49 Congreso Internacional del Americanistas (ICA)

Quito Ecuador

7-11 julio 1997

 

Fábio Henrique Lópes

49º CONGRESO INTERNACIONAL DE AMERICANISTAS

Sesion General - Sección Medicina y Salud

TÍTULO:

REPRESENTAÇÕES E SABERES SOBRE O SUICÍDIO ATRAVÉS DA IMPRENSA CAMPINEIRA

.

AUTOR: FÁBIO HENRIQUE LOPES

Mestrando em História na Universidade Estadual de Campinas - Brasil

RESUMO:

Nosso trabalho consiste no estudo do suicídio através da imprensa campineira, nas últimas décadas do século XIX ( 1870-1900).

Partimos dos casos noticiados pelo jornal Diário de Campinas para analisarmos como a sociedade agia e reagia frente este fenômeno que faz-se presente em diversas instâncias e instituições sociais.

TEXTO:

Este estudo sobre o suicídio através da imprensa campineira faz parte de um trabalho maior, onde tentamos perceber como o suicídio era problematizado no final do século XIX e como os discursos sobre este fenômeno se entrecruzavam, se apoiavam ou se excluíam, possibilitando assim, o vislumbramento de uma teia discursiva produzida a partir de um acontecimento histórico.

Buscamos nosso objeto no meio urbano, neste viver na cidade, cidade como palco e personagem, produto e produtor, origem e resultado(1), privilegiando um determinado espaço social: Campinas, e em um determinado tempo: final do século XIX.

Para estudar o suicídio na imprensa campineira partimos dos casos noticiados pelo jornal Diário de Campinas nas três últimas décadas do século XIX. Usualmente a notícia no jornal era utilizada para tornar público , e aqui encontra-se um dos problemas, os suicídios ocorridos em Campinas e em outras regiões do país. Até mesmo aqueles ocorridos em outros países eram divulgados pelos jornais.

A vida urbana de Campinas no início da década de setenta já revelava certa expressão, possuía diversas lojas de fazendas e ferragens, armazéns de secos e molhados, fábricas de cerveja, velas, chapéus, licores, estabelecimentos de artes e ofícios. Funcionavam sete escolas primárias e três secundárias, teatro e associações científicas. Somando a população ( em 1874 ) um total de 31.391 pessoas, sendo 13.685 escravos.(2)

Podemos avaliar o desenvolvimento cultural e o envolvimento político da cidade pela história da imprensa campineira. Embora contasse com mais de um jornal, a história da imprensa local é um pouco tumultuada, marcada principalmente por um abre-fecha de jornais. Algumas vezes trocava-se apenas o nome do periódico, outras vezes o jornal não conseguia-se manter por mais de seis meses. Normalmente a circulação era semanal ou bissemanal, surgindo apenas em 1875 um jornal cotidiano, com circulação diária: Diário de Campinas .

Apesar deste abre-fecha de jornais a cidade sempre teve seu movimento social e cultural registrado e estimulado por um número considerável de publicações de natureza diversa, que iam do simples noticiário às matérias especializadas nas ciências, letras e artes, da propaganda política à sátira e ao humor. Conseguindo abrigar uma fração das mais significativas da inteligência da cidade(3).

Cada jornal tinha seu estilo próprio, sua preocupação, seus objetivos. Uns ligados a grupos monarquistas, outros a republicanos, uns voltados a comunidade católica - como é o caso do jornal A verdade, órgão religioso e literário dedicado às famílias(4) ; mas conforme a imprensa local multiplicava-se, participava ativamente do movimento cultural. Os jornalistas, cientistas, professores, poetas, escritores encontraram na imprensa, em muitos casos, o único meio de comunicar-se entre si e com os leitores. As redações desses jornais assumiram desde logo a função de espaço cultural, onde o debate, a polêmica, as idéias, os projetos eram gerados e fermentados, para serem a seguir transmitidos aos leitores, contribuindo para formar a opinião pública, definir posições e identidades.(5)

É nesta conjuntura histórica que surge o jornal Diário de Campinas . Desde sua fundação, ou seja, 19 de setembro de 1875, o jornal apresentou-se com uma nítida preocupação com os problemas sociais ligados ao cotidiano da cidade e da região. Destacava a produção cultural, apresentações, espetáculos teatrais e musicais, divulgava constantemente os feitos e avanços da medicina, principalmente dos médicos da região ou que por esta passavam, proporcionava espaço para despedidas e avisos, bem como cedia à propaganda, obviamente não uma propaganda organizada e estruturado como a atual, um espaço considerável, levando-se em conta os parâmetros da época, - normalmente 01 página do tal de 04, para lojas, bazares, fazendas, indústrias, comércio entre outros.

Referente aos feitos e avanços da medicina o jornal ( Diário de Campinas ) destacava constantemente a formação dos médicos ( que normalmente estudavam ou aperfeiçoavam-se no exterior ), suas especialidades, endereço para consultas e principalmente seus métodos e suas práticas. A maioria das notas apresentava-se como um aviso-propaganda, um espaço onde o médico podia divulgar suas especialidades e suas bem-aventuradas curas:

Dr. Gustavo Greiner

Cura a morféia, epilepsia, sífilis, hidropisias, tisica, molestias do estômago, da bexiga, do fígado e da vista etc.

Rua da Constituição, n. 54

Campinas(6)

MOLÉSTIAS DE OLHOS

DR. JOSÉ CHARDINAL

Ex-chefe de clinica dos professores Wecker Abadie & Landolt ( de Paris ).

Consultas todos os dias.

Todas as operações dos olhos como extrações da catarata, iridectomia, estrabismo ( olhos vesgos ), etc., são feitas absolutamente sem dor e sem clorofôrmio

Hotel Campineiro(7)

Percebemos que notas como esta do Dr. Chardinal começavam a ser divulgadas alguns dias antes da chegado do médico preparando assim a cidade e os doentes que seriam curados. Inclusive os feitos de médicos em outras regiões eram divulgados em Campinas, principalmente daqueles que virão à cidade. Nestas notas valorizava-se a capacidade técnica e instrumental do facultativo e os casos mais difíceis e que exigiam uma destreza maior recebiam um tratamento todo especial:

O Dr. Neves da Rocha em menos de cinco minutos praticou a extração das cataratas.

No dia 12 foram operados os seguintes doentes:

D. Cecília Arantes, residente na cidade de Três Pontas, tatuagem da córnea em leucoma ou belide.

Jorge Peranza, comerciante na cidade de Três Pontas, extração de um fragmento de chumbo encravado na parte posterior do olho.

Maria, filha do Sr. João Borges de Figueiredo, fazendeiro em espirito Santo dos Coqueiros, operada da dilatação do canal lacrimal.

Estas operações deram também muito bom êxito, achando-se os doentes em condições lisonjeiras!(8)

Os medicamentos utilizados pelos facultativos e aqueles outros vendidos nas farmácias e que estavam a disposição de quem pudesse obtê-los utilizavam o espaço cedido à propaganda para serem divulgados. Pílulas, xaropes, medicamentos homeopáticos estavam a venda para proporcionarem curas, as quais também eram registradas nas páginas do jornal. Usualmente eram publicadas notas de agradecimento enviadas ao jornal por pessoas que foram curadas ou por seus parentes:

Loucura

Eu abaixo assinado, em homenagem à verdade, atesto que empreguei em minha casa as Pílulas de Tayuyá M. Morato, propagadas pelo D. Carlos, em pessoa de minha família, que sofria de uma loucura em consequência da suspensão dos menstruos, e que prontamente produziu maravilhoso efeito, cessando a loucura e restabelecendo a saúde, o que atesto espontaneamente, e juro se preciso for (...)(9)

AGRADECIMENTO

Tendo sido acometido de uma moléstia aguda que conservou-me alguns em estado muito melindroso de saúde, e achando-me agora quase completamente restabelecido, não posso faltar ao sagrado dever de vir à imprensa para testemunhar ao distinto e talentoso facultativo Dr. Silveira Lopes, que, com tanto desvelo tratou-me, e aos amigos dedicados Candido Braga, Antonio pereira do Amaral, Joaquim de Sampaio Goes, Dr. João Baptista de Sampaio Ferraz e Guilherme A. Villares, que prestaram-me toda consideração, o sentimento de eterna gratidão e profundo respeito que lhes voto.

A todos, pois, o meu cordial e sincero agradecimento.

Campinas, 12 de janeiro de 1879

Dr. Lavrador(10)

As diversas notas, os diversos casos, as propagandas, enfim, esta delicada relação que envolvia o paciente a ser curado, o paciente curado, o médico e o principal veículo de comunicação do século XIX, ou seja, o jornal, fortaleciam as relações de poder entre o médico e o doente, entre aquele que possuía o saber e aquele que possuía a doença, intensificando ainda mais a autoridade médica sobre o corpo humano, objeto de estudo e de trabalho do saber médico.

Pudemos observar, como era de se esperar, que o fenômeno do suicídio ocorria em qualquer sociedade, em diversas épocas e com diferentes tipos de indivíduos. Os casos noticiados revelam-nos suicídios de fazendeiros, médicos, tabeliões, professores, negociantes, escravos, ex-escravos, crianças, idosos, imigrantes ( ingleses, portugueses, alemães, suíços, franceses, italianos...). Suicídios ocorridos em Campinas, Bragança Paulista, São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Pernambuco, bem como na França, Argentina, Inglaterra, Itália, Prussia...

Entre os casos divulgados de suicídios ocorridos em outros países podemos citar:

SUICÍDIOS DE CRIANÇAS NA PRUSSIA

De 1883 a 1888 deram-se na Prussia 293 caos de suicídios entre crianças que frequentavam as escolas, sendo 24 rapazes e 49 raparigas; em 1883, 58 suicídios, em 1884, 41; em 1885, 40; em 1886, 44; 1887, 54 e 1888, 56.

Em 80 casos o móvel foi o receio dos castigos; em 19 casos o desgosto de uma ambição não satisfeita; em 16 casos o medo de um exame; em 28 casos a loucura; em 5 casos foram atribuídos ao amor. Em 93 casos não chegou apurar-se o motivo da fatal resolução.(11)

As mortes que eram divulgadas pelo jornal constantemente continham o nome do suicida, sua posição social, o lugar onde o suicídio ocorreu e como se produziu, ou seja, os meios utilizados pelo suicida para provocar sua morte. Por exemplo, Diário de Campinas 16 de março de 1877:

Suicidou-se hontem tomando uma substância nociva, que nos dizem ser ópio, Antonio Saturnino do Amaral, morador no lugar denominado Ponte de Atibaia, deste município.

Saturnino morreu as 09 horas da manhã e foi conduzido para a cidade, devendo a autoridade fazer o auto de corpo de delito hoje as 7 horas.

Segundo as informações que pudemos obter, o suicida sofria de alienação mental, e declarava antes de morrer que resolvera pôr termo à existência por estar aborrecido da vida.

Percebemos uma constante preocupação por parte da imprensa, bem como por parte de outras instituições, em apresentar ao leitor as causas que levaram o suicida a cometer este ato. Expressões como segundo as informações que pudemos obter, informam-nos, ...tentou suicidar-se dando uma facada no peito em razão de ..., aqui está o que nos informaram..., são comumente usadas nas notas sobre o suicídio. Percebemos também que constantemente referiam-se ao suicida como infeliz, desgraçado, desesperado, indivíduo que sofria das faculdades mentais e ao suicídio como ato de loucura, triste acontecimento(...) Apresenta-se aqui uma importante questão, o fato de o termo suicídio estar carregado, no inconsciente coletivo, de conotações trágicas e desesperadas e do suicida ser objeto de desprezo e de experiências médicas, não estaria relacionado, entre outros motivos, pela recorrência de discursos médicos, religiosos, entre outros, presentes não só na imprensa como também em outros pontos do tecido social?

Entre as possíveis causas dos suicídios que foram noticiados pelo jornal podemos citar: paixão ou desilusão amorosas, fuga de castigos que certamente iriam sofrer ( no caso de crianças os castigos seriam aplicados pelos pais, e no caso de escravos os castigos seriam aplicados pelos senhores ), jogatinas, perda de bens ou de fortunas, morte de algum entre próximo. Mas na maioria dos casos levantados a causa estava relacionada direta ou indiretamente com algum sintoma ou mesmo algum tipo de doença mental.

Na descrição do suicídio, na descrição do perfil do suicida e até mesmo nas causas e nos motivos do suicídio encontramos uma questão muito importante que refere-se ao julgamento das condutas, dos atos, da moral. Tendo sido o suicídio fruto de uma desilusão amorosa, da perda de bens ou mesmo de um ato de loucura, insanidade ou falta de razão o que esta em jogo é um questionamento da própria conduta humana, do que leva uma pessoa a recusar a vida, não só individual, particular, como a coletiva, em sociedade.

Os suicídios ao serem divulgados e de uma certa forma analisados pela imprensa - embora pensemos que esta análise se dê através dos saberes que estavam debruçados sobre o fenômeno, como por exemplo o saber médico-, não estão apenas divulgando um suicídio, ou tentando encontrar através das informações obtidas sobre o caso ou sobre o suicida a causa do móvel, o que se procura é tentar responder, tentar compreender um fenômeno que faz parte do cotidiano da cidade, que está, como já dissemos, presente nas várias instâncias e instituições sócias, podendo surgir em qualquer casa, em qualquer família independente de sua riqueza, de sua instrução, de sua cor, de seus sentimentos...e também ao analisá-los os saberes que estão se dedicando ao estudo do suicídio e que utilizaram direta ou indiretamente a imprensa para divulgar seus discursos estão criando suas verdades sobre o fenômeno.

Os saberes que se dedicavam ao estudo do suicídio constituíam um emaranhado de relações onde o indivíduo, no nosso caso pensando o suicida, influenciava e era influenciado em pontos diferentes da rede social. Alguns saberes tentavam apropriar-se do fenômeno para poderem produzir sua realidade, outros, como já dissemos, para deles extrair suas verdades.

No final de janeiro de 1878 o suicídio do Dr. Manoel Teixeira Maciel demonstra como os discursos produzidos a partir da morte deste ilustre médico tentam criar suas realidades ao mesmo tempo revela-nos o emaranhado de relações entre eles. Quando se divulgou o suicídio não se sabia ao certo a causa mas esta estaria revelada nos escritos, em suas cartas, ele teria confiado esse segredo a diferentes pessoas. A explicação poderia ser dada apenas pelo próprio Teixeira Maciel:

Hoje, (25) foi encontrado morto na cama o Sr. Dr. Maciel, medico, natural do Rio de janeiro.

(...)O infeliz suicidou-se ingerindo uma poção venenosa cujos vestígios encontraram em um copo à cabeceira da cama.

Não se conhece, ao certo, a causa que levara o Dr. Maciel a suicidar-se.

Foram encontradas varias cartas fechadas subscritas a diferentes pessoas, e ente elas uma para seu amigo o Sr. Dr. Caetano Bretom Ferreira Monforte a quem, segundo consta, confiara o segredo da causa que o levou a terminar os seus dias.

Foi conduzido ao pateo do Lazareto que se está edificando e ali dado à sepultura por lhe haver a igreja negado no cemitério publico.

Um avultado numero de pessoas acompanhou a sua ultima morada, o cadáver do infeliz moço.(12)

Esta divulgação provocou uma reação que com certeza foi inesperada, envolvendo médicos, representantes da igreja católica e toda a cidade, revelando-nos a potencialidade e a importância da imprensa como lugar de debate, como veículo de notícias que tornava público problemas muitas vezes encarados como particulares, privados, reforçando o problema da divulgação dos suicídios e da própria utilidade pública de notas como estas.

Três dias após a primeira divulgação, ou seja, no dia 30 de janeiro de 1878 é publicada uma carta do Dr. Augusto Bittencourt, na qual é nítida a intenção em se explicar o por quê do suicídio de seu companheiro. No início da carta Dr. Bittencourt tenta resgatar a atmosfera que envolvia o suicida, tenta reproduzir o quadro pesado, fúnebre daquela noite aterradora. As palavras, os elementos são invocados para envolver-nos e preparar-nos para o trágico ato:

A MORTE DO DR. MANOEL TEIXEIRA MACIEL

A morte do Dr. Manoel Teixeira Maciel, distinto médico residente nesta cidade, deixou a todos contristadíssimos.

Quando na manhã de 25 do corrente, o corpo do desditoso moço foi encontrado, frio cadáver(...), em casa solitário e no isolamento de um leito, fundo estremecimento de terror e angustia comunicou-se do primeiro ao último habitante desta cidade.

Só, encerrado em sua casa, o Dr. Teixeira Maciel tinha, em meio de uma noite empestuosa, levado os lábios o Fatal veneno.

O lúgubre e ruidoso temporal que lá fora brania, não permitiu, que alguém ouvisse os gemidos e os cruéis estertos do infeliz, que assim se lançava na morte(..)

Depois de preparar o espírito de seus leitores e de apontar qual a direção a percorrer, a preocupação se volta para as averiguações, para o julgamento que um ato como este desperta, notemos que esta preocupação com o que falarão, como entenderão, como julgarão não está presente apenas no discurso do Dr. Bittencourt ou apenas no discurso de quem assumirá a tarefa de apresentar o suicídio, nas falas dos próprios suicidas encontramos esta preocupação, por isso muitos deixam suas cartas, suas mensagens, suas explicações para seus atos irracionais, para suas loucuras...

O Dr. Maciel matou-se...

Por que? Por que a fatalidade assim o quis!...

Oh! felizmente para a sua memória felizmente para s sua família e os seus amigos, felizmente para a moral da sociedade, Teixeira Maciel não deixou o menor vislumbre de culpa pelo que fez.

Negando qualquer culpa, qualquer propósito deliberado e desta forma preservando a memória do ilustre médico que não poderia ser considerado nem pecador nem criminoso, Dr. Bittencourt enquanto médico alega:

O seu ato foi pura e simplesmente o cato de um louco.

Ninguém diria, ainda, no dia de sua morte, vendo-o e ouvindo-o, testemunhando-o todos os seus atos, que ele - o moço esclarecido e animado pela centelha do talento tão bem disposto ao trabalho tão mencidamente acatado, seria capaz de assim precipitar-se no túmulo.

A sua feição era de moço que se senta alentado pelas mais ardentes esperanças; e tudo faz crer que andava alegre e satisfeito, agora mais do que nunca(...)

Alegando ser o suicídio do Dr. Maciel um ato de loucura, tenta-se preservar a memória do indivíduo e a do médico que esclarecido e talentoso não poderia suicidar-se sem ter aparentemente nenhum motivo, sem ter dado tempo para ser percebido o mal que o desnorteava e sem ter se anunciado:

E no entanto, contra tais aparências, Teixeira Maciel ocultava no íntimo do peito um sentimento horrível, porque no cérebro uma total lesão lhe desnorteava o espírito entregando-o à ação, irresistível de uma verdadeira e completa monomania!...

Os papeis e documentos por ele deixados provam, de modo evidente e irrecusável, que a sua razão estava desgraçadamente perturbada; nada faltando para que a medicina registre tais um feio desastre ocasionado pela loucura bem manifestada(...)

Os numerosos escritos de Teixeira Maciel, e principalmente o seu Diário, constituem a revelação completa do estado muito doentio de seu cérebro, pelas idéias desordenadas e extravagantes, disparatadas e fúteis, que ahi sempre aparecem com relação a certo assunto, a certa idéia e predominante, origem ou causa de sua monomania.

Transpondo o debate para seu campo de atuação, para o corpo humano - soma e psique-, Dr. Bittencourt utiliza uma barreira praticamente intransponível, a do saber, afinal quem poderá ser seu interlocutor, quem poderá discordar de tais argumentos? Quem poderá negar, por exemplo, que o espírito do Dr. Maciel não estava desnorteado pela monomania(13)? E quem poderia entender o que era um estado monomaníaco? Indiscutivelmente apenas quem compartilhava do mesmo saber, ou seja, outro médico.

Ainda no discurso do Dr. Bittencourt encontramos outro ponto muito importante, uma certa tensão entre o posicionamento deste médico o da igreja:

No fosso aberto para receber aquele corpo examine, numerosos amigos, homens de todas as classes, foram dizer o último adeus ao finado.

Pois bem...faltou alguém... alguém que deveria correr primeiro a tomar nos braços o desgraçado cadáver.. alguém que devera oferecer a esse cadáver - um jazigo seguro e bem guardado.

Faltou a que se diz - primeira representante da caridade na terra...

Faltou a igreja.

Sim é doloroso dizê-lo, -a igreja não hesitou em decretar imediatamente, sem apelo nem agravo, sem dó nem escrúpulo, sem indagação e cuidado algum, que o corpo de Teixeira Maciel não fosse macular o cemitério dos católicos!

Ouvido falar vagamente de um suicídio e tanto bastou para que tapasse os ouvidos fechasse os olhos e desse um terrível brado de horror e repulsa contra o mísero cadáver, ou na falta e um cemitério, foi sepultado em meio de um campo aberto, tendo por único sinal uma modesta arvore e perto de si um lazareto em construção.

A igreja não quis perder o ensejo de lançar o pronto e fácil anatena ao infeliz suicida...ao suicida que não teve culpa alguma, porque estava louco(...)

A postura da igreja foi frontalmente atacada, para a qual o suicídio era considerado um pecado imperdoável se cometido com a integridade da razão, afinal pertencia a Deus o direito de dispor ou não da vida e da morte.

Para fortalecer ainda mais a imagem do Dr. Teixeira Maciel como um homem piedoso, um médico prestimoso em oposição ao pecador, ao transgressor de leis naturais e divinas, Dr. Bittencourt conclui sua carta com as seguintes referências:

(...) E a igreja achou bom, justo, decente, sensato mesmo, que um cadáver respeitado, abraçado por uma cidade inteira, por ser o cadáver de um homem bom, prestimoso, que teve o coração sempre aberto aos mais delicados sentimentos da caridade, não tivesse como os outros um lugar sagrado para seu sepulcro (...)

Pois bem, seja como for, Teixeira Maciel teve um lugar bem próprio a sua sepultura.

Em vida muito fez pela criação do lazareto, que hoje está em construção bem adiantada.

Ali era mesmo o lugar para serem lançados os restos do bom e caridoso médico.

Se a igreja a alguém fez mal foi a si mesma.

Ao mesmo tempo que tenta-se construir uma realidade que possa explicar o suicídio do Dr. Teixeira Maciel, indivíduo monomaníaco, louco, irresponsável por seu ato, tenta-se construir outra para que possa servir de base ao embate com a igreja, o suicida é apresentado como uma pessoa esclarecida, homem bom, médico prestimoso, respeitado, que teve o coração aberto aos mais delicados sentimentos da caridade. Como negar a sepultura a um homem que possuía todas as virtudes cristãs e que por causa da loucura tenha se suicidado? Perguntas como estas tinham que ser respondidas, fazia-se necessário o pronunciamento da igreja.

Para justificar sua conduta, o vigário Antonio José Pinheiro encaminha ao Diário de Campinas a seguinte carta:

A MORTE DO DR. MANOEL TEIXEIRA MACIEL

Muito tem-se dito e escrito cobre a morte desse infeliz médico, Dr. Manoel Teixeira Maciel.

Pretendeu-se mesmo lançar uma censura contra a igreja por haver-lhe negado sepultura em seu cemitério.

Entretanto ninguém há por aí que ignore que a igreja procedeu desse modo em relação os suicidas que não loucos.

O desditoso Dr. Maciel estava nesse caso.

A voz de toda a sociedade o dizia.

Além disso, a teminante afirmativa do distinto médico, o Sr. Dr. Caetano Breton Ferreira Monfort, colega e íntimo amigo do infeliz Dr. Maciel, dissipou toda a dúvida que haveria em meu espírito à tal respeito e levou-me à mais inabalável certeza.

A vista disto, outro não podia ser o procedimento da igreja (...)(14)

A igreja ao defender seu posicionamento, ou seja, o fato de ter proibido que o cadáver do suicida fosse enterrado no cemitério, não o faz baseando-se em argumentos próprios, ao se deparar com um fenômeno que urge por uma explicação ela utilizará o aval médico para posicionar-se. Foi o Dr. Caetano Monfort quem dissipou a dúvida sobre o estado mental do suicida. Neste caso quem vai definir os critérios de normalidade e a definição do indivíduo como doente mental é o médico, aquele que possuía o saber necessário para tal diagnóstico, com isso assegurava o exercício deste poder, por ser detentor do único saber capaz de explicá-lo.

Uma vez concluído pelo Dr. Monfort que seu amigo não estava louco, a igreja utilizou este diagnóstico médico para proibir o enterro ( apesar da controvérsia entre os diagnósticos do Dr. Bittencourt e do Dr. Monfort, um afirmando ter sido o suicídio um ato de um louco e o outro negando ).

Neste caso, no suicídio do Dr. Maciel, podemos observar a influência do discurso médico no que se refere ao suicídio, influência que, pouco a pouco, começa a impregnar outros saberes e outras práticas. Sendo assim, a imprensa assume um papel social peculiar, ao testemunhar um saber que está se ramificando pela sociedade, atingindo outras instituições e produzindo novas relações de poder.

Segundo Roberto Machado, o século XIX assinala para o Brasil o início de um processo de transformação política e econômica que atinge igualmente o âmbito da medicina, inaugurando duas de suas características, que não só tem vigorado até o presente como tem-se intensificado cada vez mais: a penetração da medicina na sociedade, que incorpora o meio urbano como alvo de reflexão e da prática médicas, e a situação da medicina como apoio científico indispensável ao exercício de poder (...)(15)

Esta prática de se relacionar as causas dos suicídios com a doença mental não estaria auxiliando a perceptível tendência de se converter o suicídio em um objeto exclusivo do saber médico, o qual se transformaria no único saber capaz de investigá-lo? Não estaria assim instituindo um novo tipo de poder, ou melhor, uma nova relação de poder que constitui o corpo humano como alvo? Por que se recorria ao saber médico para se explicar as causas do suicídio e não a outros saberes? Lembramos que para Foucault não há saber neutro, todo saber é político e assegura o exercício de um poder.

Nas averiguações sobre o suicídio normalmente o que se procurava é a causa, aquilo que poderia ter levado o indivíduo a suicidar-se. São pouquíssimos os casos onde se apresenta mais de uma possibilidade, não se trabalhava com causa s , o que se buscava era a doença, ou o desespero, ou a desgraça que havia possibilitado o suicídio...A idéia de confluência de fatores não se apresenta nos casos noticiados pela imprensa.

Mas nem tudo estava relacionado com este universo das doenças mentais, alguns suicídios que eram publicados estavam ligados a outros universos, como o das anedotas. Não queremos dizer que as anedotas sirvam apenas para piadas ou distração, elas comungam com uma mesma possibilidade de se pensar, além de não permitirem que se crie um silêncio em torno do fato, no nosso caso, em torno do suicídio.

No jornal Diário de Campinas do dia 18 de junho de 1876 é publicada a seguinte nota:

SUICÍDIO DE UM CÃO:

O reino animal terá também os seus suicídios? Eis o que consta uma folha de berne, O mensageiro de Birse:

Ha tempos, um cão sem dono percorria o vale de Lanfon. Na sua desgraça, todos os esforços para encontrar um abrigo foram infrutíferos, quando um cantoneiro teve compaixão do pobre animal e o levou para sua casa. esta felicidade não devia durar. A miséria e os sofrimentos puseram o desgraçado cão em estado tão lastimoso que o guarda não quis mais em casa.

Achando-se outra vez sem abrigo, o pobre animal como tivesse consciência de sua ação, deitou-se na via férrea através dos rails e esperou pacientemente que uma locomotiva houvesse por bem por termo à sua miserável existência. Foi o que aconteceu. O pobre animal foi partido em dois por uma maquina.

O suicídio deste pobre animal está diretamente ligado à desgraça, à miséria e aos sofrimentos da vida que atingiriam não só os seres humanos como os animais. Em torno desta polêmica escreve Durkheim(16): Sendo o suicídio todo caso de morte que resulte direta ou indiretamente de um ato positivo ou negativo, praticado pela própria vítima, sabedora de que devia produzir este resulta, exclui tudo o que diz respeito a suicídios de animais. Com efeito, o que sabemos da inteligência animal não nos permite atribuir aos bichos uma representação antecipada da sua morte, nem sobretudo dos meios capazes de produzi-la. Se há cães que recusem alimento quando perdem o dono, isso se deve a que a tristeza em que mergulharam suprimiu mecanicamente o apetite; sua morte resulta disso, mas sem que tenha sido previsto.

As anedotas nos ajudam a perceber a incerta fronteira que envolve o suicídio, uns atribuem este tipo de morte a animais, outros propõem pena de morte ao suicida:

Certo irlandez, membro do parlamento, animado de sentimentos filantrópicos e querendo ver se punha termo aos suicídios, apresentou um projeto para que o suicida fosse punido com a pena de morte!(17)

Além das anedotas as mortes de homens e mulheres celebres também eram divulgadas, constituindo um dos elementos desse corpus documental preciosíssimo que é a imprensa:

Eis os nomes de alguns homens e mulheres que vemos na historia, celebres uns pelos seus vícios e defeitos, respeitáveis outros por suas eminentes virtudes e pelo bem que fizeram à humanidade e que tiveram uma morte trágica:

Seneca, para eximir-se à crueldade de Nero, suicida-se.

Socrates suicida-se no banho.

Caio Gracho, o valente paladino da plebe de Roma, faz-se matar por um escravo, que depois se suicida sobre o cadáver do seu senhor.

Anibal, o herói cartagizes, suicida-se envenenando-se.

Bruto suicidou-se num descampado, ao abandono.

Cleopatra suicida-se, diz-se que com a mordedura de uma aspide que fizera apanhar dentro de um açofote.

Condorcet, suicida-se com veneno (...)(18)

E ainda:

Suicidou-se em Santiago, no edifício da legação argentina, onde se acha exilado o ex- ditador chileno José Balmaceda (...)(19)

Mas através das anedotas, através da divulgação dos casos de suicídio, estes estando relacionados ou não com algum sintoma ou mesmo com algum tipo de doença mental, a cidade estava sendo informada, estava-se tornando público estas mortes desconfortáveis e perturbadoras, estava-se rompendo o silêncio que muitos segmentos buscavam para estes atos incompreensíveis.

Contudo não podemos esquecer que alguns discursos produzidos a partir deste fato histórico tentam se apropriar do suicídio, tentam produzir sua realidade, sua verdade para poder com isso formar a imagem apropriada para o suicida e garantir sua autoridade para estes casos - constituindo novas relações de poder.

Saberes, discursos, práticas que representam um vasto campo a ser pesquisado, analisado e talvez compreendido...

Concluindo, nas palavras de Edmund Burke, tudo que obrigue a alma a voltar-se para si mesma tende a concentrar suas forças e a torná-la apta a vôos mais elevados e mais vigorosos na esfera da ciência(...)(20).

NOTAS:

01) José Roberto do Amaral Lapa, A Cidade: Os Cantos e os Antros: Campinas 1850-1900 . Editora da Universidade de São Paulo, 1996, p.11

02) Ulysses Cidade Semeguini, Do Café a Indústria. Uma Cidade e seu Tempo . Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1991

03) José Roberto do Amaral Lapa, op. cit., p. 180

04) Conforme jornal A verdade , n. 01 de 01/01/1892, p. 01

05) José Roberto do Amaral Lapa, op. cit., p. 181

06) Diário de Campinas , 16/01/1879

07) Diário de Campinas , 20/01/1892

08) Diário de Campinas , 12/04/1894

09) Diário de Campinas , 08/01/1897

10) Diário de Campinas , 14/01/1879

11) Diário de Campinas , 31/12/1891

12) Diário de Campinas , 27/01/1878

13) Segundo o Diccionario de Medicina Popular e das Sciencias accessorias para uso das famílias (1890) p. 441, monomamia é definida como: Forma de loucura que só se manifesta por uma única e fixa idéia, de modo que o doente parece estar em goso de suas faculdades mentaes, se o distrahem do obecto que o preocupa. A esta variedade de alienação mental deram tambem o nome de delirio parcial.

14) Diário de Campinas , 01/02/1878

15) Roberto machado, Danação da Norma: A medicina Social e Constituição da Psiquiatria no Brasil . Rio de Janeiro: Editora Graal, 1978, p. 155

16) Émile Durkheim. O Suicídio , Trad. Luz Cary, Margarida Garrido e J. Vasconcelos Esteves, 5. ed., Lisboa: Editorial Presença, pp. 10-11.

17) Diário de Campinas , 12/08/1877

18) Diário de Campinas , 14/12/1877

19) Diário de Campinas , 23/09/1891

20) Edmund Burke, Uma investigação sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo . Trad. Enid Abreu Dobránszky. Campinas, SP: Papirus: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1993

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