sua política partidária, suas organizações sindicais e camponesas. Não podemos mais estudar e atuar em situações sociais que ocorrem em regiões de fronteira sem conhecer aspectos significantes da história, da cultura, da política e da econômia dos países envolvidos.

Caso contrário, nos arriscaremos a embarcar na falácia de um mundo globalizado, de fronteiras relativizadas e estados nacionais fracos, onde ninguém se responsabiliza por ninguém. Deixaremos os brasileiros e os paraguaios pobres perambular pelas fronteiras nacionais de seus países à mercê de exploradores de plantão: latifundiários, empresários, industriais, políticos, funcionários dos governos e policiais.

São muitos os problemas enfrentados pelos brasileiros no Paraguai. Para resolver parte deles, é preciso começar de algo. Não importa se queiram voltar ao Brasil ou ficar onde estão, ou mesmo se queiram ir e voltar, de acordo com lógicas próprias do mundo camponês . Todos tem o direito de possuir documentos pessoais brasileiros, tradutores de cidadania, e necessários para toda tramitação de regularização da sua situação imigratória. Todos tem direito a um emprego com salário digno e à terra, aqui ou no Paraguai. É neste sentido que deveríamos pautar nossas refelexões e planejamentos.

NOTAS

1 Para quem se interessa na questão da imigração de brasileiros à outros países da América Latina, ver também Brasileiros de além fronteira: Argentina, resultado de pesquisa de campo em andamento, na região de Misiones, Argentina.

2 Historiadora e antropóloga. Dedica-se ao estudo de populações camponesas em regiões de fronteiras internacionais, com ênfase naquelas do Mercosul. Doutoranda em Antropologia Social na Universidade de Brasília. E-mail: msprandel@ax.ibase.org.br

3 Conforme LAINO, Domingo-Paraguay: fronteras y penetración brasileña. Asunción, Ediciones Cerro Corá, 1977.

4 São responsáveis por, aproximadamente, 90% da soja, 80% do milho, 60% da carne e 50% da produção industrial do Paraguai.

5 Conforme "Agricultura y geopolitica en la cuenca del Plata", de Germano Wettstein e Esteban Campal. Crisis, no. 27, julio. Buenos Aires.

6 Conforme "Brasil, el vecino armado", de Ugo Scarone.. Crisis, no. 30, outubro. Buenos Aires.

7 Ver CASTRO, Jorge Lara- "Paraguay: luchas sociales y nacimiento del movimento campesino". In:_ P.G. Casanova (org) Historia Politica de los Campesinos Latinoamericanos. Mexico, Siglo XXI Editores. Sobre as ligas agrárias, há documentos recentes, com base em depoimentos de sobreviventes. Destacam-se: Ko'äga Roñe'ëta (Ahora Hablaremos)- testimonio campesino de la represión en Misiones (1976-1978). Asuncion, CEPAG, 1990; e "La represión de las Ligas Agrarias de San Pedro, Caaguazú y Paraguari- memorias, testimonios y comentarios" e "La represión de las Ligas Agrarias Campesinas de Misiones- memorias, testimonios y comentarios", ambas publicações do Centro de Documentación y Estudios, de Asunción, separatas do Informativo Campesino de maio e agosto de 1993.

8 Cf. Diagnóstico fundiário/ Estado do Mato Grosso do Sul. MEAF, Coordenadoria Geral do MS-CR 16/ Departamento de Terras e Colonização do MS-Terrasul (1984) 9 Cf. Os expropriados de Itaipu. Dissertação de Mestrado de Guiomar Germani . Porto Alegre, PROPUR, UFRGS (1982) 10 "Brasiguaios", quando aparecer entre aspas, refere-se à utilização genérica do termo. Brasiguaios, quando aparecer grifado, refere-se à sua utilização como identidade étnica e organizativa por camponeses que retornaram ao Brasil demandando terras ao governo federal.

11 Muitas das famílias hoje assentadas no Brasil vem desenvolvendo uma estratégia de contratos de arrendamento para seus filhos em propriedades paraguaias, ou para trabalhar em colheitas. Nos casos daqueles que receberam parcelas de terras fracas, o próprio chefe de família "vende o lote", e retornam todos ao Paraguai como posseiros ou bóias-frias.

12 Cf. Relatório dos trabalhos da Comissão Externa encarregada de apurar as denúncias de violação dos Direitos Humanos de brasileiros no Paraguai. Brasília, junho de 1996. p. 5 13 Cf. "Brasiguaios- um drama tipo exportação". Reportagem de Kaíke Nanne , para a revista Terra . Agosto de 1996, ano 5 n. 8 14 Idem

15 Idem

16 Idem

17 Idem

18 Conforme o Guia de organizaciones campesinas- 1992-1993, publicado pelo Centro de Documentación y Estudios. São em número de 36.265 os camponeses organizados no pais, 3,7% da população rural acima de 18 anos. As principais organizações nacionais são: Federacion Nacional Campesina (FNC), a Coordinadora Nacional de Lucha por la Tierra y la Vivienda (CNLTV), Organización Nacional Campesina (ONAC), Movimiento Campesino Paraguayo (MCP) e Unión Nacional Campesina Oñondivepa (UNC)

19 Fonte: Informativo Campesino. Asunción, Centro de Documentación y Estudios. N. 99, diciembre de 1996.

20 Cf. reflexão de João Pacheco de Oliveira Filho sobre identidades indigenas em "A busca da salvação: ação indigenista e etnopolítica entre os ticunas". Mimeo, 1991 Buscar en esta seccion :