CONGRESO VIRTUAL 2000

Para uma Ecologia Humana - Sedovém

Álvaro Campêlo

CEAA

Universidade Fernando Pessoa - Portugal

O trabalho que apresentamos tem por base uma investigação em antropologia aplicada desenvolvida no lugar de Sedovém, na freguesia de Apúlia, concelho de Esposende, no litoral norte de Portugal. Esta investigação, liderada pelo autor, está ainda a realizar-se, e conta com a participação de antropólogos, arqueólogos, um biólogo, e uma arquitecta. Procurou-se, assim, delinear um projecto de intervenção multidisciplinar, onde o «olhar» antropológico fosse central, de modo a instaurar paradigmas novos de actuação ao nível do desenvolvimento de pequenas comunidades, e que tenham preocupações culturais e ambientais.

O problema que se colocou no início do estudo, tem a ver com a situação da pequena comunidade de Sedovém: um aglomerado caótico de construções destinadas a vários fins. Temos aqui construções para a pesca, para a habitação, e até para restaurantes. Por se situarem numa área sensível do litoral costeiro, e porque manifestam um grave desordenamento estrutural, estas construções tinham sido consideradas pelo POOC (plano governamental denominado Plano de Ordenamento da Orla Costeira) de destruição obrigatória, sendo o espaço anteriormente ocupado para uma futura renaturalização. Logo num primeiro olhar vários factores colidiam com esta pretensão estatal: um rico património histórico e cultural, construído por esta pequena comunidade agro-marítima; e uma situação económica e social que não podia ser esquecida pelos decisores governamentais. Ao mesmo tempo, era notório que a situação, como se apresentava, não era sustentável a nível ecológico. Como conciliar as pretenções dos actores presentes, isto é, como salvar e potencializar uma comunidade tão peculiar na sua cultura, ao mesmo tempo que se defendia e melhorava o ambiente? É na tentativa de resolver esta questão que surgiu o trabalho que apresentamos.

O projecto contemplou uma investigação da zona costeira como espaço relacional e interdependente, numa simbiose de elementos naturais, sociais e culturais. Assim sendo, uma consequente intervenção, deveria potencializar e valorizar esses elementos. Ao compreender a orla costeira (suas características geográficas, formações geológicas, ambientais e humanas – estruturas e vivências sociais do espaço), em relação com a plataforma continental (estrutura geológica e características biológicas), o nosso estudo pretendeu o não isolamento de uma ou outra questão, mas posicionar a interdependência dos elementos presentes.

A zona costeira que nos diz respeito manifesta-se por uma linha de fundos rochosos, num “notável paralelismo com a linha da costa” (Ribeiro.1945. 207). O litoral português ocidental é percorrido por uma corrente de norte a sul, cuja temperatura e salinidade aumenta conforma se caminha para sul, embora com variações não muito consideráveis. Na zona norte, na sub-área que vai da Caminha a Espinho, temos um tipo de costa de elevação em que o mar, de forte ondulação, bate contra uma linha quase recta, dificultando as pescas e zonas portuárias, interferindo na orla costeira, apesar de ser uma costa alta. Algumas zonas são alimentadas pelas areias da plataforma continental, que as correntes litorais empurram para terra, principalmente aquelas que se seguem a zonas de estuários, como é o caso de Apúlia e o estuário do Cávado, criando assim portos de pesca do tipo de costa aberta, tão comuns a sul de Espinho, onde um tipo de costa baixa e arenosa permite o desenvolvimento de faixas dunares extensas.

Este tipo de costa aberta na Apúlia permitiu o desenvolvimento das actividades de pesca de tipo local, de características sazonais. A proximidade de comunidades agrárias, fez com que nascessem aqui actividades agro-marítimas, como a apanha do sargaço e do pilado, dando novos sentidos e riquezas à relação com o mar. Estas actividades agro-marítimas, que ainda hoje são observadas em Sedovém, estão intimamente ligadas ao processo de desenvolvimento das populações e actividades marítimas portuguesas, onde se pode distinguir quatro «ecotipos» (Moreira. 1987:151-152) fundamentais:

1.    Camponeses-pescadores. Estes tinham a base da sua economia doméstica na agricultura, procurando a exploração do mar como complemento de subsistência ou complemento das actividades agrícolas (através dos fertilizantes);

2.    Pescadores-camponeses. Como o grupo precedente, são pescadores temporários. No entanto aqui é a pesca a actividade principal e dominante, sendo as outras actividades um complemento (note-se que depois de meados do séc. XIX tanto o primeiro como o segundo «ecotipo» alternam a actividade do mar com outras actividades que vão para além da agricultura, como os serviços e a indústria);

3.    Pescadores-mercadores. Neste padrão a actividade piscatória está estritamente associada ao comércio do pescado, o que resulta em grande parte dos incentivos dados no período medieval (e seguintes) às actividades urbano-mercantis;

4.    Pescadores especializados ou marítimos profissionais. Estes dedicam-se em exclusivo à actividade da pesca, quer a nível individual, quer ao serviço de outrém (campanhas/empresas).

O que há a realçar nos vários «ecotipos» é a extraordinária natureza composta e plural da actividade pesqueira. No nosso caso, em Sedovém, apesar de podermos anotar personalidades que possam estar ligados a um ou outro «ecotipo», são os dois primeiros que predominam. As actividades agro-marítimas oferecem simultaneamente segurança e flexibilidade, pois permitem não só complementar os ganhos, respeitando a sazonalidade das actividades, como potencializar os rendimentos agrícolas com a adubação das terras. Em Sedovém há um predomínio para o primeiro padrão, o qual se constitui como «ecotipo» de alguma forma definidor das actividades aqui desenvolvidas.

Sendo a apanha do sargaço e do pilado as duas actividades marítimas que complementam as agrárias, convém aqui distinguir dois tipos sociológicos: os lavradores e os jornaleiros, cabaneiros, seareiros ou taraqueiros[1]. Os Lavradores viviam mais para o interior, e iam ao sargaço para consumo nas próprias terras. Faziam o trabalho eles próprios, juntamente com os seus familiares ou com um grupo de vizinhos. Possuíam, na sua maior parte barcos próprios, juntando à apanha do sargaço e do pilado, a de alguma pesca para consumo próprio e, algumas vezes, para venda (Baldaque da Silva. 1892: 92). Já no que respeita aos cabaneiros-sargaceiros, a actividade era uma oportunidade de recolher mais alguns proventos para sua subsistência, juntando o trabalho a jornal (pago diariamente), ou o de pequenas parcelas arrendadas, à pesca e apanha do sargaço para venda. Os documentos oficiais fazem eco desta distinção[2], chegando inclusive a classificar e taxar os fregueses das paróquias diferentemente: “nos livros paroquiais de S. Tiago de Amorim e Santa Eulália de Beiriz, distinguem-se os fregueses que tiram sargaço para «estercar» terras próprias dentro da respectiva freguesia (que não têm de pagar dízimos por esse sargaço), e os que o fazem para venda ou troca «por lenha ou por outra coisa qualquer», ou os que não têm «terra de seu» e semeiam «pam nas terras alheias» (que ficam sujeitos àquela tributação)” (Oliveira/Galhano / Pereira. 1990: 17).

Os portos de pesca, ou comunidades piscatórias exclusivamente dedicados a esta actividade, eram relativamente poucos (Moreira. 1987: 152). Dado ser uma actividade sazonal, grandes espaços do litoral eram ocupados apenas numa base temporária (Lobo. 1791: 353), o que originou um tipo de construção urbana muito própria. A residência temporária e a complementaridade de actividades permitiu, ou exigiu, a formação de um tipo de habitação característica em madeira. Em toda a costa, de Caminha ao Douro, a maior parte das povoações marítimas e agro-marítimas compunham-se de cabanas. Veja-se o caso da Póvoa, que se desenvolveu a partir da «pobra» fundada pelos lavradores de Argivai, Gesteira e Santa Cristina (Barbosa. 1958: 322-323). Estes quando iam ao mar, e porque as suas residências ficam longe, ergueram na praia barracos que lhes servissem de abrigo e de recolha de utensílios, acabando por aí se fixarem, quando as mais valias oriundas do mar se tornaram mais importantes do que as arrecadadas da terra (talvez por desprovidos desta). Esta habitação, que adquire vários nomes (como palheiro), vai servindo para vários fins, numa confusão que ainda hoje perdura (habitação, armazém, etc.). Foram os cabaneiros-sargaceiros os principais responsáveis pela criação das raízes de pequenas comunidades junto do litoral, nas formas precárias antes mencionadas. Esta gente criou uma cultura muito própria, intensificando a formação de uma cultura onde os elementos marinhos se vão acentuando cada vez mais.

A estas casas seguiram-se, por vezes, casas de alvenaria, mas com maior frequência continuaram de tabuado, terreas e acanhadas, com uma única divisão servindo de habitação e arrecadação da utensilagem profissional, sem soalho, forno ou chaminé, onde a família dormia em esteiras e onde também se cozinhava (cf.Moreira. 1987: 187).

As casas de madeira dos pescadores e as cabanas que serviram de abrigo ou residência temporária a sargaceiros-lavradores (Oliveira / Galhano / Benjamim. 1975: 103-112) foram o ponto de partida de muitos dos aglomerados costeiros, nomeadamente Amorosa, Castelo de Neiva, Averomar, Mindelo, Vila Chã, Apúlia, Sedovém, ect. Por vezes estes aglomerados vinham indicados no mapa com o nome de «barracos» ou «palheiros» das povoações rurais que lhes correspondiam no interior e nas quais residiam as gentes a quem essas habitações pertenciam na maior parte (Moreira. 1987: 188). Neste momento não podemos deixar de salientar, aquilo que para alguns autores se afigura importante e consequente (Oliveira/Galhano e Pereira. 1990: 15): a actividade sargaceira constitui um factor essencial de povoamento costeiro!

As características do espaço habitacional marcaram as relações sociais das comunidades que se constituíram a partir destas ocupações. A organização do espaço e a natureza primitiva dos barracos (Vasconcelos. 1924: 33-38; Oliveira/Galhano. 1965: 43-64), para além de uma demonstração de pobreza, era também a causa de uma vivência diferente dos mesmos, fazendo da rua, do exterior, um verdadeiro complemento da habitação. Desta forma, a vida quotidiana e as relações sociais estavam marcadas pelos usos do espaço público. Esta simbolização do espaço público marcou a vida comunitária das comunidades costeiras, vindo-se a reflectir nas mais diversas estratégias sociais delineadas pelas mesmas, como notou Sally Cole (1994) em Vila Chã.

Um dos aspectos mais interessantes, ligado particularmente às comunidades criadas a partir destas longínquas ocupações temporárias para a recolha do sargaço e do pilado, está na divisão do trabalho, segundo o género. É verdade que a actividade da pesca é tipicamente uma actividade masculina, e a divisão das tarefas se vai especializando conforma aumenta a diferenciação das actividades marítimas das agrárias. E se é verdade que, como dizia Santos Graça, referindo-se aos poveiros, “o homem, em princípio, só trabalha no mar, e em terra e em casa não faz nada; os trabalhos domésticos, a cozinha, o cuidar dos filhos, etc., e mesmo aqueles que se relacionam com as redes - «adoçar» e o «encascar» - são feitos por vezes pelas mulheres, a quem compete a administração do dinheiro, que o homem lhe entrega integralmente, reservando para si unicamente o «dinheiro das partes» com que paga os seus cigarros e um copo na taberna” (1932: 162 – 165), já não o é afirmar que “as mulheres nunca trabalham na faina piscatória”(Moreira. 1987: 268)! De facto, encontramos mulheres a pescar em Vila Chã, chegando até uma delas a mestre de barco (Cole. 1994). Temos fotos de mulheres em «jangadas» na apanha do sargaço, em Sedovém, o que pode indiciar uma efectiva participação destas nas actividades marítimas, para além da apanha do sargaço, comprovado que está a sua capacidade de entrar dentro do mar. Talvez em Vila Chã o trabalho na pesca tenha sido precedido da apanha do sargaço. Por outro lado, a mulher das comunidades agro-marítimas assumia funções na agricultura a que não tinham acesso mulheres de outras aldeias do concelho, a fim de ficarem livres os maridos ou patrões o tempo suficiente para a faina do mar.

A apanha do sargaço[3]

A apanha do sargaço, fertilizante abundantemente utilizado pelas populações costeiras que se dedicam à agricultura, assumiu uma actividade de capital importância na praia da Apúlia. A esta actividade não está alheia a facilidade de colheita das algas marinhas neste local, bem como a abundância das mesmas. As condições da praia e mar da Apúlia estão dentro das que Oliveira / Galhano e Pereira (1990: 14) definem como as ideais para a apanha das algas: que a “costa seja franjada de penedia onde as algas possam agarrar-se e medrar, mas de onde, ao mesmo tempo, o movimento das águas superficiais, nos temporais e marés agitadas e fortes, logre arrancá-las; vemos, com efeito, que é geralmente em seguida a esses factos que aparece mais sargaço nas praias. Para que esta actividade se possa exercer, importa além disso que a costa seja acessível, e que haja amplos areais ou espaço disponível para a recolha e secagem dessas algas – condições estas, que em conjunto, são características da orla marítima ao norte do rio Douro, e que não ocorrem com frequência ao sul desse rio”.

Pode considerar-se de velha tradição a recolha de algas na Apúlia. Nos Portugaliae Monumenta Histórica, Inquisitiones, fascículo IX, encontram-se documentos que falam do sargaço recolhido pelos homens de Fonte Má (actualmente Fonte Boa), no couto de Apúlia, que fornecem normas no que respeita às actividades que se desenrolam à volta do sargaço. Assim, o documento (1245 – 1255) proíbe os habitantes de Fonte Má de passarem pelo couto que era pertença dos arcebispos de Braga. Os vários interditos que se foram aplicando à actividade da apanha do sargaço ou tinham a ver com as definições de área do seu exercício, ou tiveram o âmbito religioso na sua origem, dado respeitarem à observação dos dias sagrados e da moral sexual. No primeiro caso veja-se o que as posturas camarárias definiam no século passado:

“Pela postura camarária de 20 de Agosto de 1862, dispõe-se que «toda a pessoa da freguesia da Apúlia que for encontrada na praia da freguesia da Estela a tirar sargaço a apanhar polvos ou a lançar espinheis pagará a multa de 4. 000 réis além do perdimento dos referidos objectos para a despesa da paróquia». Três anos mais tarde esta proibição especial era revogada, também em relação à Apúlia e Estela, pela postura camarária de 22 de Março de 1865, que dispõe que «é permitido aos povos da freguesia da Apúlia, concelho de Esposende, apanhar sargaço, com armas e utensílios iguais aos que costumam usar os povos da freguesia da Estela, como também vestidos com honestidade e decência, compatíveis com aquele emprego, sob pena de incorrerem na multa de 2.000 réis por pessoa e por cada transgressão»” (Oliveira/Galhano/Pereira. 1990: 28).

As interdições iam ao ponto de delimitar até o espaço que se podia ultrapassar (Lavra, acta de 1682 do Visitador: « nenhuma pessoa passe o fieiro para baixo com instrumento algum de tirar ou preocupar o argaço»).

Já no que respeita às interdições religiosas, que proporcionavam várias penas (chamadas de «penitências do argaço»), é suficiente atender às seguintes palavras, que aplicando-se a outras localidades perto da Apúlia, certamente teriam as mesmas referências nas visitações a esta terra:

« ...o Visitador multava (com 200 e depois 250 reis) quem na manhã de Segunda-feira começasse a tirar o sargaço antes do nascer do sol. Consideraria ele o interdito, de facto, até ao nascer do do, na segunda-feira, como veio a estabelecer-se ali em 1703, ou procuraria ele, a pedido dos fregueses, como diz (Lavra, 1674), anular a causa de discórdias e pelejas entre estes (os que iam a horas normais protestavam contra os que iam muito cedo e se apossavam do sargaço que estava em seco, juntando-o em monte e sentando-se ,m cima dele ( Lavra, 1676?). Aliás, mais do que uma vez parece Ter-se em mente que, nestes dias (e como veremos, ao contrário do princípio que vigorava em certas partes, como por exemplo na Póvoa do Varzim) não era permitida a apanha à noite, falando-se de não se colher o sargaço senão «de sol a sol» (Lavra, 1674), nem «desde Sábado ou véspera de dia santo» ou «desde o sol posto de Domingo ou dia santo até o sol nado do dia seguinte» ou «desde vésperas dos dias santos até de manhã»” (Oliveira/Galhano e Pereira. 1990: 35).

Por volta de 1686 o sargaço que fosse recolhido nas noites antecedentes e consequentes aos dias santos e domingos, e nesses próprios dias, ficava pertença da igreja paroquial, dado não ser permitido o trabalho naqueles dias! Mais tarde, antes de 1703, através de um despacho do Bispo, foi autorizada a apanha do sargaço em dias de preceito. Contudo, o Visitador voltou a proibir a apanha desde o pôr do sol de Sábado até ao nascer do mesmo na Segunda-feira. Quem não cumprisse teria de pagar uma multa de cinco tostões por cada transgressão. Em 2 de Março de 1720, após a visitação de D. Rodrigo de Moura Teles à Apúlia, foi decretado que a recolha das algas podia ser feita nos dias de preceito, desde que tivessem ouvido missa, mas metade teria que continuar a ser entregue à igreja. Verificando que não era dado cumprimento ao que estava decretado, em 1743 foi ordenado ao pároco que elegesse um «olheiro» para que este, a troco de um ordenado, vigiasse a praia e avisasse as autoridades eclesiásticas para que estas pudessem estar presentes na altura da venda do sargaço pertencente à igreja. Muitos foram os «olheiros» admoestados por se terem corrompido por dinheiro e favores!

Outro dos interditos religiosos caíam sobre as vestes e o decoro das mulheres (que não podiam trabalhar à noite) na apanha do sargaço. Mas as mulheres eram necessárias nesta actividade. Os moradores da Apúlia solicitaram em 1768 que lhes fosse permitido contar com a colaboração das mulheres à noite. Na sequência deste pedido, o P. Manuel António Gajo, respondeu ao pedido de informações do ordinário, dizendo que não havia qualquer desonestidade e que as mulheres faziam falta nessa actividade. Nos anos que se seguiram as disposições da igreja foram-se alterando conforme os problemas que se colocavam aos ordinários e à comunidade, até ao início deste século, quando a igreja deixou de exercer influência sobre esta actividade. Uma única norma ainda se manteve por alguns anos: a época de defeso, que em 1958 ia de 1 de Julho a 1 de Março. A partir dos anos sessenta deixou de haver qualquer impedimento para se tirar o sargaço, e os meses mais utilizados para essa actividade são os de Junho, Julho, Agosto e parte de Setembro.

Um dos momentos importantes da faina da apanha do sargaço e do pilado é a secagem dos mesmos. Logo depois da apanha, as algas recolhidos eram levadas para determinados espaços, para serem estendidas a fim de secarem. Assim, enquanto uns entravam no mar, nas barcas, nas jangadas ou a pé com o «galhapão» (que alguns chamam de ganhapão) e a «graveta», e recolhem o sargaço, outros arrastam esses utensílios já carregados para fora do alcance das ondas, onde depositam as algas e voltam a entregá-los para novamente serem cheios. A divisão do trabalho pode ser feita entre homens, grupo de vizinhos, ou par de amigos, que no fim dividem a apanha pelas famílias envolvidas. Caso a apanha seja feita por uma só família, os homens vão ao mar e as mulheres trazem para lugar seguro as algas recolhidas. Isto não quer dizer que não tenham havido mulheres que se aventurassem pelo mar em jangadas para a apanha!

Depois de apanhado o sargaço é levado para secagem. Transportado para os «fieiros» em carrelas ou em tractores (num passado ainda pouco distante, em carros de bois), é estendido em «camas» manualmente, para que haja uma camada fina e regular em toda a extensão da «cama». Em ocasiões de excepção, as dunas ficam plenas de sargaço, chegando a ocupar caminhos e espaços estranhos a esta actividade. Nesta situação permanece cerca de três dias, para ficar bem seco, sendo depois «empadelado» e transportado para as casas ou cabanas, onde é empilhado em «serras», aguardando a ocasião de ser utilizado ou vendido. Não havendo espaço nas cabanas, por vezes fazem-se «pilhas» em plena praia. Aí permanece até ser utilizado.

Dada a manifesta necessidade destes espaços para a secagem do sargaço e do pilado próximos da praia, as populações ocupavam terrenos sobre os quais pagavam taxas, dado não lhes pertencerem. No lugar de Sedovém constituiu-se um baldio nos terrenos pertencentes à Casa de Bragança. O Baldio dos Sargaceiros da Apúlia foi remido por alguns habitantes da Apúlia e de Fonte Boa a esta Casa de Bragança para não só aí estenderem o sargaço e o pilado, mas também para construírem cabanas onde o pudessem conservar, e casas onde morassem quando efectuavam estas actividades sazonais. Com o tempo estas casas, como já vimos, adquiriram estratégias de utilização várias. Desta forma, o espaço circunscrito ao Baldio dos Sargaceiros é um espaço cheio de história, onde se sintetizam as memórias e significados ligados às actividades agro-marítimas desenvolvidos na Apúlia. Se há espaço que possa resumir e dar um sentido a essa actividade, o do Baldio dos Sargaceiros é um deles! É a consciência dessa riqueza e da responsabilidade da comunidade sobre ela, que levou os compartes do Baldio a projectar para este local um Parque Temático, o qual pretende assumir as vivências, as memórias e a identidade do povo que se dedicou a tão extraordinária actividade.

Parque Temático em Sedovém

Os vários elementos que temos vindo a enunciar ao longo desta exposição, permitem-nos, para além da contextualização do projecto, tomar consciência de uma identidade cultural, expressa tanto em comportamentos e práticas muito particulares, como em artefactos e construções relevantes. A maior parte destas práticas e desta cultura material, se bem que presente em outros ecossistemas, encontra aqui em Apúlia uma memória bem actual. Um facto que constatamos é que não existe em Portugal um espaço onde essa cultura e essas práticas estejam acessíveis ao público, e onde se preservem memórias e práticas associadas à apanha do sargaço e do pilado.

É certo que temos um Museu Nacional de Etnologia em Lisboa, que conserva fotos e artefactos que tratam estas actividades. No entanto consideramos que a preservação dos mesmos junto das populações que os utilizaram, interpretando-os partindo da memória que ainda resta deles, é a melhor forma de termos acesso a uma cultura de alto significado para a história da agricultura e do povoamento da costa litoral. Nesta convicção se propõe a criação de um Parque Temático em Sedovém que integre todos os elementos associados a estas práticas e satisfaça os interesses de vários públicos:

-   os naturais da Apúlia, porque assim vêm conservado o património que construíram, as práticas que suportavam a sobrevivência na vida quotidiana, e a identidade em que se revêm;

-   os visitantes/turistas, que assim tomam contacto com uma cultura rica e única, no ecossistema que a originou, possibilitando uma melhor compreensão da mesma;

-   os responsáveis pelo património, dado contarem com a população local na defesa de artefactos e de práticas de valor inestimável para a cultura portuguesa.

Suportando a globalidade do Projecto, o Parque Temático justifica as estruturas necessárias ao seu funcionamento, ao mesmo tempo que condiciona as estratégias de desenvolvimento e de actuação, ao não permitir ocupações e práticas que vão contra o sentido social e cultural do que ali se pretende preservar e valorizar.

Os elementos recolhidos e valorizados neste Parque Temático, serão articulados com a preservação do ambiente, de modo a que o ecossistema seja plenamente entendido como um «lugar» construído e, por sua vez, criador. Desses elementos temos a destacar:

·  A descrição das algas recolhidas, suas características e valor económico; o pilado e demais espécies piscatórias relevantes na economia local;

·  As construções presentes no ecossistema: cabanas, casas de habitação e de guarda dos artefactos de apanha do sargaço e do pilado;

·  A tecnologia da apanha do sargaço, do pilado e da pesca , através dos seus artefactos (descrição, recolha, desenho, fotografia, catalogação e conservação);

·  Indumentárias e Folclore associado à apanha do sargaço;

·  Os processos da apanha do sargaço e do pilado e sua utilização na agricultura (recolha das estórias ligadas às actividades agro-marítimas, recolha de fotografias e pesquisa de documentos histórico/legais que tratam deste tema, levantamento de filmes e documentários da apanha do sargaço);

·  Discursos sociais, económicos e mítico-religiosos associados à apanha do sargaço e do pilado.

O Programa de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) prevê e incentiva a construção, definição e divulgação de percursos turísticos. Com uma Rota Turística do litoral , o POOC pretende salvar o património natural e cultural pelo valor inerente ao mesmo, responsabilizando os visitantes na protecção dos mesmos. Ao criar-se um Parque Temático em Sedovém com o enquadramento que se pretende, os responsáveis pelo Baldio dos Sargaceiros estão não só a dar uma resposta positiva a este incentivo do POOC, como a fornecer possibilidades de o explorar criativamente, de uma forma que valorize e desenvolva a sua comunidade.

É intenção dos responsáveis do Baldio e da Equipa de Investigação criar uma lógica de intervenção em que todos os responsáveis sejam participantes. O espírito de “relação” que preside a esta lógica pretende motivar, responsabilizar e respeitar os direitos e deveres de cada um.

A aplicação do projecto, implicando todos os intervenientes, responsabilizando-os, obriga a definir quais são:

-    A Assembleia de Compartes, o Conselho Directivo e a Comissão de Fiscalização do Baldio dos Sargaceiros;

-    Os actuais residentes e beneficiários do Baldio dos Sargaceiros;

-    O Ministério do Ambiente e os responsáveis pelo Plano de Ordenamento da Orla Costeira (P.O.O.C.);

-    A Área de Paisagem Protegida do Litoral de Esposende (APPLE);

-    A Câmara Municipal de Esposende e os responsáveis pelo Plano Director Municipal (PDM);

-    A Equipa Científica Responsável (CEAA).

-    Demais instituições ligadas ao ambiente e ao turismo que queiram estabelecer protocolos com o Baldio dos Sargaceiros da Apúlia.

Estado da Situação:

O Baldio dos Sargaceiros da Apúlia, situado na faixa litoral norte, estende-se por cerca de 170.000 metros quadrados, nos lugares de Sedovém e Pedrinhas da dita Freguesia, no Concelho de Esposende.

A situação urbana e ambiental deste Baldio reveste-se de uma gravidade que urge por termo, tanto para respeito das regras definidas pelo Plano de Ordenamento da Orla Costeira (P.O.O.C.), como para a salvaguarda dos direitos dos Compartes do mesmo. No momento actual, a maior parte da zona que compreende o Baldio dos Sargaceiros está ocupada por construções de vária índole, cujo ordenamento, estética e materiais de construção criam uma paisagem anárquica, sem qualidade e atentatória ao meio ambiente. Este ordenamento e ocupação, fora do respeito de qualquer regra urbana e ambiental, origina um sem fim de situações que prejudicam o exercício das actividades económicas aí presentes, privam de qualidade de vida as famílias residentes, não potencializa novas estratégias de desenvolvimento e de participação dos compartes do Baldio, assim como originam uma destruição ambiental, nomeadamente da zona dunar, que em nada dignifica este espaço.

Atentos a esta situação, os Compartes deste Baldio, estatutariamente organizados e legalmente instituídos, solicitaram ao Centro de Estudos de Antropologia Aplicada (Universidade Fernando Pessoa) um Projecto Provisório a aplicar no espaço do Baldio, para com ele sensibilizar as autoridades e os compartes a fim de encontrar uma solução global para os problemas referidos.

Este Projecto Provisório tem por base três realidades que o justificam:

a)- A capacidade legal da Associação do Baldio dos Sargaceiros de tomar decisões no que respeita à gerência do espaço e dos equipamentos delimitados pelo Baldio;

b)- A consciência da urgência em encontrar uma solução para o presente desordenamento deste espaço, na convicção de que ele representa para a comunidade uma zona carregada de simbolismo e de história, onde a memória e a identidade da Apúlia se manifesta;

c)- Procurar essa solução num compromisso de equilíbrio e de mútuo respeito com as disposições legais de ordenamento da orla costeira. Esse compromisso propõe-se na firme convicção da importância da salvaguarda do ambiente, respeitando-o e valorizando-o, e na afirmação das legítimas aspirações dos compartes do Baldio quanto à sua utilização.

A situação actual do Baldio reflecte-se, principalmente, sobre as pessoas que aqui residem, e sobre os restaurantes que estão abertos ao público.

Dados sobre as famílias residentes em Sedovém

(Estes dados referem-se a dez agregados familiares, de entre os 15 existentes em Sedovém)

Agregados / N.º de Elementos / Profissões / Idades / Anos de Resid.

A

7

*Reformada

(viúva)

* 2 G.N.R.

*Emp. De Construção civil

*Emp. fabril

* 72

* 45 anos

 

B

6

* Carteiro

* Doméstica

*2 Electrotécnicos

*52

*50

*27

*17

*28 anos

 

C

5

*Reformada

*Reformada

*Reformada

*Emp. Restaurante

*Criança em idade escolar

*87

*N.S.

*37

*40

*10

*20 anos

 

D

17

(família cigana)

*Feirante

*Feirante

*47

*42

Não há mais informações

*7 anos

 

E

4

*Pescadores

*38

*36

*n. s.

*n. s.

*30 anos

 

F

3

*Pescador

*Doméstica

*Estudante

*60

*58

*n. s.

*25 anos

 

G

4

*Desempregado

*Lojista

*Emp. Construção Civil

*55

*52

*25

*30 anos

 

H

3

*Empregado

Construção Civil (emigrante)

*Doméstica

*Desempregada

*48

*46

*17

*24 anos

 

I

2

*Reformado

*Reformada

(Foram emigrantes em França)

?

Segundo testemunho da residente, foram dos primeiros a construir casa aqui.

 

J

2

*Reformado

(acamado)

*Reformada

*n. s.

*n. s.

*30 anos

 

Síntese e Objectivos do Projecto:

Sintetizando o sentido fundamental deste projecto, podemos dizer que ele olha para a situação presente na convicção de que ela só pode ser interpretada através dos sentidos dos usos do passado, da sua relevância nas práticas do presente, e das reinterpretações desses dois momentos no perspectivar do futuro.

O Projecto de Intervenção na Área de Baldio de Sedovém pretende Salvaguardar e Valorizar os elementos ecológicos, ambientais e humanas presentes neste espaço. Através de um trabalho sob orientação antropológica, o projecto irá analisar e procurar uma solução para as áreas mais sensíveis do Baldio, dentro de uma perspectiva multidisciplinar, implicando os agentes sociais que interagem aqui e que, de alguma forma, têm direitos e deveres sobre este espaço.

A interdisciplinaridade, sob orientação antropológica, permitirá levantar dados e vivências culturais praticadas desde tempos imemoriais neste espaço, e que marcaram a identidade e a memória da comunidade humana da Apúlia. O projecto pretende interpretar, comunicar e valorizar neste espaço essas práticas e memórias, de modo a fazer delas um capital para o desenvolvimento da comunidade da Apúlia, requalificando o espaço, dando novas perspectivas aos seus usos e costumes. Por fim, mas não menos importante, pretende formar as pessoas para uma compreensão da própria cultura e da riqueza ambiental que a suporta, de modo a responsabilizá-las na protecção, e a motivá-las numa atitude positiva de valorização ecológica.

É convicção central dos responsáveis deste projecto que o ambiente deve ser entendido juntamente com a comunidade humana que dele usufrui. Colocar em relação a defesa ambiental com a formação e com o desenvolvimento da comunidade residente em Sedovém, é um dos objectivos do projecto.

Valores e Objectivos que estão na base do projecto:

·  Protecção do meio ambiente.

·  Valorização das expressões sociais e culturais da comunidade da Apúlia e de Sedovém.

·  Relacionar e potencializar as práticas culturais com a defesa ecológica, na consciência de que a defesa de uma delas é a melhor consagração da outra. Fazer um levantamento das realidades actuais e históricas da ocupação dos espaços em Sedovém

·  Enquadrar os dados jurídicos e os direitos dos actores sociais e instituições públicas e privadas num processo de diálogo, de forma a chegar a um compromisso que possibilite uma intervenção responsável de todos, numa estratégia relacional de desenvolvimento.

·  Intervir ao nível da recuperação ambiental em todos os espaços do projecto, com as soluções adequadas a cada um deles.

·  Reconversão urbana restrita a edifícios de carácter público, no espaço de área protegida, com materiais adequados, de modo a que essa presença urbana sirva para o conhecimento e partilha da riqueza ambiental. Em escala apropriada, essa reconversão urbana permitirá uma indústria de lazer e de turismo cultural – turismo da natureza -, bem como servirá para formação ambiental.

·  Fazer do espaço do Baldio dos Sargaceiros um encontro com a identidade desta comunidade da Apúlia, não no sentido de uma mera memória saudosista, mas no sentido do que melhor tem a tradição e a memória de um povo: espaço de encontro consigo mesmo, com os outros que se relacionam com ela, com um futuro que se quer reinventado e partilhado por todos.

Âmbitos de intervenção:

1.Reconversão ambiental e Formação

2.Ocupação do Espaço e Cultura Material

3.Desenvolvimento das Actividades Económicas

4.Desenvolvimento do Turismo Ecológico

5.Estudo etnográfico/museológico

Formação ambiental:

Decorrente da especificidade da área abordada, com o rico património ambiental, e depois da intervenção na recuperação do mesmo, o projecto prevê acções de formação ambiental. Estas acções, que contarão com a colaboração de entidades relacionadas com o ambiente, terão três alvos principais:

a)   População que utiliza o Baldio. Só informando aqueles que ocupam de uma forma mais frequente este espaço podemos ter sucesso quanto à manutenção da qualidade ambiental e à sua valorização.

b)   População estudantil. Fazer do espaço do Baldio dos Sargaceiros um local pedagógico é condição para o sucesso futuro do mesmo. Cursos e visitas guiadas para pedagogia ambiental em muito contribuirão para a defesa do ambiente.

c)   Visitantes/turistas. Para estes públicos, é a manutenção contínua da qualidade ambiental que os levará a valorizar e defender o ambiente em Sedovém. A criação de uma área museológica com esta temática em muito contribuirá para os consciencializar da importância do ecossistema que visitam!

Desenvolvimento do Turismo Ecológico

Um dos maiores desafios do projecto é a reconversão do espaço do Baldio dos Sargaceiros da Apúlia em espaço de turismo cultural e ecológico. O turismo já não é unicamente mar e sol. As novas lógicas do turismo não se compadecem com erros de planeamento nem com a suposta infantilidade dos visitantes. Estes são cada vez mais exigentes e cada vez mais bem preparados culturalmente. Uma comunidade que se queira interveniente no campo turístico não pode deixar de apelar para a imaginação e para novos produtos que a identifique em relação aos seus directos concorrentes. Nos últimos tempos foram várias as mudanças neste campo.

As grandes mudanças nos modelos do turismo, culminam naquilo que autores como Donaire (1999) classificam de lógica da sustentabilidade.

A Cimeira do Rio (1992) colocou os princípios de um desenvolvimento sustentável: a) o desenvolvimento sustentável permite responder às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras responder, por sua vez, às suas; b) o desenvolvimento sustentável é um processo de mudança que tem em conta, de forma harmónica, a exploração dos recursos, a orientação dos benefícios, a aplicação das técnicas, a evolução das instituições e empresas, com o fim de reforçar o potencial socio-económico, apto para responder às necessidades e aspirações da humanidade; c) não existe nenhum modelo ideal de desenvolvimento sustentável, já que os sistemas políticos e económicos, assim como as realidades ecológicas, variam de lugar para lugar.

Tendo em conta estes princípios, o turismo sustentável é um turismo aberto e flexível, tendo em conta a realidade económica, social e cultural de um determinado lugar. Donaire (1999) propõe sete princípios básicos que identificam este modelo de desenvolvimento turístico:

1.    Turismo planificado. a planificação terá em conta um estudo detalhado das condições do presente e das perspectivas do futuro, a partir de determinadas variáveis: económicas, ambientais, sociais e culturais;

2.    Turismo integrado. A oferta turística deve ser o resultado natural dos recursos locais: as formas arquitectónicas, os acontecimentos festivos, a gastronomia, a relação com o território. Não pode haver turismo alheio à identidade (mesmo tendo em conta o quanto difícil é definir este termo) do lugar onde ele se pratica.

3.    Turismo aberto. O turismo sustentável está aberto ao seu território. A dimensão local do turismo assenta nas especificidades locais, na abertura às localidades vizinhas, propondo assim uma oferta baseada na diversidade;

4.    Turismo dimensionado. Não pode haver um turismo sustentável sem estar dimensionado ao tempo em que se realiza e ao espaço onde se pratica. O fim do conceito de «estação» turística é importante para reduzir os impactos sobre o território, a despersonalização da experiência turística. A viabilidade de um projecto turístico depende de um dimensionamento onde a capacidade do território e a qualidade da experiência sejam acauteladas.

5.    Turismo participativo. Deverão ser incluídos novos sistemas de gestão, através da participação de todos os agentes que intervêm no processo turístico. É importante referir que esses agentes não são meramente os profissionais do turismo, mas também as comunidades locais, as associações comunitárias e os outros agentes económicos e políticos.

6.    Turismo duradouro. O turismo sustentável não se baseia num crescimento a curto prazo, tendo em conta a procura. Ele deverá Ter em conta o modelo que propõe e definir a partir dele as estratégias a longo prazo. Assim, o turismo sustentável deverá integrar o crescimento económico com a preservação do meio ambiente e da identidade local, as quais são os principais activos do desenvolvimento turístico.

Pensar em estratégias baseadas na sustentabilidade implica um questionamento que não tenha somente em conta o equilíbrio do crescimento turístico, ou a protecção das áreas naturais protegidas. Um turismo sustentado é um modelo que apela a uma lógica de autenticidade, porque integrador de sentidos múltiplos e de agentes vários. Para isso, é necessário alargar a noção de experiência turística para além do olhar do visitante e da estratégia do vendedor.

O turista é atraído pelo exótico, pelo diferente, pelo «outro» que se lhe oferece como um estranho a descobrir. Contudo, este posicionamento requer cuidados redobrados quando nos referimos a mercados turísticos. Não podemos ultrapassar a questão de que se trata de um «encontro» de culturas e saberes, onde um deles tende a ser impositivo ao outro, dado o poder que dispõe ser de uma ordem económica e política afirmadas como superiores. Desta forma, o espaço turístico desenvolve-se segundo estratégias exógenas e respondendo a sentidos que lhe são estranhos.

A sociedade contemporânea aborda, a nível teórico, a diferença cultural de uma forma muito diferente daquilo que se fazia no passado. A relatividade cultural é um dado adquirido. Contudo, a aproximação experiencial a esse facto esquece a dimensão construtiva e viva da cultura de uma comunidade, ou seja, os significados de uma cultura não podem ser fossilizados. As culturas são complexas e continuamente reinterpretadas pelos actores sociais, obrigando a uma atenção contínua e interessada, a qual não se coaduna com imagens e identidades materializadas numa apropriação narcisista.

A autenticidade, na medida em que ela é possível ainda, exige um processo de «relação», onde os espaços e os agentes possam explicar o significado dos discursos que partilham. Contextualizar o turismo não significa unicamente salientar a dimensão local e estabelecer as relações com os espaços envolventes, no sentido de turismo aberto. Contextualizar significa aqui partilhar os «textos» (estratégias e discursos) de realidades diferentes num espaço comum, de modo a que os agentes desta relação de partilha possam entender os vários sentidos presentes. Só dentro desta lógica da relação de partilha se pode compreender hoje o turismo cultural, nas variadas dimensões de que ele se reveste. A haver uma ética na indústria turística actual, ela deverá passar por uma política que privilegie a relação:

1.    Dos visitantes com as comunidades locais. A indústria turística não pode privilegiar unicamente os turistas, esquecendo que os produtos culturais têm origem em actores sociais, com uma dignidade intrínseca, e uma palavra a dizer do património e dos espaços que partilham com aqueles que os visitam. A qualidade de vida das populações e o enriquecimento mútuo entre população e visitantes deve ser uma preocupação dos modelos turísticos.

2.    Dos actores sociais com o meio ecológico. Não se pode continuar a desenvolver um turismo ecológico meramente com a gestão de visitantes e com a defesa do ambiente. Os actores devem assumir uma experiência de relação com o meio que visitam, em que o próprio processo turístico seja planeado como forma de o preservar e valorizar.

Dentro de uma perspectiva multidisciplinar, cremos ser do interesse de todos a inserção urgente da prática antropológica nos mais variados campos da indústria turística. Quando os sentidos das relações sociais e culturais são a base da superação da banalidade e do artificial, a crítica antropológica assume um papel inovador, e, na maior parte das vezes até, ela proporciona a vivência de mundos desconhecidos e experiências extraordinárias.

A nível internacional assistimos ao recente alerta da Organização Mundial de Turismo que, na sua assembleia de 27 de Setembro a 1 de Outubro de 1999, aprovou um Código de Ética onde se afirma que é necessário salvaguardar o meio ambiente para se obter um crescimento económico saudável, constante e sustentável. Esse documento reconhece as novas formas de turismo ligadas à natureza e preconiza o seu desenvolvimento desde que se respeitem os ambientes naturais, associem a população local ao seu desenvolvimento e se ajustem à capacidade de ocupação dos lugares turísticos. Relativamente ao património cultural aconselha a que as verbas provenientes das visitas aos locais e monumentos de interesse cultural deverão destinar-se preferencialmente à manutenção, melhoria e valorização do património.

Em Sedovém, este tipo de turismo sustentado pode ser uma aposta rentável no futuro se integrar os elementos que compõem este projecto: qualidade ambiental, potencializar a paisagem e a história local, qualificar a gastronomia, criar acções públicas de divulgação da cultura, como festivais gastronómicos e actividades lúdico/pedagógicas.

Estudo etnográfico/museológico

Numa componente mais próxima da investigação tradicional antropológica e etnológica, o levantamento das tradições locais, das vivências e discursos sociais, e dos artefactos, será um complemento essencial para a lógica global do projecto.

Desta forma o projecto tem como fim:

-    Criar espaços museológicos para usufruir da cultura material das actividades agro-marítimas da Apúlia.

-    Proceder à recolha de conteúdos orais, memórias e artefactos da comunidade.

-    Criar um acervo importante de informação sobre a apanha do sargaço, do pilado e da pesca, o seu imaginário colectivo – costumes e tradições;

-    Salientar as relações parentais e os comportamentos de género, principalmente o papel da mulher nas actividades agro-marítimas e a importância do género no desenvolvimento.

Recolher as crenças e os discursos culturais a elas associados.

Conclusão

O presente "Projecto de Intervenção no Baldio dos Sargaceiros da Apúlia" pretende, enquanto projecto preliminar, colocar duas ordens de questões:

a) A partir da história local e das actividades sociais e culturais desenvolvidas, desde tempos "imemoriais", pelos habitantes desta costa litoral, o projecto pretende chamar a atenção dos responsáveis políticos, técnicos do ordenamento do território, promotores do desenvolvimento e autoridades que defendem o património cultural, para uma situação que se pretende alterar. Essa alteração baseia-se num compromisso de qualidade ambiental com a valorização de uma cultura excepcional que se quer orientada para o desenvolvimento da comunidade de Apúlia. É convicção da equipa responsável pelo projecto que a protecção ambiental faz-se, não por atitudes fundamentalistas de defesa do "natural", mas pela compreensão de que o ambiente está interligado com o comportamento cultural das comunidades que dele usufruem, e que são elas as melhores defendoras do mesmo quando responsabilizadas na sua preservação.

b) A segunda questão prende-se com a apresentação de propostas que visam criar estruturas e estratégias de utilização do Baldio dos Sargaceiros da Apúlia. Estas propostas têm como base a realidade existente no Baldio e os interesses dos diferentes intervenientes no processo. Neste âmbito do projecto, muito há a elaborar e a investigar, sendo o conteúde presentemente fornecido uma base de orientação e de diálogo para a equipa de trabalho os habitantes de Sedovém, responsáveis locais e nacionais. Dar à intervenção uma lógica participativa, onde os diferentes intervenientes se responsabilizem pelas soluções encontradas, porque colaboradores da construção das mesmas, é a base onde assenta todo o trabalho realizado e a realizar, como justifica a estratégia antropológica que o fundamenta.

A partir deste momento abre-se a discussão e o diálogo a outros responsáveis. Estamos a valorizar e a desenvolver um método do qual estamos firmemente convictos: apresentando propostas, revendo soluções, criando um objectivo que satisfaça as convicções, os desejos e as aspirações dos que participam na construção de um ambiente de qualidade, numa sociedade justa, e na valorização do património social e cultural, encontraremos o caminho para o fim que se pretende.

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[1] Taraqueiros: «população sem terra ou, caso mais geral, possuindo uma gleba de área muito pequena – menos de 0,1 hectare -, cujo rendimento é insignificante. Recorrem ao salário em múltiplos trabalhos: na exploração agrícola, na apanha do argaço ou pilado, ou, como recurso e quando possuem fracas condições de trabalho, apenas à apanha de lenha seca, pinhas e gravulha dos pinheiros» (in Aguçadoura – Estudo Económico-agrícola, Junta de Colonização Interna, Lisboa, 1944, p. 97).

[2] Veja-se a Provisão de D. João V, de 1742, que pretende por termo à contenda entre os governadores do Castelo da Póvoa de Varzim e os lavradores ou moradores da Vila (a favor destes últimos), onde se fala de lavradores – que apanhavam sargaço para «únicos adubos das suas fazendas, sem os quais não dão pão», e em outras gentes que exerciam essa actividade «por ofício para vender e comprar pão».

[3] As algas marítimas assumem vários nomes, como sargaço, limos (mais no sul), sendo o de argaço o mais antigo. Claudio Basto, “Falas e Tradições do Distrito de Viana do Castelo”, Revista Lusitana, XIII, Lisboa 1910, pp. 84 – 88, entende que argaço não é uma corrupção de sargaço, mas uma palavra derivada de alga – algaço. Sargaço seria, segundo o autor, uma espécie definida de alga.


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