49 Congreso Internacional del Americanistas (ICA) |
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Quito Ecuador7-11 julio 1997 |
Carmen Lucia Tindó Ribeiro
Nas águas da memória, a releitura do passado
Por: Carmen lucia tindó ribeiro secco
Atualmente, mesmo os países do Terceiro Mundo estão ingressando na política de globalização que rege toda a economia mundial . Aprisionados a uma economia interplanetária e multinacional, esses países se tornaram cada vez mais dependentes das grandes potências.
Com a chamada "crise das utopias", há um apagamento dos antigos paradigmas ideológicos. A figura dos líderes revolucionários tornam-se esmaecidas. Os heróis das vanguardas políticas, dos movimentos de libertação popular que, nos anos 60, se apresentavam como personagens singulares construtoras da história, cedem lugar às corporações anônimas, às grandes empresas de redes internacionais, nas quais, geralmente, o individual se dissolve no coletivo e o nacional se transnacionaliza. Na nova conjuntura globalizante, os grandes temas, as grandes causas têm seus sentidos esvaziados. O esfacelamento das "verdades", da ética, da liberdade provoca a dormência dos valores morais nessas sociedades do final do século XX. As grandes potências, saturadas das inovações da informática, jogam seus produtos nos mercados dos países periféricos, havendo, desse modo, uma hipertrofia da memória nessas sociedades.
Entretanto, a América Latina e a África, com suas múltiplas faces culturais, prenhes de tradições e mitos, podem ainda impor suas respectivas presenças no cenário mundial, desde que resgatem suas diferenças, empreendendo uma luta , através de palavras e ações, contra alguns dos cânones globais impostos pelo neoliberalismo no campo cultural.
Homi Bhabha e Edward Said, teóricos atuais dos tempos pós-coloniais, defendem que identidades puras são inexistentes e, por tal razão, postulam a valorização das heterogeneidades, ou seja, o contato entre as culturas, o diálogo das diferenças, a volta crítica ao passado. Segundo esses críticos, a diferença não pode ser tratada como elemento monológico e exótico, mas deve ser pensada de modo dialógico. Tanto a África, como a América Latina constituem-se de pluralismos culturais que devem ser respeitados e concebidos sempre de forma interativa.
Dentro dessa perspectiva, Bhabha e Said postulam uma nova eticidade política a ser engendrada pelo viés do multiculturalismo para que tanto a África, como a América Latina se reconstruam e afirmem, pelo jogo entre presente-passado-futuro, as especificidades múltiplas de seus respectivos imaginários sociais mesclados pelo contato, através dos séculos, com culturas várias . Essa nova eticidade pode ser alcançada por intermédio da literatura e, em especial, de um discurso que, de forma viva, recupere as raízes sócio-culturais de cada povo.
Uma cultura que perde a memória ou a dissolve não pode construir um futuro. É essa também a opinião de Edward Said, para quem
a invocação do passado constitui uma das estratégias mais comuns nas interpretações do presente . O que inspira tais apelos não é apenas a divergência quanto ao que ocorreu no passado e o que teria esse passado, mas também a incerteza se o passado é de fato passado , morto e enterrado, ou se persiste, mesmo que talvez sob outras formas.1
Nossa comunicação pretende, então, analisando o conto Náusea , de Agostinho Neto, e o romance Os Rios Profundos , de José María Arguedas, mostrar que , sob as dobras do tecido literário, muitos mitos persistem, legando aos leitores o conhecimento do passado.
A partir das metáforas líquidas , a do mar, no texto de Agostinho Neto, e a dos rios, no romance de Arguedas, nossa leitura propõe um mergulho nas águas míticas do outrora para a revisão crítica da história e para a afirmação das diferenças africanas e latino-americanas esmaecidas por séculos de opressão e descaracterização cultural.
O romance Os Ríos Profundos se inscreve na ótica memorialista da literatura indigenista que constitui uma das vertentes da ficção latino-americana. O protagonista, Ernesto, é o narrador dividido, cuja linguagem revela o confronto de duas culturas que até hoje coexistem , em conflito, no Peru : a branca e a indígena. Embora fale o espanhol, é o idioma quíchua que lhe desperta a memória emotiva do passado, pois, em sua infância, quando o pai, por problemas políticos, viajara e o deixara com parentes, ele, descontente com os maltratos dos familiares, fugira para um ayllu , ou seja, uma comunidade indígena dos tempos pré-incaicos ainda existente nas regiões andinas . Nesse espaço, onde viveu até os quatorze anos, recebeu carinho e aprendeu a cultuar os ritos indígenas. Por isso, mais tarde, ao viver, no Colégio interno, sente saudade desse passado.
A narrativa se tece em vários planos, através dos quais o protagonista vai cruzando seu outrora com o da história peruana. Recorda as viagens feitas com o pai a Cuzco, os tempos de adolescência no colégio interno, a infância primeira onde aprendeu a amar as tradições quíchuas.
É interessante frisar que, o tempo todo, o processo de construção memorialista do protagonista-narrador evidencia as relações entre as injustiças dos tempos da conquista e as do presente vivido pelo protagonista.
Na adolescência, ao presenciar as discriminações em relação aos índios, Ernesto se revolta e chora junto ao lago e ao rio que se localizam na região do Colégio. Sua atitude revela uma profunda identificação com as crenças indígenas animistas, pois, segundo essas, os rios e lagos são concebidos como espaços divinizados, canais por onde se efetua a comunicação com os antepassados. Esses locais apresentam, portanto, uma conotação mitológica que o romance de Arguedas busca recuperar. Os dois rios, que, espacial e simbolicamente, atravessam a narrativa, têm a sua geografia, inclusive, relacionada à construção memorial do protagonista-narrador. O rio Apurímac, perto de Cuzco, e o Pachachaca, próximo do colégio, dividem os espaços em torno dos quais se tece o relato de Ernesto . O primeiro traz as recordações das viagens andinas feitas com o pai ; o segundo, as lembranças tristes do internato. O Pachachaca é o refúgio de Ernesto; ali chora as saudades do pai e reencontra a memória subjetiva da infância passada junto aos índios.
A análise da significação dos nomes desses dois rios citados por Arguedas amplia a interpretação da tessitura mítica subjacente ao romance. Apurímac significa oráculo, o que fala com os deuses; simboliza, pois, o elo que dá passagem ao tecido arqueológico das origens. Já o Pachachaca, significando ponte sobre o mundo , atua nesse mesmo campo semântico, trazendo lembranças remotas que a colonização fez esquecer. Ponte sobre o tempo , esse segundo rio faz emergir a memória indígena. Esta, metaforizada pela imagem dos rios profundos, refere-se àquilo que flui nas profundezas, nas subjacências da História. Uma história de sangue fervente a brotar das veias abertas da América...
No texto Náusea, de Agostinho Neto, as águas também estão relacionadas ao universo mítico das origens africanas e à memória da história angolana. Só que, nessa narrativa, as águas não são fluviais, mas marítimas. É o mar que provoca a náusea no personagem principal, o velho João, despertando-lhe lembranças antigas provocadoras da crise existencial que ativa a consciência social da personagem. O mal-estar causado pelo nauseabundo cheiro da maresia cria um estranhamento, desencadeia a náusea ( uma alusão, também, às marcas do existencialismo sartreano presente no texto...) .
O mar em Agostinho Neto é metáfora do imaginário mítico e da história. Uma história de odores pútridos. O olhar dissonante do velho João em relação ao progresso e ao asfalto o leva à beira-mar. O balanço das marolas provoca-lhe um enjôo, fazendo-o devolver o almoço. Mas o vômito não é apenas físico. Metaforicamente, também significa um vomitar de mágoas antigas: pessoais e coletivas. Velho João olha as ondas e lhe vem a imagem de Kalunga, mito africano que significa o mar e a morte. Voltam , então, à sua memória a imagem da mulher que morreu de parto a cheirar mal como a maresia, as lembranças remotas de negros chicoteados nos navios negreiros, a recordação do primo Xico que afundou em seu barco e desapareceu sob as águas marítimas. Uma poética de cheiros e odores acres exala do texto. A alegoria da náusea revolve os mares da memória e da história. O passado volta e o narrador faz uma catarse dos sofrimentos vividos por Angola. Olha o presente e denuncia as contradições existentes entre as casas do asfalto e as cubatas cobertas de latas.
Esse texto de Agostinho foi escrito na década de 50, em plena época de utopias e nacionalismos. O de Arguedas, também. Qual a importância deles, então, hoje, quando as sociedades do Terceiro Mundo vivem as distopias revolucionárias e ingressam na economia de mercado?
A resposta é : continuar a provocar nos leitores a náusea, o estranhamento para que as diferenças sejam possíveis pelo conhecimento dos mitos, da história e das tradições presentes e passadas.
A América Latina e a África, para terem acesso a uma maior projeção política no mundo contemporâneo, entre outras medidas, devem afirmar, através da valorização do multiculturalismo, a construção de suas próprias identidades mestiças, feitas de diferenças e singularidades.
É trabalhando a literatura nas escolas e universidades, fortalecendo o ensino de seus mitos, de suas tradições e de suas falas populares que esses continentes, considerados marginais na atual economia de globalização, poderão ultrapassar as dissemetrias culturais provocadas pelo impacto oriundo da imposição de uma nova ordem mundial.
NOTA:
SAID, E. (1995) p.11.
BIBLIOGRAFIA :
AGOSTINHO NETO, António. Náusea. In: SANTILLI, Maria APARECIDA. Estórias Africanas. SP: Ática, 1985.
ARGUEDAS, José Maria. Os Rios Profundos. Buenos Aires, Editorial Losada, 1953.
BHABHA, Homi. A Questão do outro: diferença, discriminação e o discurso do colonialismo. In:
HOLLANDA, Heloísa Buarque de . Pós-modernismo e política . Rio: ed. Rocco, 1992.
CHAUÍ ,Marilena. Jornal do Brasil . Caderno Idéias. Rio: 8-4-91.p.6.
FERREIRA, Manuel. Literaturas africanas de expressão portuguesa. SP: Ática, 1987.
HABERMAS, J. Conhecimento e interesse . Rio : Ed. Zahar, 1980.
SAID, Edward. Cultura e imperialismo. SP: Companhia das Letras, 1995.
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