49 Congreso Internacional del Americanistas (ICA) |
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Quito Ecuador7-11 julio 1997 |
Suzeley Kalil Mathias
PONTIFICIA UNIVERSIDAD CATOLICA DEL ECUADOR
49 CONGRESO INTERNACIONAL DE AMERICANISTAS
SIMPOSIO:UNA CULTURA DEMOCRATICA PARA AMERICA LATINA: CULTURA, GOVERNABILIDAD, DEMOCRACIA Y SEGURIDAD
PROCESSOS DE DISTENSÃO E CONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA NO BRASIL E NO CHILE
Suzeley Kalil Mathias
Universidade Estadual Paulista - UNESP , Campus de Franca
Núcleo de Estudos Estratégicos - UNICAMP
1997
Resumen.- Lo presente texto aborda comparativamente las transiciones del régimen autoritário para la democracia en Chile y Brasil, colocando énfasis sobre los factores militares del proceso. Ambos los países tuveran como punto de salida una situación autoritária bem sucedida , viveran una transición definida como pactada, y hoy estan en vias de consolidar su régimen politico que, al menos formalmente, és democratico. También buscamos comprender como los valores democráticos son introducidos en las organizaciones militares.
Resumo: Este texto avalia comparativamente os meios e resultados da saída do regime autoritário de base militar no Brasil e no Chile a partir da análise do papel das Forças Armadas no processo, buscando compreender ainda como se dá a introjeção de valores democráticos na organização militar.
PROCESSOS DE DISTENSÃO E CONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA NO BRASIL E NO CHILE 1
Suzeley Kalil Mathias2
A participação das Forças Armadas na política brasileira não foi inaugurada com a intervenção de 1964. São bastante conhecidas para ser novamente lembradas, as muitas vezes que elas tomaram parte em governos ou foram responsáves seja pela queda, seja pela ascensão de governantes; Oliveiros Ferreira (1988) e José Murilo de Carvalho (1977) chegam até a apontar o número de tais intervenções na República. Neste sentido, a novidade do movimento militar de 1964 encontra-se na manutenção do poder estatal nas mãos da Forças Armadas e na duração deste estado de coisas. Todavia, é importante lembrar que duração refere-se aqui tão somente à unidade temporal, não à manutenção do mesmo projeto político ou do mesmo grupo militar no poder. Como mostram Carlos Estevam Martins e Sebastião Velasco e Cruz (1984), a principal característica do regime pós-64 encontra-se no binômio durabilidade-mutabilidade: a permanência do poder nas mãos das Forças Armadas foi marcada pela mutabilidade da ação política dos militares, consequência de um certo revezamento no poder de grupos militares, ou, mais precisamente, dos grupos dominantes (D'ARAUJO et. al.: 1995).
O Chile, ao contrário, junto com a Venezuela era exemplo de democracia consolidada nos anos 60, exatamente quando teve início uma nova modalidade de intervencionismo militar neste lado do globo. Tanto assim que uma tentativa como a de Allende em pleno apogeu da guerra fria, não parecia representar nenhum perigo para o regime político. Contribuiu para essa percepção, como discutiremos, o alto grau de profissionalismo de suas Forças Armadas (ARRIADA, 1985). Assim, a ascensão de Pinochet ao poder, através de um golpe militar, em 1973, representou, por si só, a fundação de uma nova era no país, trazendo mudanças profundas em todos os níveis da sociedade. Entretanto, tais mudanças não redundaram na perda de profissionalismo por parte das Forças Armadas e nem fizeram delas sujeitos intervencionistas: como antes, elas permaneceram instrumentos armados da ação do Estado.
Apesar das diferenças de ritmos e caminhos, Brasil e Chile, como a maior parte dos países latino-americanos, podem hoje ser considerados democracias em processo de consolidação. Não podem ser avaliadas como regimes consolidados exatamente porque ainda persistem alguns focos de autoritarismo, nem sempre velado. Casos como o das eleições haitianas, das movimentações de tropas paraguaias ou a decretação do estado de sitio na Bolívia ocorridas em 1995, são apenas alguns exemplos. Grande parte da ameaça às jovens democracias vem exatamente de questões mal resolvidas no relacionamento entre governo civil e Forças Armadas.
Ademais, ao voltarmos nossos olhos para esse lado do mundo, notamos que nossos países não estão vivendo somente um processo de transição do autoritarismo às diferentes formas de democracia. Há em curso vários processos de transição sendo, talvez, o principal fundado no processo de inserção econômica de tais nações no novo contexto mundial. A conjugação dessas transições tem gerado crises econômicas, desgovernabilidade política e esgarçamento sociais que ainda não encontraram solução, e tem marcado o comportamento dos países frente ao mundo e vice-versa. No que toca especificamente às Forças Armadas - que ocupavam o centro do poder em boa parte do continente-, esse processo transicional tem redundado em perda de poder político interno e em redução da capacidade operacional estratégica e funcional nos planos interno e externo (MATHIAS, 1995b).
A natureza desse trabalho, conjugada ao espaço que dispomos, não nos permite desenvolver essa análise em sua totalidade. Aqui, objetivamos chamar a atenção para o peso da instituição militar sobre os processos de transição no regime político através do acompanhamento de dois casos bastante significativos, Chile e Brasil. Nossa proposta está pautada pela discussão da transição a partir do "sucesso" alcançado pelo regime autoritário anterior ao início do processo transicional, com ênfase no início de tal processo (conhecido como liberalização, descompressão, distensão ou abertura) através dos casos brasileiro e chileno. A escolha destes baseia-se em dois fatores principais: 1) ambos são casos paradigmáticos de transição pactada. O primeiro, como todos sabemos, pela lentidão com que processou sua transição; o segundo, por dar origem a uma organização inusitada ao seu poder político na fase pós-autoritária e, 2) ambos parecem viver um momento político muito semelhante quanto às finalidades e desafios da consolidação democrática.
A análise das transições de regimes autoritários, ainda que a ênfase seja dada para parte de tal processo e em suas dimensões diminutas, é importante porque entendemos que é somente a partir da compreensão destes mesmos processos que se abre a possibilidade de entendimento dos regimes políticos desenvolvidos posteriormente. Isto não significa deixar de considerar outras variáveis, como "fatores históricos de longo prazo" e a "intervenção do universo econômico na política" na explicação das recentes democracias latino-americanas, como quer O'Donnell (1991). Pelo contrário, a análise dos desenvolvimentos transicionais joga luzes inclusive sobre tais fatores, permitindo avaliar os graus de mudança e de continuidade relativa.
Tomando como um dos grandes problemas enfrentados pelos regimes pós-autoritários a integração de suas Forças Armadas aos novos marcos institucionais, bem como entendendo que essa integração é essencial à sobrevivência da democracia, elegemos duas questões como eixo deste texto: 1) quais as possibilidades de democracia duradoura nos casos de transição de regimes autoritários bem-sucedidos? 2) quais as possibilidades de integração das suas Forças Armadas ao novo marco institucional?
Para respondê-las, dividimos o texto em quatro partes. Na primeira, fazemos uma breve análise da natureza das transições e qual sua relação com os regimes autoritários. Na segunda, discutimos o "sucesso" desses regimes. A ênfase ao papel exercido pelos militares durante a transição é nosso objeto na terceira parte. Na última parte, que constitui quase uma conclusão, procuramos examinar, ainda que parcialmente, as possibilidades e os problemas da consolidação democrática.
Uma última ressalva: processos políticos, como sabemos, são fenômenos cujo vir a ser deve ser apreendido no seu próprio devir. Todavia, para apresentá-los, tornando possível ao leitor acompanhar nosso raciocínio, fizemos uso de uma linguagem um tanto esquemática e que, às vezes, torna o processo, cuja natureza por si só é dinâmica, algo estática. Este recurso, repetimos, foi utilizado tão-somente com fins didáticos e, na medida do possível, vamos procurar corrigir.
1. Regime autoritário e transição para a democracia
Até aqui falamos em transição, distensão e abertura sem a preocupação de definir os significados que assumem tais termos. Na verdade, os três são muitas vezes utilizados como sinônimos na análise política e, talvez em função da complexidade das realidades que visam expressar, estão carregados de controvérsia, isto é, diferentes autores atribuem significados diversos a tais termos.
Utilizando a terminologia de O'Donnell & Schmitter (1988), transição significa a passagem ou mudança entre duas formas de organização do regime político em uma dada sociedade. Esse rearranjo no regime político pode ser dividido em diferentes fases, sendo que a primeira delas é chamada distensão ou liberalização , na qual se produz reformas no regime autoritário com vistas a um outro regime que, no momento da distensão, ainda não está determinado. Essa fase corresponde à substituição ou afrouxamento de algumas regras com vistas a diminuir a repressão e restabelecer alguns direitos individuais ou coletivos e, fundamentalmente, subordinar e restabelecer a unidade interna às Forças Armadas.
A segunda fase, que pode ser ou não ser concomitante à primeira, é chamada democratização e caracteriza-se pelo estabelecimento de regras que tornem possível a alternância no poder através da extensão dos direitos de cidadania e participação política e, fundamentalmente, de eleições competitivas. Embora a liberalização seja necessária à transição, a democratização é possibilidade que somente se abre quando o objetivo é a conquista de um regime democrático. Assim, a democracia política somente é atingida quando ambas as fases são cumpridas.3
Diferente de O'Donnell e Schmitter, entendemos que esta terminologia somente faz sentido quando as transições de regimes autoritários são processadas através de acordos, como no caso brasileiro, não cabendo, portanto, para aqueles casos de "colapso" do regime autoritário. Neste último, na realidade, não há transição (ou o termo é mal utilizado), mas precipitação em uma nova forma de organização do regime político que, naqueles países onde o regime autoritário tinha forte conteúdo militar - a Argentina é nosso exemplo mais próximo -, apresenta-se um processo de "desmonte" do Estado pela própria falta de projeto político das elites que são forçadas a deixar o poder.
No Brasil, cujo processo de transição foi bastante lento, as fases de liberalização e democratização deram-se em momentos diferentes, não foram concomitantes - apesar das dificuldades em datá-los com precisão. Já o caso do Chile, dada sua estrutura política e a duração do processo de transição, é mais difícil fazer afirmações desta natureza. Todavia, ainda que tomando como hipótese, diremos que a distensão e a democratização foram processos simultâneos no caso chileno.
Como essa discussão mostra, não existe um caminho único para analisar os casos de transição do autoritarismo para outro regime político. Uma maneira de olhar as transições é defini-las a partir do grau de controle mantido pelas elites do regime autoritário sobre o processo de redefinição de regras do jogo. O caráter do controle pode, por sua vez, ser determinado pelo "sucesso" alcançado pelo regime autoritário anterior (MATHIAS, 1995a).
O "sucesso" dos regimes autoritários pode ser, por sua vez, analisado a partir do grau de institucionalização alcançado pelo regime. Em outra palavras, sabemos se um regime autoritário é ou não "bem-sucedido" quando tomamos, em conjunto, o grau de legitimação e normalização (ou valor em si) existente em torno das regras do jogo; o grau de militarização (participação e responsabilidade dos militares pelo regime); o nível do desempenho econômico e, ainda, as diferenças em relação à cultura e tradição políticas anteriores à sua implementação. São esses fatores que, em última instância, determinam a natureza das transições.
Quando o regime autoritário é "bem sucedido", é provável que haja uma transição negociada (e não violenta). Do contrário, o mais provável é o colapso do regime autoritário e uma transição,. na falta de melhor termo, por "precipitação". Se no primeiro caso, a decisão de abrir é fruto de um largo processo de mudanças no interior das elites autoritárias que, por isso mesmo tendem a manter um controle maior sobre ele, no segundo a decisão aberturista é forçada pela presença de oposição ao regime, apesar de que é necessário que exista algum grau de dissensão interna aos setores dominantes para que a transição se inicie.4
Se considerarmos como primeira ação liberalizante aquela que é assim entendida pela oposição política, provoncando uma reação nestes (O'DONNELL & SCHMITTER, 1988), podemos dizer que o marco transicional chileno foi o Plebiscito de 1988. No Brasil não existe um marco nítido, mas há consenso em aceitar-se que foram as eleições de 1974 o primeiro sinal neste sentido.
Ampliando um pouco o conceito, isto é, pensando não somente na reação da oposição, mas na organização da reação, podemos tomar o marco transicional como anterior aos fatos nomeados. Ou seja, os resultados do Plebiscito no Chile em 1988, só fazem sentido frente à união das oposições que, por sua vez, só puderam engrossar suas fileiras e agir no sentido da aglutinação em torno de um mesmo objetivo porque passaram por um longo processo de superação de suas próprias divergências internas (quem deveria pactar com quem?) e porque houve, em princípio, um relaxamento da repressão. Assim, podemos fixar o início do projeto liberalizante no Plebiscito de 1981.
É verdade que o resultado do Plebiscito foi favorável a Pinochet - afinal, a Constituição por ele proposta venceu com 60% dos votos. Mas, a própria realização do evento possibilitou o início da movimentação na sociedade civil que, a partir de 1983, levou ao crescimento da oposição, pois esta passou a contar com o afluxo de muitos daqueles que apoiavam e até ajudavam na organização do governo inaugurado em 1973.
A retirada do apoio ao regime pode ser explicada, em boa parte, pelo esgotamento da estratégia de violência do regime e, em menor medida, pelos resultados negativos no plano econômico - deteriorização das condições de vida de contingentes crescentes da população (KAUFMAN, 1988). Essa percepção possibilitou, como já dissemos, a organização de uma frente em torno de um objetivo comum (derrubar a ditadura) capaz de vencer o Plebiscito de 1988, obrigando a realização de eleições diretas para a Presidência da República em 1989.
No Brasil, pode-se dizer que houve algo semelhante, pois os resultados do pleito de 1974 foram parte de uma política já traçada pelo governo que permitiu a realização de eleições sem impedimentos, ainda que persistissem restrições à campanha eleitoral, o que garantiu a vitória da oposição dentro das regras do regime autoritário. O efeito das eleições de 1974, assim, não foi sobre o projeto de transição, mas sim sobre sua duração.
Assim, temos duas semelhanças entre os casos de transição brasileiro e chileno: 1) ambos tiveram um resultado inesperado e que possibilitou o delineamento de uma caminho transicional; 2) em ambos não fazia parte dos objetivos das elites do regime autoritário transformá-lo, mas sim institucionalizá-lo, tornando-o passível de permanecer ao longo de um tempo indefinido. Aqui é preciso sublinhar que se tratava de conservar o regime , pois o governo ou parte de seus ocupantes, poderiam retirar-se, incluindo as Forças Armadas.
A descompressão, iniciada a partir dos eventos acima e tomando o ponto de vista da elite militar, pode ser entendida como uma nova modalidade de intervenção militar na política, cujo objetivo é, por um lado, descomprometer as Forças Armadas com a repressão (OLIVEIRA, 1985) e, por outro, o estabelecimento de uma "democracia tutelar" ou "dictablanda".5
2. Institucionalidade e sucesso do regime autoritário
Segundo Alain Rouquié (1988), a ideologia oficial e o marco cultural latino-americano são liberais e democráticos. Por isso, os regimes autoritários são sempre encarados como excepcionais, apresentados como um momento de refluxo necessário para robustecer a democracia futura. Em outras palavras, são regimes que, não tendo uma base legitimadora na origem - nos regimes democráticos, vale lembrar, a legitimação está calcada nos procedimentos e, por isso, existe desde sempre -, procuram-na por meio de suas realizações futuras, daí serem apresentados como transitórios.
A transitoriedade funciona, assim, pelo menos no discurso, como um mecanismo que facilita não só o entendimento entre as elites que promovem a intervenção autoritária, mas é capaz de mobilizar outros setores de classe, particularmente os estratos médios, e unificar os grupos militares.
No Brasil, porém, essa transitoriedade não era somente um discurso para o grupo militar que tomou o poder em 1964. Exemplo disso está no primeiro Ato Institucional baixado pelos interventores, que sequer tinha número, pois pretendia-se único, e, além do mais, tinha (como também o segundo) data para expirar. Na verdade, o que os primeiros interventores pretendiam era repetir suas ações passadas. Porém, dada a heterogeneidade das forças em disputa pela direção do processo, a instituição militar acabou por tornar o que seria mais uma intervenção "cirúrgica" num novo regime político (STEPAN, 1975; MORAES, 1985; MATHIAS, 1995a).
Ainda assim, a permanência dos militares no poder no Brasil foi revestida de uma certa institucionalidade ao se procurar manter, ainda que manipuladas, as regras do jogo, como a periodicidade das eleições e o revezamento na Presidência da República.
Num primeiro momento (1964-1967), a legitimação do regime foi possível porque a intervenção militar de 1964 não maculou a tradição ou a cultura política da Nação.6 Pelo contrário, a elite autoritária fez uso dos mesmos mecanismos de relação (e legislação) política que herdou do regime anterior. A própria elaboração da Constituição de 1967 pode ser encarada como uma tentativa de manter o regime nos trilhos traçados pelo grupo que ocupou o poder em 1964 (VELASCO E CRUZ & MARTINS, 1988).
A partir da mudança do grupo no poder (1967), e o consequente acirramento das divergências no seio da coalização dirigente, a transitoriedade foi transformada em mero discurso e o governo viu-se obrigado a buscar novas fontes de legitimidade para o regime.
No Chile, o discurso da transitoriedade também fez parte dos entendimentos iniciais em torno da composição golpista, mas a institucionalidade do regime não pôde ser buscada através da tradição ou cultura política. Como já afirmamos, a intervenção militar de 1973 representa uma ruptura com o passado político do país e é nesta ruptura que encontramos grande parte da explicação para ter sido o Chile o caso mais repressivo dos novos autoritarismos do continente. É ilustrativo a este respeito que ainda hoje, quando o Chile vive seu segundo governo civil pós-autoritário, haja mais de 900 casos de pessoas consideradas desaparecidas durante o regime de Pinochet ( Clarim, 18/12/95).
Vale lembrar que neste país as Forças Armadas eram consideradas altamente profissionais - no sentido que Huntington (1975) dá ao termo -, e sua intervenção na política, momentânea ou não, representava uma ruptura em si com o passado. Aliás, o elemento surpresa foi um dos aspectos mais importantes no momento do golpe; ninguém acreditava realmente na possibilidade de uma intervenção militar, o que explica em grande parte porque a Unidad Popular não tentou evitá-lo (AGGIO, 1993).
É verdade, como mostram Varas (1990) e Valenzuela (1989), que a intervenção de 1973 não foi fruto somente da conjuntura específica do pré-golpe. A política da democracia chilena para a área militar levada desde a crise de 1930, e particularmente depois de 1958, ao mesmo tempo que afastou os militares da arena política, também os separou da sociedade, criando uma fissura permanente e que os levou a identificar a crise de governabilidade da gestão Allende com uma crise do sistema político como um todo. Assim, "a frustração institucional das Forças Armadas de fins dos sessenta se manifestou como uma frustração não só contra os operadores do sistema, mas contra este como um todo..."(VARAS, 1990: 122).
É no caráter reativo e na necessidade de composição entre civis e militares que tornam possível a intervenção que encontramos mais um ponto de convergência entre os casos do Brasil e do Chile. Entretanto, como já afirmamos, a união civil-militar para resolver conflitos políticos momentâneas constitui quase que uma tradição política brasileira - o que leva a afirmações exageradas, como a de Oliveiros Ferreira, que defende que as Forças Armadas, pelo número de vezes que interferem na política, já não são um instrumento do Estado, mas o Estado (1988: 122). No Chile, ao contrário, haviam instituições democráticas sólidas e partidos realmente representativos. Tanto assim que, até 1973,
"...em 143 anos, o Chile experimentou somente 13 meses de inconstitucionalidade sob a forma de junta, e somente 4 desses meses sob a forma de junta militar e, apesar do poder executivo ter sido proeminente durante décadas depois da independência, o Congresso foi assumindo gradualmente suas prerrogativas até tornar-se uma arena importante para o debate nacional, transformando-se em um dos mais poderosos legislativos do mundo." (VALENZUELA, 1989: 160).
Em termos da relação tradição-cultura política, no Brasil o regime autoritário foi "bem-sucedido", pois houve uma certa continuidade entre práticas anteriores e posteriores à sua implementação na medida em que a presença castrense na política não era nova e os militares construiram um regime que manteve como eixos o pluralismo partidário e a periodicidade eleitoral, o que permitiu à elite legitimar não só o golpe, mas também o regime. No Chile, ao contrário, desenhou-se de fato uma ruptura: de país democrático, ele ingressou num dos mais sangrentos autoritarismos do continente, eliminando todas as possíveis semelhanças entre antes e depois do 11 de setembro de 1973.
Além da surpresa, outro elemento que explica o sucesso da empreitada de Pinochet pode ser explicado: é a maneira como foi tratada a intervenção pelos civis, particularmente pela classe política. A posição do Congresso abriu caminho para a intervenção armada na política, possibilitando um "golpe dentro da legalidade". Ainda que a frase soe imprópria, houve de fato uma articulação jurídica e institucional no interior do Congresso e cuja expressão foi a declaração por ele feita de que o governo Allende era inconstitucional (29/08/73) e que as Forças Armadas deveriam intervir para ser possível o restabelecimento da legalidade. As Forças Armadas, neste sentido, agem dentro da Constituição para proteger a própria sobrevivência do Estado frente a um inimigo.
Outro elemento explicativo do "sucesso" dos regimes autoritários está nos índices econômicos. A utilização deste meio é normalmente buscada porque a base de legitimação inicial do regime não lhe é inerente porque sua primeira fonte, a negação do regime anterior, é muito frágil e tende a declinar rápido e num período de tempo relativamente curto. Com isto, a elite autoritária procura no desempenho econômico a legitimidade que lhe falta, cumprindo com os objetivos alegados do regime que seriam a garantia da "paz social" e do desenvolvimento econômico. Também esta é uma base volátil na medida em que "...um desempenho medíocre pode destruir esta base, enquanto um bom desempenho pode ser considerado obrigação do governo" (Share & Mainwaring, 1986, p. 218). Porém, se o bom desempenho econômico não permite a institucionalização ad infinitum do regime, pode garantir-lhe uma transição menos traumática. Brasil e Chile são exemplos nesta direção.
No Chile, como é sabido, a aplicação do modelo econômico neoliberal e monetarista dos Chicago Boys , não produziu os resultados esperados logo após o golpe. Foram necessários alguns anos para ele atingir sua finalidade. No primeiro momento, foi a conjugação de repressão com aversão a Allende que forneceu ao regime a soldadura necessária para seu aprofundamento. Quando a política econômica alcançou seus objetivos de reduzir a inflação e o desemprego através da livre importação, privatização e, particularmente, da concessão de créditos bancários, trouxe consigo uma fictícia explosão de bem-estar, mas também desnudou seu lado negativo, isto é, o aumento da massa de "excluídos". Esses resultados perversos, conhecidos dez anos após o golpe, coincidiram com o aumento das oposições a Pinochet (CÁCERES, 1993). Neste sentido, em 1983, mesmo ano da crise global do sistema econômico chileno, realizou-se um primeiro acordo entre o PDC, o Partido Radical e parte do Partido Socialista. Em 1985, houve a adesão dos partidos opositores de direita formando o Acordo Nacional , coalização que, mais tarde, daria sustentação à cadidatura de Aylwin.
Ao contrário do Chile, o modelo econômico brasileiro não estava calcado nas privatizações, mas na crescente associação do Estado com o capital privado, cujo efeito principal foi a transnacionalização da economia. Esse modelo não diferia daquele aplicado na quase totalidade das experiências autoritárias e seu principal objetivo era a reinserção do país no mercado internacional. Depois de um período inicial de ajuste (1964-67), a adoção desse modelo permitiu o desenvolvimento de um período de prosperidade (de 1967 até meados dos setenta), conhecido como "milagre brasileiro", após o qual as taxas do PNB começaram a declinar, ainda que tenham permanecido positivas até 1980.
O traço comum entre Chile e Brasil neste aspecto está menos, como dissemos, na eleição de um mesmo modelo econômico e mais na separação produzida entre economia e política, já que na primeira imperava o liberalismo e a internacionalização, enquanto que na segunda procurava-se combinar a facção mais nacionalista do Estado (os militares) com repressão.
Em resumo, no caso brasileiro a estabilidade pretendida foi possível pela combinação de bom desempenho econômico com alguma repressão. Isto permitiu à elite dirigente iniciar um processo de transição detendo alto poder de controle sobre tal processo, antes mesmo da legitimidade baseada no desempenho econômico ver-se ameaçada (LAMOUNIER & MOURA, 1984). Em contrapartida, no Chile o bom desempenho econômico não levou ao nascimento de uma proposta de distensão do governo. Porém, o modelo econômico adotado, ainda que tenha granjeado um volume considerável de opositores, permitiu um potencial maior de barganha por parte da elite autoritária e com menores problemas em termos sociais, o que lhe proporcionou uma base melhor para o início do processo de transição, base esta desconhecida no Brasil.
O quarto e último fator na avaliação do "sucesso" dos regimes autoritários é o quanto participam no, e quanto os militares se sentem responsáveis pelo regime. Para analisar este aspecto, um instrumento importante nos é dado pela distinção proposta por Moraga (1986) entre ditadura personalizada e ditadura institucional . No primeiro caso, o chefe do governo e das Forças Armadas são uma mesma pessoa e esta concentra em suas mãos grande parte do poder de decisão. No segundo, não existe um poder personalizado - ou quando existe, ele é atenuado. Aqui, é a própria instituição militar que age como governo.
Na presença de um regime autoritário do tipo ditadura personalizada , propostas de liberalização do regime por parte das Forças Armadas ou com seu apoio, são mais difíceis, pois para assumir uma atitude desta natureza, elas teriam que questionar as ordens de seu comandante-em-chefe, o que encontra fortes resistências internas às Forças na medida em que isto compromete a ordem hierárquica e disciplinar. Entretanto, caso a liberalização seja iniciada, a posição dos militares é mais cômoda e seu apoio menos restrito, pois haverá a quem responsabilizar pelos "desvios" do regime: caberá ao ditador e não à instituição militar a culpa pelos erros.
Já no caso do regime autoritário de tipo ditadura institucional, propostas distensionistas podem surgir do seio das Forças Armadas, mas elas significarão, normalmente, um processo de afastamento progressivo dos militares da administração do Estado. O maior obstáculo neste caso está em que, tendo que assumir o ônus da culpa pelos caminhos adotados, as Forças Armadas tendem a ser mais reticentes quanto ao aprofundamento da transição e, portanto, a elite castrense tende a manter algum poder no interior do aparelho estatal não só durante o processo de transição, mas também posteriormente.
Sem sombra de dúvida, o regime autoritário chileno foi o que mais se aproximou de uma ditadura pessoal. Este seu caráter impediu que a instituição militar se tornasse parte do governo e, portanto, co-responsável pelas decisões implementadas. O caráter militarizado do regime não estava baseado na participação das instituições castrenses na política - que, ao contrário, continuaram a ser forças de defesa subordinadas ao governo, como o eram antes de 1973 -, mas sim no fato de os militares sentirem-se, a partir do golpe, como tutores naturais da sociedade civil (BUZETA, 1988: 117).
O caráter ditatorial do regime chileno explica as tentativas plebiscitárias de institucionalização (1981 e 1988), e porque o regime foi, de certa forma, "cercado" pelas forças da oposição, que foram os promotores do pacto liberalizante.
Ao contrário do chileno, o regime autoritário brasileiro pode ser considerado um exemplo de ditadura institucional , pois foram as Forças Armadas enquanto instituição que promoveram a intervenção de 1964 e se colocaram à frente do regime. Ao procurarem afastar qualquer característica ditatorial, as Forças Armadas levaram a política para o interior dos quartéis - já que o Alto Comando transformou-se em Colégio Eleitoral -, gerando a possibilidade de crises crescentes que colocavam em jogo o controle militar interno à instituição, forçando-as (ou, pelo menos, sua parte mais lúcida), até para protegerem-se, a pensar e até fornecer alternativas de seu afastamento do poder de Estado (GÓES & CAMARGO, 1988).
Dentro da relação entre autoritarismo e forças militares, outro aspecto a ser considerado é a questão da repressão. Nos dois países o regime autoritário criou um órgão responsável pela informação e segurança. Todavia, a função desempenhada por cada um deles foi bastante diferente.
A DINA, no caso chileno, cumpriu dois papéis: força específica da repressão, e de afastamento das Forças Armadas de envolvimento direto com a repressão. Este último papel, embora não fosse finalidade precípua da DINA, auxiliou na manutenção do profissionalismo e prestígio militares. Isto impediu que as questões políticas invadissem os quartéis, mantendo-as nas mãos do general-presidente.
O SNI deveria cumprir funções semelhantes às da DINA para o caso brasileiro. Entretanto, se aquele, como seu congenere chileno era o órgão responsável pela repressão, ele funcionava também - e é esta característica que afasta o SNI da DINA - como linha de transmissão do divisionismo militar, pois funcionava como um órgão das Forças Armadas sem, todavia, estar sujeito às mesmas normas hierárquicas e disciplinares (BAFFA, 1989). Assim, da mesma forma que o revezamento presidencial, o SNI era mecanismo de politização e descontentamento interno aos quartéis.
Conforme procuramos mostrar, tanto no regime brasileiro quanto no chileno, as elites responsáveis pelas decisões políticas souberam combinar fatores que, por caminhos diferentes, garantiram certa institucionalidade ao regime, fazendo com que eles fossem "bem sucedidos", como definimos, e isto permitiu o controle por essas mesmas elites sobre o processo de transição para outra forma de institucionalidade.
3. Dois casos de transição pactada
É preciso ter em mente que a transição não é um caminho inevitável dos regimes autoritários, ainda que estes sejam "bem sucedidos". A principal característica da transição de regimes autoritários "bem sucedidos" é o controle das elites sobre o processo. Neste caso, a própria natureza do regime pode funcionar como obstáculo às iniciativas liberalizantes (O'DONNELL & SCHMITTER, 1988). Se para as elites autoritárias o melhor momento para iniciar um processo de liberalização é aquele onde o regime autoritário atinge um grau de "sucesso" reconhecido, é também o momento onde as contradições do regime são menos aparentes e, portanto, existe uma resistência maior à mudança. Deste modo, as transições normalmente são iniciadas quando todas as alternativas para o desenvolvimento do regime já não são alternativas viáveis.
À primeira vista, o caso do Brasil e do Chile não se encaixam nesta ressalva, isto é, a transição nesses países iniciou-se no momento mais oportuno para isto. Ainda que levássemos em conta que as contradições internas ao próprio regime que, como afirmamos, apontavam, no médio e longo prazos, para a distensão, o projeto liberalizante foi posto em prática em ambos os países antes que o regime conhecesse uma crise séria - seja de legitimidade do regime, de governabilidade do Estado ou de identidade das elites dirigentes - que pudesse pôr em risco a própria sobrevivência da elite autoritária.
O melhor momento para iniciar um projeto liberalizante no Brasil talvez tenha se dado no final do governo Médici. Lembremo-nos que os objetivos da auto-proclamada "revolução de 1964" expressavam-se pelo lema "segurança e desenvolvimento". No período Médici, o desenvolvimento econômico apresentou as melhores taxas do período. No mesmo momento, a "subversão", expressada através de focos de luta armada, tinha sido debelada e não estava-se vivendo nenhuma crise castrense. Foi exatamente neste período que surgiram opiniões dissidentes no seio das Forças Armadas e foi possível o desenvolvimento de um projeto com vistas a abertura controlada do regime e que foi posto em prática por Geisel a partir de 1974 (MATHIAS, 1995a).
A transição chilena também pode ser vista como tendo sido desencadeada num momento de "sucesso" reconhecido do regime autoritário e, aliás, numa conjuntura muito mais favorável do que a conhecida no Brasil. É o que nos informa Valenzuela:
A despeito da continuada polarização da política chilena, a transição pode ser mais fácil que em outros países por várias razões. Em primeiro lugar, pela forte tradição democrática existente antes do golpe (...) No Chile, não é necessário criar-se instituições democráticas, mas sim restaurá-las. Segundo, as Forças Armadas chilenas, apesar de uma década e meia de regime militar, não se tornaram politizadas (...) Além disso, a instituição não se encontra fragmentada e somente intervém em crises sérias. Terceiro, essas Forças Armadas ainda mantém prestígio substancial, a despeito do ressentimento de diversos setores contra o autoritarismo. Particular importância é o fato de que a instituição militar não esteve diretamente comprometida com a `guerra suja' (...) Finalmente, a transição chilena iniciou-se com um quadro econômico relativamente melhor do que o dos seus vizinhos..." (1989: 199-200).
Outro fator que contribuiu para o desenho de um momento favorável para o início da transição foi a pressão externa sobre o governo militar, a fiscalização do plebiscito de 1988 pela comunidade internacional e seu apoio à união de dezesseis partidos (Acordo Nacional) que apoiaram a candidatura de Patrício Aylwin (Angell, 1990). Isto não foi conhecido no Brasil e a interferência internacional em outros casos, como no Haiti, foi de outra natureza e infinitamente menor.
Pelos motivos descritos, caminhos como o brasileiro dificilmente poderiam ser seguidos pelo Chile porque neste não existia uma "partidarização" no interior das Forças Armadas e nem esta se confundia com o governo. Também uma transição conduzida pela sociedade civil seria de difícil realização - também no caso brasileiro - pela própria característica do regime autoritário (relativamente "bem-sucedido" e altamente repressivo). Além disso, a transição chilena comportou uma decisão de retirada , na medida em que Pinochet aceitou os resultados do plebiscito e convocou eleições diretas, dando posse ao presidente eleito.
Em resumo, procuramos mostrar que tanto a transição no Brasil quanto no Chile iniciou-se em um momento em que a conjuntura apresentava-se bastante favorável à sua efetivação. Isto fez com que, aos olhos das elites, um processo dessa natureza aparecesse como menos custoso ( no sentido do cálculo custo-benefício) do que a manutenção do regime autoritário. Com relação às Forças Armadas, esta conjuntura foi muito melhor no caso chileno do que no brasileiro, daí porque o processo neste último tenha sido efetivado de maneira tão lenta: dezesseis anos separam a posse de Geisel da posse de Fernando Collor; no Chile, ao contrário, em menos de dois anos um civil eleito diretamente foi empossado.
É no momento da realização dos pactos entre os diferentes atores envolvidos no processo que encontramos a grande diferença entre os dois países. No Chile, a oposição se organizou para chegar unida no momento da passagem para o governo democrático. No Brasil, não se conheceu um pacto entre as oposições anterior à eleição fundadora. É a conjugação da postura presidencial (general Figueiredo) com a fragmentação interna das forças do regime que criou as condições necessárias à composição entre setores governistas e oposição moderada, que deram forma à Aliança Democrática.
De qualquer forma, o resultado no que tange às Forças Armadas, foi a manutenção da sua autonomia no interior do Estado. No caso do Brasil, o primeiro governo civil pós-autoritário (Sarney) foi tutelada pelos militares que gozavam de um poder decisório e de veto desproporcional às suas responsabilidades - as chamadas prerrogativas militares (STEPAN, 1988) - e adotando ações limitadoras ao processo de democratização, como são exemplos as declarações do ministro Leônidas Pires durante a Constituinte (OLIVEIRA, 1994). No Chile, a permanência de Pinochet, garantida constitucionalmente até 1997, criou uma situação inusitada e sem precedentes: o comando-em-chefe das Forças Armadas é um cargo independente da chefia do Estado, o que cria uma dualidade de poder que pode gerar crises que colocam em risco a própria continuidade do processo democrático.
4. Os militares na consolidação da democracia
Para além das dificuldades enfrentadas por nossas recentes democracias, não se pode negar os avanços que tais regimes conquistaram. É verdade que há "ruídos" nos quartéis, que ainda não foi possível a subordinação completa dos militares ao poder civil nem no Chile nem no Brasil.
Para compreender isto, todavia, é preciso levar em conta algumas peculiaridades que atigem esses países. Em primeiro lugar, e sem entrar em detalhes, diferente da via clássica da construção democrática, a consolidação democrática na América Latina depende da combinação da democracia social com a democracia política.
Neste campo, Brasil e Chile são bem diferentes. No Chile, o governo democrático conseguiu superar alguns problemas de curto prazo e promover um acordo político que refletiu no campo econômico e social. Segundo dados da CEPAL, através da manutenção de taxas de crecimento em torno de 6%, e de inflação baixa (média de 10% ao ano), o governo da Concertación têm reduzido em muito os níveis de pobreza no país,7 o que pode ser constatado pelo decrescimento da mortalidade infantil (taxa de 19% em 1990) e aumento da expectativa de vida (72 anos em 1990).
Em contrapartida, na esfera política pouco se avançou. É verdade que o ponto de partida no caso chileno é bem mais confortável do que o brasileiro: dada a tradição democrática e de partidos fortes, trata-se de fazer renascer o regime democrático, enquanto o Brasil busca as bases para a criação de um regime democrático que vá além da formalidade da eleição direta em todos os níveis. Ainda assim, o governo de Aylwin somente conseguiu promover reformas parciais na Constituição (1991), mantendo intocadas as prerrogativas das elites autoritárias, como, por exemplo, a permanência de senadores designados - entre nós, chamados biônicos. O governo de Eduardo Frei, representante da continuidade, mostrou-se disposto a investir mais esfera política. Todavia, isto implica em sanar os problemas de relacionamento civil-militar. Foi em nome desta superação que a Suprema Corte chilena condenou dois militares, antigos chefes da polícia política, a cumprirem penas de prisão pela morte de Orlando Letelier e de Ronni Moffit, ocorrida em 1976 nos EUA. Mas foi em nome de seu status de militar que Contreras, amigo de Pinochet e com apoio deste, conseguiu adiar por 5 meses o cumprimento da sentença. Durante esse período de tempo a democracia no Chile ficou em suspenso, mas saiu vitoriosa.
Talvez devêssemos ser menos exigentes no caso do Chile. Afinal, esse país viveu por mais de uma década a mais cruenta ditadura do continente e, apesar disto, dá exemplos diários de respeito aos direitos civis, à Constituição e de desejo verdadeiro de superar as amargas lembranças deixadas por Pinochet. Para isto, parece que o povo chileno está disposto a ser paciente e esperar até 1997 para, finalmente, dar ao seu país uma nova institucionalidade.8
O caminho seguido pelo Brasil foi muito diferente do conhecido no Chile. Entre nós, a opção foi pela reforma via institucional, procurando, através de um novo pacto político, representado pela feitura de uma nova Constituição, reorganizar as forças em disputa e, a partir daí, procurar a implementação de decisões que pudessem mudar o quadro sócio-econômico deixado pelos 20 anos de governos militares. Assim, os governos civis pós-autoritários tiveram que enfrentar a transição política e conviver com a desorganização econômica. Sem entrar em detalhes, por demais conhecidos, basta dizer que entre 1987-90, isto é, em três anos, o nível de pobreza cresceu 12,76%.
Apesar disso, o país tem dado lições de tolerância e de adesão profunda às regras do jogo democrático ao preferir resolver os graves problemas nacionais através de mecanismos democráticos do que pela defesa de princípios autoritários. Exemplos não faltam. O mais importante foi o afastamento do presidente Collor (1992) dentro das regras do jogo e sem criar nenhum senão militar.
Foi somente no final do governo Itamar Franco que se notou que a democracia brasileira não podia ficar no plano político. Foi o que fez Fernando Henrique Cardoso através do Plano Real. Não temos a pretensão, e nem é objetivo deste texto, de analisar o programa econômico do governo, mas não podemos deixar de registrar que, para além das perversidades a ele inerentes, as altas taxas de inflação parecem ser coisa do passado. Segundo dados da Fipe, a inflação anual de 1995 foi equivalente à taxa de duas antes da implantação do Real. Não é a toa, portanto, que, independentemente dos escândalos que atingiram o palácio do Planalto, estes não tenham redundado em desaprovação popular do governo - pelo contrário, após um ano de governo, Fernando Henrique opteve 43% de aprovação em uma pesquisa de opinião pública ( Veja , 17/01/96: 28). É possível dizer, assim, que depois de 10 anos de governos civis transicionais, o Brasil está começando a trilhar o caminho já seguido pelo Chile.
Voltando nossos olhos para a questão da subordinação militar ao poder civil, podemos seguir os argumentos de Wendy Hunter (1994), para quem países como Argentina, Brasil e Chile não conseguiram equacionar este problema porque a resposta não parece estar mais no profissionalismo das Forças Armadas. Isto porque as recentes democracias procuraram limitar a autonomia militar, provocando reação destes e, consequentemente, o envolvimento castrense na política, já que o controle civil sobre os militares provocou desafios às posições profissionais das Forças Armadas.
Aponta a autora para a falta de definição clara por parte dos civis do que se deseja das FFAA como o grande fator explicativo para a insubordinação militar. Todavia, através da comparação entre Argentina, Brasil e Chile, ela exemplifica como isto não é suficiente, pois neste último país as FFAA gozam de garantias institucionais e missão definida sem, no entanto, haver subordinação. Nas palavras da autora, os militares chilenos são, ao mesmo tempo, os mais profissionais e os mais fortes politicamente na região (Hunter, 1994: 648).
A resposta para tal dilema apontada por Hunter é, por um lado, a definição clara e precisa da missão militar - que poderia ser combinada com algum grau de corporativismo - e, por outro, o afastamento das FFAA de qualquer problema nacional, seja político, econômico ou social.
Há muito temos insistido que a subordinação militar ao poder civil não encontra uma resposta somente nas ações institucionais (MATHIAS, 1991). Ou seja, é necessário definir com precisão uma missão para as Forças Armadas, formulando um projeto de defesa para o país e de operacionalização para o instrumento da defesa, mas isto não é suficiente. E é por isso que no Chile ainda não existe subordinação completa ao poder civil.
É somente através da introjeção de valores democráticos no interior dos quartéis que ter-se-á uma subordinação completa. Isto implica, evidentemente, a participação da sociedade política e civil no sentido de formular as alternativas profissionais para as FFAA, mas não se resume nisto. É um trabalho de longo prazo, mas, por isso mesmo, com maiores garantias de sucesso.
Um trabalho desta natureza implica não só na reestruturação dos padrões de educação militar, mas também em profundas mudanças na cultura política do país. Em outras palavras, não basta uma atitude positiva de mudança por parte das Forças Armadas, é necessário que a sociedade civil e, evidentemente, seu setor político, deixem de bater às portas dos quartéis para solucionar questões civis e/ou policiais.
Quanto ao primeiro aspecto, isto é, aquele relativo à definição de uma função para as FFAA, já se caminhou bastante tanto no Brasil quanto no Chile. Hoje há uma definição clara do emprego e de sua processualidade das FFAA em termos da legislação. O que ocorre é que nem sempre o ritual necessário é seguido.
Em contrapartida, no Brasil, além da definição legal nada foi efetivado. Os políticos acreditam que a definição legal da função militar é suficiente para seu emprego. Porém, sem um planejamento deste emprego, contra quem as Forças Armadas serão empregadas?
A situação é melhor no Chile exatamente porque o governo civil, dentro das limitações, e mesmo as elites autoritárias, sempre souberam que sem esta missão não existe Força Armada capaz de dar uma pronta resposta aos problemas de defesa. Não é por outra razão que não se pode falar em crise das Forças Armadas, como é comum no Brasil (OLIVEIRA, 1994). Pelo contrário, as Forças Armadas chilenas são as mais modernas e, proporcionalmente, as maiores da América do Sul, contando com um militar para cada 103 habitantes ( O Estado de S. Paulo, 30.06.91: A4)
No Brasil, ao contrário, tanto a política de defesa quanto de operacionalização das Forças têm sido feitas pelos próprios militares. Isto tem redundado não só em despreparo militar e descontentamento civil, mas em uma sucessão de crises que podem chegar a ameaçar a própria existência das Forças Armadas nacionais (OLIVEIRA, 1994; MATHIAS, 1995b).
Na verdade, quando olhamos para o conjunto de fatores presentes na política chilena e brasileira, notamos que é a presença de Pinochet, no primeiro caso, que impede a superação dos problemas relativos à consolidação democrática no Chile, enquanto que, no Brasil, a situação é mais complicada tanto pela posição dos militares - e da crise que atinge as Forças Armadas - quanto dos civis - que insistem em manter-se afastados dos temas da defesa nacional e têm uma visão que privilegia um militar politizado, porque ele pode vir a ser um aliado.9 Consequentemente, podemos dizer que no Chile existe uma cultura política "civilinizada", para utilizar um termo de Baquer (1988), enquanto que no Brasil prevalecem traços político-culturais militarizados. Assim, neste último caso, há que se fazer uma outra transição, aquela das mentalidades, para que a democracia deixe de ser vista como instrumento e passe a ser tomada como valor, não só pelos militares - que têm dado mostras do desejo de manterem-se afastados da política -, mas principalmente pelas elites civis. Assim, independente da direção que nossos olhos tomem, a situação do Chile é muito melhor que a do Brasil no que tange à não reversão do processo de consolidação democrática.
Para finalizar, embora seja verdade que no plano do discurso - quiçá do desejo -, os projetos governamentais hoje em prática em ambos os países sejam coincidentes: prioridade para a área social e, em nome dela, promoção de reformas constitucionais, bem como crescimento e estabilidade macroeconômica, essa última tomada como premissa para a equidade, para a promoção da justiça social. Ainda assim, a realidade de ambos os países no que se refere ao processo de consolidação democrática aponta para caminhos diversos e até antagônicos, não permitindo prever se mais à frente Chile e Brasil serão não só parceiros econômicos - no caso de integração do Chile ao Mercosul (MATHIAS, 1995b) -, mas também exemplos de transições bem sucedidas e democracias consolidadas.
NOTAS
1 Publicamos uma introdução a este tema em Premissas, Caderno 5, NEE-UNICAMP, dezembro de 1993. O texto aqui apresentado é resultado parcial do projeto La cuestión cívico-militar en las nuevas democracias en América Latina, coordenado pela Universidad Torcuato Di Tella e financiado pela Ford Fundation.
2 Professora do DEHB - Faculdade de História, Direito e Serviço Social (UNESP-Franca); membro do Núcleo de Estudos Estratégicos (UNICAMP), e autora de Distensão no Brasil: o projeto militar, 1973-1979 (Campinas, Papirus, 1995).
3 ODonnell e Schmitter fazem referência, ainda, a uma terceira fase da transição, à qual dão o nome de socialização . Esta, diferente das duas primeiras, não tem como referência principal o regime político, mas sim o regime econômico-social. Pelas parcas indicações dos autores, é possível afirmar somente que esta fase parece ter início quando o processo de consolidação da democracia enquanto regime político já está em andamento, e seu objetivo principal parece ser resolver os problemas de justiça social criados pelos modelos autoritários anteriormente vigentes. Veja, O'DONNELL & SCHMITTER, 1988, p. 30 ss.
4 À semelhança dos golpes militares cujo sucesso depende da formação de coalizões, ainda que momentâneas, nenhum processo transicional inicia-se sem a formação de coalizões que neguem apoio ao governo autoritário (O"DONNELL & SCHMITTER, 1988).
5 Por "democracia tutelar" ou "dictablanda" deve-se entender uma organização política formalmente democrática, que pode incluir eleições diretas em todos os níveis, mas com a manutenção da mesma capacidade de intervenção dos setores autoritários sobre o processo político. Tal objetivo somente pode ser alcançado quando a transição é negociada, na qual as elites autoritáriasmantêm um alto controle sobre o processo. Isto implica dizer que o regime "tutelar" somente torna-se possível quando a transição é resultado de um regime autoritário "bem-sucedido" (MORAES, 1987).
6 Embora a diferença entre cultura política e tradição política seja bastante sutil, podemos dizer que a primeira responde às bases sociais que estabelecem as relações entre os indivíduos na sociedade que, evidentemente, refletem-se na arena política. A tradição política se refere, em interação com a cultura, ao arranjo institucional e às práticas políticas do país. Os conceitos de cultura e tradição política nos permitem visualizar quanto os regimes autoritários são "fundadores" ou não e, também, na fase de transição, quando esta representa continuidade ou mudança.
7 Quando da posse de Aylwin, 40% da população chilena vivia na pobreza ou miséria. Este índice baixou para 27% na posse de Eduardo Frei.
8 Temos notícias de que o presidente Frei apresentou diversos projetos de lei que, seguindo indicações de que seu objetivo é "reformar o regime a partir de dentro" ( Veja , 16/03/94), se aprovados, significam o retorno do país ao eixo institucional democrático (MUÑOZ, 1995).
9 A posição de Leonel Brizola, conclamando o posicionamento dos militares contra o processo de privatização (18.05.95), ou o emprego do Exército na greve dos petroleiros são apenas alguns exemplos da cultura política brasileira com relação aos militares.
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