49 Congreso Internacional del Americanistas (ICA) |
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Quito Ecuador7-11 julio 1997 |
Cláudia Chalita
FRAGMENTOS DE UMA CONFISSÃO PÓSTUMA
Cláudia Chalita
Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC-Minas
RESUMO
O presente trabalho faz a análise da obra literária Memórias póstumas de Brás Cubas , de Machado de Assis, enfocando o ato de leitura como um processo lento, gradual, mutável, produtor de sentidos infinitos.
O que constitui uma obra literária, além do autor, é o desejo do leitor que a lê, reconstruindo-a com a sua leitura. Ao ler um livro, o leitor produz um novo livro, tecido de novas marcas, mas com rasuras, lacunas, deformações e impregnado de passado.
FRAGMENTOS DE UMA CONFISSÃO PÓSTUMA
Cláudia Chalita* (PUC-MINAS)
Ao Verme
Que
Primeiro Roeu as Frias Carnes
Do Meu Cadáver
Dedico
Como Saudosa Lembrança
Estas
MEMÓRIAS PÓSTUMAS
Machado de Assis
Nos primeiros contatos com a obra literária
Memórias póstumas de Brás Cubas
Essa obra será referida nas citações pelas iniciais MPBC e pelo número das páginas correspondentes. , de Machado de Assis, o leitor, talvez, não consiga avançar depressa nas suas páginas. Como o cadáver que se decompõe pela ação do verme, a leitura dessa obra dá-se de forma lenta e gradual. As frias carnes de Brás Cubas tornam-se o lugar onde a memória se inscreve e os fantasmas emergem. Por anos, como verme que roe pouco a pouco e de modo contínuo, o leitor está atrelado à leitura instigante e incômoda desse romance.
Com repulsa, o leitor lê um livro que cheira a sepulcro. Como o longo verme gordo que aparece em Dom Casmurro, o leitor pode justificar esse trabalho contínuo dizendo: eu não sei nada sobre os textos que rôo, não escolho o que rôo, nem amo ou detesto o que rôo: eu rôo (Machado, 1994, p.35). Arrebatado a ruminar um livro cujas páginas encontram-se roídas, putrefadas, o leitor repete a insistência de ler uma narrativa que se constrói de fragmentos, e os exibe. Uma narrativa que se faz e se desfaz em suas próprias secreções, e nunca se estanca de forma definitiva.
Trata-se de um livro de memórias; essas são apresentadas ficcionalmente como póstumas, ou seja, o leitor tem acesso a uma determinada produção literária no momento em que o seu suposto autor, Brás Cubas, já faleceu. São memórias de uma vida - da vida de Brás Cubas - cuja decifração e melhor compreensão propõem uma leitura lenta e por fragmentos, uma memória. O próprio título da obra indica - Memórias póstumas de Brás Cubas -, e a sua dedicatória convoca desde o início a memória da leitura.
O motivo que instiga o leitor e o incomoda ao ler e reler uma narrativa fragmentada - pós-túmulo - é o mesmo da primeira leitura: as palavras, como o cadáver, estão corroídas, são restos dos restos: o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica(MPBC, p.119).
Aliás, como previne o narrador - um autor-defunto -, esse detalhe é insignificante, pois o grande problema do livro é o leitor:
o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem (MPBC, p.119).
Nesse livro, ao modo dos ébrios que guinam à direita e à esquerda, o autor produz uma narração cujo ritmo irregular se faz de acordo com interrupções, tropeços; conforme esses, o leitor aproxima-se ou afasta-se do livro. Ao estilo barthesiano, o leitor corre, salta, ergue a cabeça, torna a mergulhar em uma narrativa que está sempre ecoando e silenciando (Barthes, 1973, p.46). A oscilação incessante de vai e vem produz uma narrativa mutável, múltipla de sentidos, e lembra ao leitor que nunca se lê um livro todo, palavra por palavra. Lê-se por corridas e recuos; o ritmo se fazendo de acordo com as pausas da narrativa.
Ao leitor cabe transitar na narrativa, mudando de olhar e de posição sempre, pois uma leitura não é estática e se faz de diversos lugares. Ler um texto requer a procura de uma posição fora ou dentro dele, conforme as relações que com ele se estabelecem. O ato do olho que rasga o texto, impondo-lhe novas marcas, isso é a leitura criativa, também produção de desejo, pois cada leitor lê com os seus fantasmas, os seus medos, as suas paixões, a sua experiência literária. Ao leitor cabe parte dessa criação que é o livro e a sua leitura o enriquece sempre de novos sentidos. Como lembra Borges:
Que são as palavras impressas em um livro? Que significam esses símbolos mortos? Nada, absolutamente. Que é um livro senão o abrirmos? É, simplesmente, um cubo de papel e couro, com folhas. Mas, se o lermos, acontece uma coisa rara: creio que ele muda a cada instante. Heráclito disse - e já repeti isto em demasia - que ninguém desce duas vezes o mesmo rio. Ninguém desce duas vezes o mesmo rio porque as águas mudam. Mas o terrível é que nós não somos menos fluidos que o rio. Cada vez que lemos um livro, o livro mudou, a conotação das palavras é outra. Ademais, os livros estão impregnados de passado (Borges, 1985, p.11).
O que constitui uma obra literária, além do autor, é o desejo do leitor que a lê, reconstruindo-a com a sua leitura. Ao ler um livro, o leitor produz um novo livro, tecido de novas marcas, mas com rasuras, lacunas, deformações. Um livro fala sempre de outro livro e toda história conta uma história já conhecida.
Ao que parece, o leitor de Memórias póstumas de Brás Cubas aguarda uma narrativa precisa, sóbria; almeja clareza e economia direta da frase; mas a narração das memórias de Brás Cubas é sempre entremeada de extensos parênteses especulativos:
Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem. Pois lá iremos (MPBC, p.29).
Mas não alonguemos este capítulo. Às vezes, esqueço-me a escrever, e a pena vai comendo o papel, com grave prejuízo meu, que sou autor. Capítulos compridos quadram melhor a leitores pesadões; e nós não somos um público in-folio, mas in-2, pouco texto, larga margem, tipo elegante, corte dourado e vinhetas...principalmente vinhetas...Não, não alonguemos o capítulo (MPBC, p.64).
O autor interrompe, insistentemente, o fluxo das lembranças póstumas; constrói pausas, nas quais faz reflexões, assim, dialogando com um leitor impaciente, ávido por fluência. As reflexões feitas levam o leitor a tecer conjecturas que, por mais plausíveis que sejam, são sempre hipóteses, incertezas. Pouco a pouco, o leitor é desestabilizado do seu lugar tradicional, de suas certezas.
O convívio permanente com o livro concede ao leitor o hábito de exercitar um olhar míope sobre o texto. A ilusão interna e externa da representação tanto quanto a crença do controle de um autor sobre a sua obra é destruida. As memórias só podem ser lidas de modo fragmentário, relampejante, já que as categorias, as palavras, as ordens estão deslocadas, teatralizadas, e os papéis redistribuidos. Assim, apesar do senão do livro, é preciso continuar a leitura, pode dizer o leitor. Apesar do senão do livro, é preciso continuar a narrativa, afirma o defunto autor que hesita, por algum tempo, em optar pela morte, como ponto de partida de suas memórias:
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo (MPBC, p.25).
As palavras dirigidas ao leitor, põem-no em alerta, pois avisam-no de que não se trata de memórias usuais. Trata-se mais da tessitura de uma narração vista da perspectiva da morte. A voz narrativa pretende afirmar, no decorrer do romance, que o personagem Brás Cubas só é capaz de escrever porque está morto. Aproveita-se da experiência de estar morto, e principalmente, das virtudes decorrentes da morte, para narrar a história de sua vida através de um livro de memórias escrito além túmulo. Considera que em vida é um indivíduo por demais trivial para que se interesse por tal coisa. Percebe-se, gradualmente, que a sua morte é condição fundamental que lhe permite comentar a própria vida:
(...) na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lantejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos; não há platéia (MPBC, p.66).
O defunto autor declara o fim da platéia, da máscara social imposta pela defesa contra a opinião pública que está sempre pronta a espreitar qualquer deslize. Com a morte, Brás Cubas não está mais à merce do julgamento alheio, pois coloca-se na situação sonhada de ver sem ser visto. Ser um defunto autor é uma situação privilegiada para espreitar de fora a vida. Posto à beira dessa, ele se compraz em vê-la de uma perspectiva pós-túmulo.
Ao esclarecer, desde o início, que o narrador é um defunto autor e não autor defunto relatando suas memórias, e mais, descrevendo seu próprio delírio e morte, o autor rompe declaradamente com a ilusão da representação da realidade. Colocando Brás Cubas do outro lado do mistério, o autor o faz renascer tendo a campa como outro berço, para estilhaçar com o tempo cronológico, o espaço físico e a imagem tradicional de autor. Fazendo a sua enunciação de outra perspectiva, pós-túmulo, o autor chama a atenção do leitor para a concepção da obra literária enquanto produto de arte, criadora de sentidos provisórios.
Há uma disjunção da voz do narrador, o defunto autor, em duas. Uma é a do sujeito do enunciado, que busca captar o olhar do leitor, na expectativa de atuar como autoridade relativamente àquilo que diz. Outra a daquele que observa a si mesmo e à sua obra como espectador, chegando a rir de sua própria vulnerabilidade e a exibir para o leitor os artifícios com que finge atuar desinteressadamente.
Se ao personagem Brás Cubas cabe o enunciado, onde estabelece jogos de engano com vistas à elaboração de uma estranha e duvidosa confissão, já que se trata de um defunto autor narrando suas memórias além-túmulo; a enunciação, de onde a revelação do trabalho do narrador, fica a cargo de uma outra voz. A identificação desta voz torna-se possível a partir do momento em que o leitor consegue desvencilhar-se da retórica da voz da narrativa, e atenta para determinados sinais presentes no texto. Se há um trabalho ilusionista no enunciado, há da mesma forma um trabalho anti-ilusionista na enunciação.
A não existência de um sentido que se quer único e de uma pretensa verdade, e o fato do autor colocar a si próprio em crise torna pertinente se pensar sobre a morte do autor. O autor está morto! Com essa afirmação há uma gradativa perda da crença em um sujeito soberano; o império do autor parece desmoronar. Há ainda o autor, mas ele está perdido no meio do texto e, não atrás dele ao modo de um deus de maquinaria (Barthes, 1973, p.66). A recusado autor parece ser necessária para que possam vir à tona outras possibilidades de abordagem do texto, para que uma maior liberdade de leitura possa ser exercida. Parece necessário que o texto possa respirar outros sentidos para além daqueles cobrados em nome da intenção tutelar do autor.
Barthes, num mesmo artigo, proclama a morte do autor e já prevê que essa morte é tributária à possibilidade de nascimento do leitor: a escrita começa quando o autor entra em sua própria morte...O nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do autor (Barthes, 1973, p.49,53). Constata-se um deslocamento do autor para o leitor: a unidade do texto não está em sua origem, mas no seu destino. É preciso, no entanto, ressaltar que o risco dessa posição, se levada a extremos, é o de se atribuir um papel fundador ao sujeito, agora um sujeito leitor, que livremente doa sentidos ao texto.
Ao que parece, Machado de Assis, em Memórias póstumas de Brás Cubas , concebe a obra literária como uma realidade dinâmica, versátil, em que autor, leitor e texto dialogam entre si. Essa concepção é possível desde que se abdique da reinvindicação de autonomia de qualquer uma das instâncias literárias. Não há autonomia do autor que explicaria o seu texto através da sua intenção; não há autonomia do texto que possuiria em si a sua verdade, o seu sentido imanente; não há autonomia do leitor que arbitrariamente doaria sentidos ao texto. Para Machado parece ser mais interessante pensar num movimento de produção de sentidos através de uma dinâmica de interrelações entre essas instâncias. O sentido não está em um lugar, mas em trânsito.
O autor reconhece-se como um exilado joguete de um mundo incomensurável, sobre o qual ele tem poucas possibilidades de ação. Apesar disso, finge tê-la, pois alimenta, conscientemente, a ilusão de usar como seu, o material com o qual a linguagem constrói-se. Lembra ao leitor, a todo momento, que tudo aquilo é material com que se constrói a obra de arte, cuja linguagem é maleável, criadora de um sentido provisório e impossível de fixar. Pode, portanto, representar ilusoriamente uma presença, numa representação que designa o irrepresentável: a própria realidade.
Assim, lida com a tragédia do homem que não consegue realizar ou permanecer na realização de seu desejo. Ao invés de desesperar-se e sucumbir diante da adversidade, distancia-se e manipula os seus desejos e as suas frustrações como material para a construção de uma obra literária, de uma autobiografia pós-túmulo.
A narrativa de Memórias póstumas de Brás Cubas, se a príncipio pode parecer insólita, pois nasce das lembranças ficcionais de um defunto autor, mostra que a obra literária é um projeto ficcional compromissado não exatamente com a realidade exterior, mas primordialmente com a realidade da criação literária. O romance é constituído quase tão somente de nós, de fragmentos que se articulam para a composição do espaço da linguagem, mas não oferecem a fluência tradicionalmente esperada pelo imediato mimetismo da vida. A voz que se faz ouvir não é apenas a de um defunto autor que percebe o que existe de representação na vida e desvela a ilusão das certezas. É, também, a voz da linguagem consciente de si mesma.
Memórias póstumas de Brás Cubas pode ser considerada como uma obra híbrida, paradoxal, inclassificável como o sujeito que a produz: sujeito de aparecimento e desaparecimento; sujeito em crise, duplo e faltoso. O seu valor provém da encenação de duas margens: a do prazer e a do gozo. Texto de prazer: aquele que contenta, preenche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável de leitura. Texto de gozo: aquele que se coloca em estado de perda, que desconforta. Causando até um certo enfado, faz vacilar os alicerces hitóricos, culturais e psicológicos do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores, de suas lembranças, pondo em crise a sua relação com a linguagem e provocando inesperadas vertigens.
Através da teoria barthesiana, Memórias póstumas de Brás Cubas pode ser considerada como um objeto, um texto onde esta distinção se superpõe de forma não coincidente e oscilante. Existe, de um lado, um texto que é possível escrever. Só o texto de prazer pode ser explicado, desvendado em sua verdade; mas pode, também, transformar-se em re-apresentação, em produção de sentidos infinitos, em teatralização.
Embora essa obra produza um questionamento sobre realidade e ficção, não traz resposta, não aponta uma pretendida verdade, não produz um sentido que se quer definitivo. Representa o simulacro, constituindo-se como uma insinuação, uma subversão contra o pai-escritura. Como acontece em qualquer narrativa, qualquer pretensão de revelação da verdade consiste em uma encenação do pai ausente, oculto. Implicando uma produção de sentidos que não se pode dominar, essa obra inclui em si própria a divergência, a diferença.
Assim, a arte de Machado de Assis consiste em obrigar o leitor a ler e reler um livro enfadonho, que cheira a sepulcro e traz certa contração cadavérica. A composição de Memórias póstumas de Brás Cubas apresenta uma estrutura constituída de vazios a serem preenchidos, ou não, pelo leitor. Trata-se de uma obra feita, mas não acabada. Revela sobretudo uma crítica que constrói um romance, não perdendo de vista que a linguagem literária, antes de representar o mundo, representa a si mesma.
Referências Bibliográfica:
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_______. Memórias póstumas de Brás Cubas . São Paulo: Editora Egéria,
1979.
BARTHES, Roland. Critica e verdade . São Paulo: Editora perspectiva,
1970. p.31-47.
_______. O prazer do texto . Trad. J. Guinsburg. Lisboa: Edições 70, 1973.
BORGES, Jorge Luís. Cinco visões pessoais . Trad. Maria Rosinha Ramos da Silva. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 1985.
BRANCO, Lúcia Castello e ruth Silviano Brandão. Literaterras . São Paulo:
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BRAYNER, Sônia. As metaformoses machadianas. In: Labirinto do espaço romanesco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. p.72-118.
CARDOSO, Wilton. Tempo e memória em Machado de Assis . Belo
Horizonte: Estabelecimentos Gráficos Santa Maria, 1958.
DUARTE, Lélia Parreira. Ironia, humor e fingimento. In: Ironia e humor na literatura. Cadernos do NAPq n.15, p.54-78. B.H., FALE/UFMG, 1994.
GLEDSON, Jonh. Machado de Assis: impostura e realismo . São Paulo:
Companhia das Letras, 1991.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica, escritura . São Paulo: Editora
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