49 Congreso Internacional del Americanistas (ICA)

Quito Ecuador

7-11 julio 1997

 

Silvana Maria Pessôa de Oliveira

Simpósio sobre Humor e Ironia na Literatura das Américas

Título:

A trama do saber em Aqueles cães malditos de Arquelau, de Isaías Pessotti

Apresentadora: Silvana Maria Pessôa de Oliveira - UFMG.

Mundos frágeis adquiridos

No despedaçamento de um só.

E o saber do real múltiplo

e o sabor dos reais possíveis

E o livre jogo instituído

Contra a limitação das coisas

Contra a forma anterior do espelho.

Orides Fontella

Resumo:

O estudo pretende analisar algumas imagens emblemáticas da narrativa na pós-modernidade: o pesquisador-detetive, o tradutor, o erudito, a biblioteca, o enigma. Tais imagens apontam para a paixão do conhecimento e para o conhecimento da paixão: o saber e o sabor. Nessa perspectiva, o texto passa a ser visto como uma malha de signos a serem desvendados. E uma das formas de se decifrar o enigma-texto é a erudição, o conhecimento dos clássicos.

Aqueles cães malditos de Arquelau , romance de estréia do paulista Isaías Pessotti, mantém estreitos vínculos com O nome da rosa , de Umberto Eco, na medida em que ambos os textos compartilham uma estrutura comum que é a construção de uma trama detetivesca, que dispõe livremente do patrimônio da tradição: há um crime, cometido em passado remoto, que tem motivação ideológico-amorosa, e que deve ser desvendado graças à perspicácia e erudição do narrador-detetive.

Em ambos os textos, a trama gira em torno de questões relativas à Idade Média, pois a crítica à Inquisição, ao alto clero, enfim, à truculência dos poderes torna-se pano de fundo propício a que o século XX contemple a si próprio.

Algumas imagens emblemáticas da narrativa da pós-modernidade se apresentam como importante como eixo dinamizador: o pesquisador - investido da função de detetive -, o tradutor, o erudito, a biblioteca perdida, que se constitui no próprio enigma. Há uma cumplicidade, já apontada por Roland Barthes, entre a paixão do conhecimento e o conhecimento da paixão: o saber e o sabor. Nessa perspectiva, o texto passa a ser visto como uma malha de signos a serem desvendados. E uma das formas de se desvendar o texto/enigma é a erudição, a leitura prazerosa dos clássicos.

O PESQUISADOR E O DETETIVE

O detetive é alguém que se volta para o passado, a fim de recolher pistas e desvendar mistérios.Normalmente, essa figura associa-se à razão, uma razão que se quer indubitável, todo-poderosa. Com efeito, a razão detetivesca constitui-se a partir do triunfo da verdade e da certeza. Comumente associado à frieza e à ausência de sentimento, contudo o detetive não é apenas um frio herói da ratio , buscando afirmar a verdade sob quaisquer circunstâncias. Ele também é portador da paixão da decifração, que se confunde com a do conhecimento. Como um profeta de olhos voltados para o passado, ele busca decifrar o que aconteceu, como e por que, já que ele carrega em si a paixão de decifrar. Nesse caso, a paixão deixa de ser cega, pois é ela que ilumina as pistas e desvenda os rastros.

Tanto para o detetive quanto para o pesquisador, a leitura é um processo de deciframento de pistas espalhadas pelo corpo da cena, no palco do texto. Achar as pistas através da perspicácia é a forma prática assumida pela inteligência. O narrador se coloca na posição de um infatigável leitor de signos, uma vez que decifrar o enigma urdido é ressaltar a busca de rastros. O crime (ou a pesquisa) se torna uma brincadeira, um jogo e é proposto como enigma. Nesse sentido, pesquisar é sempre buscar uma interpretação adequada, correta. E o pesquisador, mais do que um mero detector da verdade, mais do que aquele que descobre o que aconteceu, torna-se um jogador, o inventor de uma série de possibilidades que podem se tornar verdadeiras. Daí resultar que o pesquisador, o hermeneuta reafirma e confirma sua teoria em cada objeto.

Para o pesquisador e para o detetive, o crime é uma charada, que se torna imprescindível decifrar: por isso, a alegria da descoberta da pretensa verdade, o alívio por saber como as coisas realmente aconteceram. O interessante é que essa verdade nunca é posta em causa: ela é um valor absoluto, uma certeza. Encontrar essa verdade,que se inscreve no projeto de reconstituir a ordem do mundo através da investigação, torna-se uma certeza para os pesquisadores.

Os pesquisadores são jogadores, que inventam uma série de possibilidades capazes de se tornarem verdadeiras. Como homens da ciência e do puro raciocínio, eles observam a tudo e tudo registram, numa espécie de aposta iluminista na possibilidade de a razão encontrar uma explicação para aquilo que ainda não foi explicado.

Essa constatação demonstra a crença iluminista no poder da razão. Nesse sentido, a narrativa se estrutura a partir de um quebra-cabeças, cujas peças os pesquisadores vão encaixando em seu devido lugar, para a partir de pistas obscuras, chegar-se ao deciframento. Esse passado se organiza na forma de um jogo emaranhado de versões (provisórias, fugazes), de escritas e traduções perdidas.

Se há versões diferentes da história, a função do pesquisador é ir eliminando hipóteses até lograr construir uma versãoverdadeira. Com isso, a investigação adquire o caráter de missão que visa a reconstruir um passado morto. Torna-se então explícito o projeto do narrador, isto é, preencher as lacunas da História, resgatar do esquecimento aqueles que por ela foram relegados à lata de lixo, a permanecer à margem dos acontecimentos.Se a história é feita de lacunas, de pontos obscuros, somente através da investigação criteriosa é possível iluminar esse lado oculto.

Para efetuar essa reconstrução, a idéia é a de refazer uma trajetória, uma história. Para decifrar a trama, basta seguir as pistas que vão sendo fornecidas ao longo da narrativa: no caso, a pista mais eloquente é um fragmento de Virgílio, encontrado por acaso na villa . A partir do fragmento, desencadeia-se o processo investigatório.

Com o objetivo de levar a bom termo a investigação, lança-se mão de todos os saberes. Por isso, as personagens todas elas são especialistas em alguma modalidade do conhecimento: seja a história da loucura, seja a história da arquitetura, seja a história do teatro grego. É preciso, portanto, haver uma mistura, um emparelhamento, uma cumplicidade entre os diferentes ramos do saber, que assim se complementam. Há uma aliança de saberes, uma vez que a solução do enigma acontece graças à colaboração de todos, apontando para a vitória do trabalho coletivo. É importante ressaltar ainda a importância da sabedoria popular, que mantém vivos fragmentos da História, que funcionam como uma importante cadeia de transmissão. É através da sabedoria popular, das consultas às fontes orais que se chega às variações do nome do Bispo,as quais se desdobram numa cadeia de significantes: Lutércio, Lutézio, Lutécio, Ludovico Tertius. A partir dessa cadeia significante acaba-se por chegar ao verdadeiro nome do Bispo.

O ENIGMA

Na cultura grega - fascinada por enigmas - a decifração é uma demonstração de habilidade e talento. Não é por acaso que um dos mais fortes símbolos da literatura helênica é a esfinge, representada como a principal proponente do enigma.

Etimologicamente, a palavra esfinge deriva do verbo spinghéin , envolver, apertar, comprimir, sufocar. Ela é vista como um monstro opressor. Mas ao mesmo tempo, a sua imagem liga-se à da sensualidade, porque o monstro esfíngico é ávido de sangue e de prazer erótico.

O adversário monstruoso deve ser atacado e para bom sucesso da empresa é preciso lançar mão de todos os recursos disponíveis. Embora haja caminhos diferentes capazes de levar á solução - os métodos dedutivo e indutivo, o histórico -, procede-se a uma mistura de todos eles.Tal qual os aventureiros míticos que após vencer o desafio, apoderavam-se de seus tesouros, ao chegar à solução do enigma, os pesquisadores recebem os seus troféus: os livros antigos,verdadeiros talismãs do saber.

BOA COMIDA, BONS VINHOS E VELHOS ESCRITOS: O BANQUETE E OS SABERES

A metáfora do banquete liga-se à do sabor e propõe uma rede de relações entre o saber e o sabor. As suntuosas refeições que têm lugar na trama narrativa organizam-se em torno da análise dos fatos rastreados e são a coroação de um dia de pesquisas. Ou de um achado significativo. A mesa propicia então dois tipos de refeição: é o lugar do alimento propriamente dito e o espaço de uma outra nutrição, a do conhecimento. É também o lugar onde se encena a paixão pelos livros, pois nos fins de semana, os pesquisadores saem em busca de mesa farta e de manuscritos. Estudar torna-se então pura paixão, puro prazer.

Aliado a essa paixão, o saber funciona também como sedução, jogo de encantos:

o conhecimento deve ter alguma dimensão erótica. Nesse sentido, a paixão de Emílio por Anna funciona como mola propulsora das descobertas intelectuais e da vontade investigativa. E a refeição transforma-se em instante de afloramento desse erotismo e desse saber:

E havia também a sensação visceral, ventral de calor e de gozo. Havia a carne,sucos,odores acres atenuados, e os damascos, mornos, rosados e úmidos como mucosas excitadas. Eu ouvia deliciado os suspiros manos, quase gemidos, de Anna, a cada bocado, lambendo os lábios, de olhos fechados, para colher, em cada bocado, o sabor e o prazer de deglutir.Ela estava toda entregue ao prazer.

Prazer de comer, prazer de teorizar, prazer de amar, conjugados, entrelaçados. Há uma carga erótica de alta voltagem perpassando todo o trecho. Assim, conhecer é mais do que simplesmente estabelecer relações, ligações. É também e principalmente deglutir, apoderar-se do outro como alimento, num ritual fágico. Construir uma teoria assemelha-se a executar, na cozinha, uma receita de faisão.E mais: a paixão é um meio, aliado poderoso para se chegar ao conhecimento.

O ESPELHAMENTO DE NARRATIVAS

A presença, na narrativa, de várias coincidências ou espelhamentos parece apontar para o fato de que a obra dobra-se sobre si mesma, utilizando os seus próprios elementos como material de sua construção. Como exemplo, veja-se a história do dramaturgo grego Eurípides, que na sua dramaturgia, analisa a força das paixões. Pois as histórias contadas por Eurípides aparecem duplicadas na história do Bispo Vermelho, que à maneira das personagens trágicas do teatro grego, sucumbe derrotado por uma paixão ilícita pela cunhada. E finalmente, Emílio e Anna vivem regidos por idêntico código amoroso, já que essa,casada, mantêm com aquele um romance secreto.

Semelhante duplicação das histórias ocorre em relação ao fim trágico de algumas personagens. Assim como Eurípides foi trucidado pelos cães raivosos de Arquelau, também Lutércio e Vitória sofrem igual morte. Os cães que mataram Eurípides, o Bispo e Vitória são os mesmos que, no agora da diegese, atormentam Anna.

Há ainda diversas histórias que serão contadas ou encaixadas en abîme no plano da narrativa, nela funcionando como espelhamento e sinalizando para a narrativa enquanto produto de uma consciência em ação. Destaca-se, nesse jogo de espelhos, o fato de que o Bispo é um leitor apaixonado, além de tradutor de textos gregos, especialmente dos de Eurípides. Nessa cadeia de leitores-tradutores (que se tornam, por fim, escritores) inscreve-se o narrador Emílio, que traduz o Commentarium , obra do Bispo Vermelho sobre o dramaturgo grego.

Essa ciranda de leituras e leitores põe em circulação um saber: aquele que fora banido, marginalizado por ser considerado subversivo e colocar-se a contrapelo da história oficial, e que será novamente trazido à luz, através do resgate dos livros e das histórias perdidas.A exposição das tramas do poder e do saber revela novo espelhamento de narrativas: assim como Eurípides exila-se na Macedônia, vítima das intrigas do poder, também Lutércio isola-se na villa , vítima do poder inquisitorial. O elo que permite o desvendamento do mistério acerca da existência do Bispo Vermelho é novamente Eurípides: é a paixão pelo dramaturgo que liga Emílio e Anna e faz com que pesquisem a história da Villa e consequentemente, do Bispo. Assim como o livro escrito pelo Bispo dá a conhecer trechos das tragédias perdidas de Eurípides, a tarefa dos pesquisadores é resgatar a história do prelado, e com ela, uma outra história a ela entrelaçada: a do livreiro Aurelio Valdese.

A metáfora dos cães de caça passa, no plano simbólico, a ser a própria figuração dos pesquisadores: cães farejadores que saem em busca de mínimos sinais e pistas que levem até à caça. Eles seguem todas as pistas possíveis: afrescos de parede, tradição oral, testemunhos, documentos, objetos e através do rastreamento de datas e fatos chegam a uma solução:

Mas nós farejávamos significados em qualquer coisa, imagem, palavra. Nosso divertimento, agora vejo bem, era encontrar significados para os objetos e palavras que a nossa busca tinha posto à luz.

Fica então a suposição de que o conhecimento é um emaranhado labiríntico que se torna torna possível ir desbastando para chegar a uma pretensa verdade. E que a história do conhecimento é uma história de poder, de intrigas, de mortes, de usurpação e de traição, mas também de paixão, de prazer. Além disso, a solução do enigma passa pelas figuras do poeta e da lira: os dedos do poeta devem dedilhar as cordas da lira de Erato . Não por acaso Erato é a musa da poesia lírica e amorosa. É como se o narrador, o estrategista, o construtor de enigmas apontasse para a instância escritural e através de uma piscadela irônica confirmasse que sua narrativa é uma construção que rende tributo, essencialmente, à paixão. À paixão de saber. Ou à lira de Erato que, dedilhada pelo poeta desvenda o enigma e se encaminha para o que o jovem Torless pretendia fosse a verdadeira sabedoria: não haver enigma nenhum.

NOTAS

1.PESSOTTI, Isaías. Aqueles cães malditos de Arquelau . p. 31.

2. Idem, ibidem, p. 213.

BIBLIOGRAFIA

PESSOTTI, Isaías. Aqueles cães malditos de Arquelau . São Paulo: Editora 34, 1993.

KOTHE, Flávio. A narrativa trivial . Brasília: Editora UNB, 1994.


Buscar en esta seccion :