49 Congreso Internacional del Americanistas (ICA)

Quito Ecuador

7-11 julio 1997

 

Hector Luis Saint-Pierre

49 CONGRESO INTERNACIONAL DE AMERICANISTAS

SIMPOSIO: UNA CULTURA DEMOCRATICA PARA AMERICA LATINA: CULTURA, GOBERNABILIDAD, DEMOCRACIA Y SEGURIDAD

Título de la ponencia

Impacto da transição democrática sobre a concepção estratégica brasileira.

Autor : pROF. DR. HECTOR LUIS SAINT-PIERRE

PONTIFICIA UNIVERSIDAD CATOLICA DEL ECUADOR

-jULIO 1997-

RESUMEN

Resumo: Procuramos desenvolver uma ferramenta conceitual para estudar estratégias diferentes (sincronicamente) ou o desenvolvimento da mesma (diacronicamente). O resultado foi um modelo "tipológico" de nove categorias epistêmicas que, aplicado a distintas concepções estratégicas, permitiria compará-las, clasificá-las e ordená-las. A modo de ilustração, aplicamos o modelo a duas construções estratégicas possiveis na realidade brasileira.

Palavras chaves: Brasil, Militares, Forças Armadas, Estratégia.

Abstract: We tried to develop a conceptual tool in order to study different strategies (synchronically) or its development (diacronically). It resulted in a "typological" model with nine epistemic categories that, when applied to distinct strategic conceptions, allowed us to compare, classify and organize them. As an illustration, we applied such model to two distinct feasible strategic construction linked to Brazilian conditions.

Keywords: Brazil, Militaries, Armed Force, Strategic.

Impacto da transição democratica sobre a concepção estratégica brasileira.*

Héctor Luis Saint-Pierre**

INTRODUÇÃO

Desconhecemos a existência de estudos sobre a História da Estratégia no Brasil. Uma tal história exigiria, além do óbvio interesse do pesquisador, o conhecimento de algumas áreas técnicas acessórias. Aquele que se aventure nestas regiões epistêmicas deverá conhecer, minimamente, a Teoria da Guerra, a Teoria da Estratégia e, preferentemente, possuir alguma informação sobre armamento bélico. Mas o grande preconceito que os temas militares, de Estratégia e de armamentos ainda gozam nas nossas universidades, vem postergando injustificadamente esta necessária empreitada da historiografia brasileira.

Há inteletuais que imaginam que escolher Militares como tema de estudo significa compactuar com eles. Parece que ainda não compreenderam que só conhecendo e reconhecendo os militares como atores políticos históricos é que poder-se-á evitar, ou pelo menos limitar, sua intervenção intempestiva nos assuntos políticos nacionais.

Neste trabalho formulamos um modelo para analisar concepções estratégias. Com ele pretendemos, por um lado, fornecer uma ferramenta básica para aqueles que se aventurem no projeto de historiar o desenvolvimento da estratégia brasiliera e, por outro, insentivá-los a que o fazam. A utilidade desta ferramenta conceitual, se tiver alguma, consistirá em permitir comparar, em relação ao modelo construido, diferentes momentos da formulação estratégica brasileira sobre um corte diacrónico ou de esta com a de outro pais sincrónicamente. Em relação aos militares, imaginamos que o modelo possa auxiliar a compreender um pouco mais a natureza específica deste ator tão particular de nossa história.

Tomando como base empírica algumas amostras da produção bibliográfica referente ao problema militar, à visão geopolítica brasileira, ao tema dos militares na constituinte e ao pensamento estratégico nacional, pode-se notar, e tentaremos mostrar, a existência de um corte epistemológico1 que indicaria a presença de duas teorias ou "programas de pesquisa"2 conflitantes.

Focalizamos esta ruptura através dos critérios de "razão" implicados, pois eles são os alicerces de construções epistemológicas antagônicas, das quais resultam teorias estratégicas adversárias3. Com este propósito reunimos os elementos polares desta fratura em dois blocos bibliográficos.

O primeiro corresponde, aproximadamente, ao período que vai dos anos 50 até fins dos 70, continuando com alguma força até nossos dias. Nele constatamos que suas categorias se articulam sobre um critério de "razão dogmática". Com efeito, sua epistemologia se estrutura sobre critérios de verdade assertóricos, de proposições consideradas inquestionavelmente verdadeiras, chamadas "princípios", "dogmas" ou "diretrizes", sobre as quais toda controvérsia é rejeitada. O resultado é uma epistemologia autoritária, impermeável a toda crítica que questione seus princípios, métodos ou resultados.

O dogmatismo epistemológico é a característica deste pólo da fratura que chamaremos de "Concepção Estratégica Oficial" (CEO). Seu "paradigma" estaria contido no manual de Escola Superior de Guerra (ESG), com matriz na Doutrina da Segurança Nacional (DSN) e "América-Latinizada" nos relatórios das Conferências dos Exércitos Americanos.

Seria um grave erro supor, entretanto, que por se tratar de um programa de pesquisa "oficial", o trabalho teórico cotidiano (dito "normal") dentro do âmbito desta concepção estratégica, se desenrolaria monoliticamente, de maneira unívoca. O que em realidade se constata é a presença de várias correntes internas lutando pelo predomínio teórico. Porém, essa luta limita-se a questões periféricas (em relação à teoria), pois está metodologicamente impedida de penetrar nas teses de fundo ou princípios doutrinários. Chamamos este grupo de axiomas básicos de "núcleo duro" da teoria, com respeito ao qual todas as proposições se alinham.

O outro polo começa a aparecer na segunda metade da década dos anos 70, inicialmente de maneira tímida, para já nos anos 80, manifestar-se (ainda que por um reduzido número de pesquisadores) de maneira mais sistemática. Embora possam ser encontrados trabalhos anteriores, a maior parte das publicações é recente. Seria incorreto falar de um pensamento homogêneo entre esses autores, mas é certo que existe o grau de concordância e acordo necessários para reconhecer um "paradigma" comum, que chamaremos de "Concepção Estratégica Alternativa" (CEA).

Diferentemente da CEO que partia de dogmas inquestionáveis, a CEA recusará metodicamente toda proposição que não tenha sido submetida ao debate e à crítica. Um axioma ou principio poderá ser considerado "razoavelmente plausível" (já não mais verdadeiro), na medida em que consiga sair vitorioso da crítica a que necessariamente deverá ser submetido. O critério de verdade inapelável da CEO é substituído pelo critério da "contrastação crítica". Este novo critério coloca a CEA num estatuto epistemológico radicalmente oposto ao da CEO. O critério subjacente à CEA é o de "razão crítica", determinando uma epistemologia que, em oposição àquela da CEO, chamaremos de "democrática".

A partir destes critérios diferenciadores, ambas as concepções se estruturam com categorias distintas e, em muitos casos, contrárias. Caracterizamos a ruptura epistemológica listando essas categorias conforme seu "alinhamento paradigmático", tentando mostrar que sua inscrição em paradigmas opostos e antagônicos constitui um corte que confronta dois critérios de razão: o dogmático - que dominará uma epistemologia autoritária, e o crítico - que funda uma epistemologia democrática.

Para analisar as concepções estratégicas desenvolvemos um instrumental teórico que permitisse modelá-las e compará-las. Para isso tratamos a concepção estratégica " como se " fosse uma teoria científica. Nesta distinguimos seu "núcleo duro", seu "cinto protetor" e sua área de tarefa explicativa "normal". O resultado foi um modelo "tipológico" de nove categorias4 que, aplicado a distintas concepções estratégicas, permitiria compará-las, classificá-las e ordená-las. Para ilustrá-lo, mostramos como são abordados, desde as duas concepções, as mesmas variáveis estratégicas. Assim, para cada variável, apresentamos primeiramente a visão da CEO para em seguida, colocar a abordagem da CEA.

I.- CATEGORIAS CENTRAIS / NÚCLEO DURO

Na conceituação da CEO.

O "núcleo duro" da CEO se localiza muito próximo da Doutrina da Segurança Nacional (DSN). Esta é uma das teses mais importantes da CEO e que estrutura as demais. Na gênese desta doutrina podem-se detectar três fontes principais: 1) a origem norte-americana (que determina o caráter "extra-nacional") da doutrina, que se pode datar em 1945, com a formação do National War College , que forneceu o molde para a fundação da Escola Superior de Guerra (ESG) em 19495; 2) a influência da geopolítica , a partir da década do 30 através do capitão Mario Travassos e do prof. Everaldo Bockheuser, e mais recentemente dos generais Golbery de Couto e Silva e Meira Matos, que desenvolvem simultaneamente geopolítica e DSN. A relação entre geopolítica e a DSN não é casual. Para Shiguenoli Miyamoto aquela serviu para dar "forma consistente" a esta6. Um conceito fundamental que a DSN tomou da geopolítica é a divisão maniqueísta do mundo entre Ocidente e Oriente; 3) igualmente importante é o aporte do pensamento autoritário . Os que reivindicam o caráter "genuinamente nacional" da DSN frisam este aporte, que atribuem fundamentalmente a Oliveira Viana e Alberto Torres.

Na conceituação da CEA

Embora não encontremos um pensamento único e monolítico na CEA, achamos que a diversidade constitui, precisamente, uma das características mais importantes da posição alternativa. Seus representantes se distribuem desde as posições mais pacifistas (propondo a desmilitarização total da região), até as perigosamente próximas à CEO. Ainda assim, consideramos que é possível definir um paradigma comum a todos eles. Seu "núcleo duro" seria a estrita subordinação das Forças Armadas ao poder constitucionalmente estabelecido e o controle democrático das mesmas. Se referindo à autonomia e ao papel tutelar das Forças Armadas, João C. Quartim K. de Moraes diz que "... os estudos recentes sobre as funções das Forças Armadas no Brasil apresentam notável convergência a respeito de ao menos duas questões essenciais: sua posição no aparelho de Estado e sua relação com o poder político central"7.

II.- RELAÇÃO DAS FORÇAS ARMADAS COM O ESTADO

Para a CEO: Autonomia

Esta é uma característica chave da CEO: a autonomia das Forças Armadas em relação ao Estado, enquanto projeto, orçamento, formação dos quadros e objetivos estratégicos. Eliézer R. de Oliveira assim a define: "... trata-se da capacidade do aparelho militar, em seu conjunto, (de) definir, com grande independência em relação aos demais setores e atores do Estado e da sociedade, seus próprios objetivos políticos, estratégicos e materiais"8.

O problema da autonomia militar está estreitamente vinculado ao monopólio da força que, por definição9, deveria ser exercido com exclusividade pelo Estado. A separação entre a força e o governo agigantou-se durante a luta armada com que a esquerda contestou o regime autoritário instalado em 1964. A urgência em aniquilar a oposição armada e anular o espaço político dos partidos de esquerda, levou o governo militar a deslocar o centro decisório do âmbito do político para a área de operações militares. Esse deslocamento, em princípio tático, viu-se justificado pela necessidade de eliminar o "inimigo interno" e consolidar o regime. Porém, uma vez eliminado todo resíduo de resistência, o controle permaneceu instalado na instância militar. Assim, o que em princípio foi considerado tático transformou-se em condição de possibilidade de garantir a exequibilidade das iniciativas tendentes a satisfazer expectativas e interesses especificamente corporativos.

O exercício do monopólio da força permitiu que as Forças Armadas impusessem uma "nova ordem" social: a sua ordem. Tudo feito de maneira arbitrária, como diz René Armand Dreifuss, "... esquecendo que a cidadania bem pode visualizar, almejar e vivenciar outras versões do que seja ordem, comportamento político, regulamentação jurídica, composição produtiva e atitudes sociais disso decorrentes"10.

Na hora de transferir o poder aos civis, as Forças Armadas escamotearam seu domínio sobre o monopólio da força, intentando garantir seus privilégios e manter sua influência política. Manter, dentro do mesmo Estado, o controle da força escindido do centro das decisões políticas, gerou duas fontes de poder independentes (o que se poderia caracterizar como "esquizofrenia do Estado"). Por outro lado, essa autonomia restringiu o âmbito de discussão dos objetivos estratégicos, impedindo a sociedade civil de influir nas decisões. Liberada da crítica, a CEO conseguiu impor sua visão ao governo, o que foi facilitado pela histórica omissão civil a respeito das questões estratégicas e militares11.

Para a CEO, sem autonomia, as Forças Armadas perderiam, por um lado, seu peso no processo decisório (o que, para elas, colocaria sérios riscos a seus projetos para o pais) e, por outro, enfraqueceria sua capacidade de controle sobre a disputa política. Assim, esta poderia chegar a níveis que comprometeriam a ordem que para a CEO é o fundamento da democracia. A perda de sua autonomia significaria não poder intervir na cena política quando a "esquerdização" da disputa "colocasse em risco" o processo democrático. Para a CEO, a estabilidade política só pode ser garantida com a autonomia das Forças Armadas.

A tese da autonomia das Forças Armadas dentro do Estado pertence ao "cinto protetor" da teoria da CEO. Ela impede a discussão dos postulados estratégicos. O abismo entre as Forças Armadas e a sociedade civil permite, por um lado, que a CEO possa manter intacto e invulnerável seu santuário teórico, que a inquestionabilidade de seus princípios, axiomas e objetivos permaneça inabalável, em suma que o "núcleo duro" doutrinário fique aberto exclusivamente às Forças Armadas, as quais se constituem em guardiãs da "verdade" naquele contida.

Para a CEA: subordinação.

Para a CEA, o sistema democrático exige que o Estado exerça o monopólio legítimo da violência, dentro das normas legais, éticas e políticas. A responsabilidade pelo uso da força é exclusiva do governo legítimo. Garantir aquelas normas justifica que o grupo governante administre com exclusividade o monopólio da força dentro de seu território.

Das discussões políticas e acadêmicas sobre este tema, transparece a desconfiança com relação à eficácia de dispositivos legais constitucionais que viabilizem e garantam a transferência do monopólio da força12. Políticos e intelectuais duvidam que as Forças Armadas aceitem a sua subordinação apenas pela coerção de instrumentos constitucionais. Manifestando este ceticismo, E. de Oliveira (1987a, p 55) afirma que "A formulação constitucional não significará um impedimento suficiente se não for acompanhada de mudanças no plano da mentalidade e da prática política de militares e civis, do aparelho da força quanto dos aparelhos de hegemonia, consenso, conflito e negociação"13.

A garantia da liberdade política só pode ser mantida na medida em que seja desmontada a "espoleta" golpista. Isto implica em eliminar a "segurança interna" como preocupação militar. Obviamente a subordinação não é suficiente se não estiver acompanhada pela garantia plena da legitimidade do regime, que deverá ser procurada no consenso da sociedade, somada à capacidade de satisfazer, de alguma maneira, as demandas sociais.

Por sua vez, os civis deverão perceber e reconhecer que a subordinação não poderá ser imposta às Forças Armadas, pois a subordinação forçada é sempre ilusória e precária, mas sobre tudo transitória. Pelo contrário se o objetivo é a "eficácia" da subordinação, esta deverá ser não apenas aceita, mas também procurada pelas próprias Forças Armadas. Para que seja um objetivo claro e almejado por estas, coloca-se como necessário um diálogo aberto, sincero e democrático com a sociedade.

III.- RELAÇÃO ENTRE ESTRATÉGIA E GEOMETRIA GLOBAL .

Para a CEO: Subordinação estratégica .

A subordinação estratégica da CEO é rigorosamente determinada, pois ela é a regionalização de uma estratégia "global". Este aspecto é superficialmente tratado no item dedicado à Segurança Coletiva no Manual Básico da ESG (pp.215-216), onde o ex-presidente Castelo Branco o aborda como uma complementação da Segurança Nacional: "A defesa tem de ser necessariamente associativa", pois "... fizemos uma opção básica, da qual decorre uma fidelidade cultural e política ao sistema democrático ocidental".

Uma vez aceita a premissa geopolítica da configuração bipolar de forças e o princípio de "defesa global", o Brasil ficou inserido no espaço geopolítico dos Estados Unidos, como parte instrumental de sua política. É o chamado "alinhamento automático", que o Gal. Golbery do Couto e Silva (1981, P.239) propõe na seguinte passagem: "... o Ocidente teria de formular e infatigavelmente seguir uma estratégia bem coerente e coordenada em que se enquadrassem, devidamente, todos os Estados ocidentais, cada um de acordo com sua capacidade real, suas necessidades próprias, seu potencial de guerra efetivo e as peculiaridades de sua posição geopolítica...". O que de fato aconteceu foi que, dentro desse marco ideológico-estratégico, as iniciativas brasileiras foram reduzidas a seu próprio espaço geopolítico - um "subespaço", já que coincide com o dos Estados Unidos, com quem não têm condições de disputá-lo.

Dada a instabilidade flutuante da "periferia" do espaço de interesse das superpotências, que fazia fronteira entre os dois blocos de força, os Estados Unidos não podiam permitir alterações na ordem estratégica imposta no seu espaço geopolítico. Daí a resistência a qualquer intento de autonomizar estratégias no seu domínio. A ordem anti-comunista devia ser respeitada e obedecida por todos os países dentro de seu sistema de força, ainda que essa obediência os submergisse na fome, na miséria e no atraso.

O Brasil, enquanto elemento disponível dentro do dispositivo de defesa estratégico, não podia quebrar aquela ordem, mesmo porque nela pretendia ser um "parceiro privilegiado" e conseguir alguma vantagem. A expectativa da CEO ao manter-se nessa dependência estratégica, era de que os Estados Unidos reconhecessem para o Brasil o papel de "sub-hegemonia" regional.

Hoje as relações de força mundiais são outras. Os acontecimentos que puseram fim à guerra fria conseguiram uma façanha ainda maior: alteraram definitivamente o tempo político da história. Eventos que se imaginavam consequência de largos e penosos processos, hoje se sucedem vertiginosamente. Qualquer análise torna-se obsoleta antes mesmo de sua divulgação. Já não há modelo que se adapte adequadamente, nem teoria que explique a situação internacional na sua totalidade.

A partir da Segunda Guerra, quase todos os conflitos internacionais foram anulados ou subordinados ao conflito principal Leste-Oeste. Como exigência da estratégia da dissuasão, as áreas de atrito foram desarmadas para evitar que detonasse o conflito principal na sua variante nuclear. Gostemos ou não, devemos admitir que a precária paz alcançada neste meio século se deve fundamentalmente ao poder terrivelmente dissuasivo da bomba atômica. Porém, achamos que os conflitos "periféricos" ou secundários não foram resolvidos mas apenas postergados, abafados, e que, na medida que a tensão principal se atenue, eles reaparecerão. A ameaça de guerras religiosas, o ressurgimento do nazismo, as manifestações xenofóbicas, os movimentos separatistas, autonomistas, os problemas raciais e étnicos, contenciosos fronteiriços, os sentimentos nacionalistas, etc., são as primeiras emanações da caixa de Pandora que está se abrindo.

Seja como for, desde que o conflito Leste-Oeste se desmantelou, a CEO perdeu a premissa principal de sua formulação estratégica. A situação internacional atual deixa a descoberto a dificuldade desta concepção para formular estratégias nacionais de maneira autônoma. A necessidade de encontrar um conflito plausível para justificar sua função, está levando as Forças Armadas a verem antropólogos, índios, ecologistas, narcotraficantes e crianças de rua como possíveis inimigos do amanhã. A partir destes "óbices", pretendem formular sua concepção estratégica, novamente, sem consultar a sociedade. Os intentos de racionalizar, mediante o debate, objetivos estratégicos que atendam interesses nacionais são evitados. Esses interesses poderiam alterar a ordem estratégica da CEO, o que seria inadmissível para o dogmatismo inerente a esta concepção.

Para a CEA: Autonomia Estratégica.

Se a CEO desenvolvia sua estratégia geopoliticamente, determinando sua subordinação ao dispositivo estratégico norte-americano, a CEA procura fundamentar sua pretendida autonomia sobre a crítica ao princípio geopolítico, não enquanto análise , mas enquanto determinante das prioridades estratégicas . A CEA pretende uma concepção estratégica atenta às necessidades e interesses nacionais, consideradas as potencialidades do país. Recusa, portanto, concepções estratégicas dadas de antemão, como decorrentes de configurações geopolíticas ou de geometrias de força impostas.

Dada a situação geopolítica do Brasil, reconhecido seu espaço de ação, admitida a coincidência deste com a área de interesse norte-americano, é evidente que o Brasil não pode administrar soberanamente seus interesses na região se não puder, chegado o caso, defendê-los com eficácia.

Se os interesses brasileiros fossem resultantes do consenso, como pretende a CEA, a estratégia para garanti-los não poderia estar atrelada a geometrias dadas de antemão . A subordinação reduziria seu próprio espaço de ação face ao dispositivo estratégico norte-americano na região, e, com essa redução, a defesa dos interesses nacionais deixaria de ser efetiva.

Para que os interesses nacionais sejam soberanos, a estratégia deverá ser autônoma em relação a configurações previamente determinadas. A estratégia só pode ser formulada a partir da determinação dos interesses. Qualquer compromisso prévio implicaria, em primeiro lugar, um balizamento na procura do consenso, colocando em crise a pretendida "independência" dos interesses, e, em segundo lugar, uma diminuição do espaço de ação, pondo em risco a realização daqueles.

A independência dos interesses nacionais só é possível com autonomia estratégica e vice-versa. A autonomia estratégica é, simultaneamente, fim e meio. Meio, no sentido de ampliar o espaço de ação, fim, enquanto garantia da independência dos interesses nacionais. Essa garantia não depende apenas da força militar, mas também da base industrial, da capacidade científico-tecnológica e da redução das vulnerabilidades internas decorrentes do subdesenvolvimento.

IV.- POSIÇÃO NO SEU ESPAÇO DE INTERESSE.

Para a CEO: Hegemonia.

Na CEO, o conceito de hegemonia tem um lugar preponderante. O crescimento nacional só é possível garantindo a hegemonia regional. O exercício dessa hegemonia é tanto o meio quanto o objetivo da projeção desse crescimento.

Para esta concepção, a relação entre países é sempre determinada hierarquicamente pela projeção hegemônica. A questão consiste, então, em determinar que país dentro da região passará a exercer maior influência econômica, política, cultural, e, sobretudo, militar, para impor e garantir essa presença regional. Desde esta ótica, os países vizinhos são competidores ou adversários que se opõem à realização da "vontade nacional", são considerados como "inimigos potenciais". Embora os pensadores da CEO não ignorem a hegemonia norte-americana nesta parte do mundo, consideram possível uma, digamos, "sub-hegemonia" regional.

Dado que o espaço geopolítico brasileiro coincide com o dos Estados Unidos, a CEO se debate ante duas possibilidades que levem o país a exercer a ansiada hegemonia regional: ou por consentimento da Super-potência - o que implicaria se inserir-se no dispositivo estratégico norte-americano -, ou por confronto com ela, numa relação de força desproporcionalmente prejudicial para o país. Na visão da CEO tal enfrentamento é ideologicamente inadmissível e militarmente indesejado.

Para a CEA: Desenvolvimento Autônomo.

O desenvolvimento nacional autônomo vem substituir de algum modo a noção contraditória de "sub-hegemonia". O desenvolvimento autônomo visará ganhar autonomia estratégica dentro da esfera de ação norte-americana. Como o objetivo estratégico consiste sempre em aumentar o espaço de ação próprio, diminuindo as pressões que se oponham a sua realização, o desenvolvimento nacional procurará aumentar seu raio de operação diminuindo a influência norte-americana na região.

Esta categoria está intimamente vinculada à "autonomia estratégica", pois o projeto de construção da potência não pode ir atrelado à estratégia norte-americana global, já que fere seus interesses. Portanto, a concepção estratégica que pretenda o crescimento da nação a nível de potência, procurará sua "autonomia" como condição de possibilidade de sua própria existência.

O desenvolvimento nacional autônomo exige o crescimento econômico, cultural e científico-tecnológico. Obviamente, essa exigência requer um desenvolvimento análogo das Forças Armadas para transformá-las em capazes de respaldar e assegurar o crescimento autônomo daquelas potencialidades. O desenvolvimento autônomo, especialmente científico-tecnológico, fere os interesses das potências que dominam as pesquisas de ponta no mundo. Portanto, só com vontade política e o respaldo e garantia de Forças Armadas capacitadas e competentes, será possível o crescimento e livre desenvolvimento nacional para a criação da potência.

V.- CATEGORIA ESTRATÉGICA BASE.

Para a CEO: Inimigo.

Para a CEO não é possível pensar estrategicamente sem a idéia do inimigo14, seja ele interno ou externo, atual ou potencial. O interno é configurado por qualquer política nacional que se oponha ao "projeto" estratégico-militar da CEO, e é resolvido no marco da DSN15. O inimigo interno foi considerado pela CEO como a internalização do conflito Leste-Oeste.

Toda política contrária ao projeto da CEO foi considerada por ela como "ideologia forânea" ou também "espúria". Qualquer contestação é tomada como uma "provocação" ou como um "intento de desestabilização", e independentemente de quem seja o responsável (pode ser até a Igreja), é atribuído ao acionar do Comunismo Internacional, "empenhado em conturbar a paz e a ordem internas". Nestes elementos Golbery do Couto e Silva (1981, P.236) vislumbrava a "cabeça-de-ponte vermelha".

Contra esse inimigo a luta foi traçada tanto no plano jurídico quanto no militar. Exemplos do primeiro caso são o AI-5, a lei de regulamentação das greves, etc. No segundo caso, a metodologia foi muito variada, desde prisões até sequestros, tortura e morte; desde ameaças de golpe de Estado até atentados terroristas. A definição extensiva de inimigo interno abarca os PCs, PT, PDT, no âmbito dos partidos políticos; algumas centrais na área sindical; e pode-se contar a O.A.B., a ala progressista da Igreja e outras organizações de base no campo social.

Esta categoria central da CEO representa claramente o caráter dogmático e autoritário da doutrina. A tese do inimigo interno constitui o mais poderoso elo do "cinto protetor" do núcleo duro da teoria. Qualquer ataque ou crítica cai na categoria de "inimigo", sendo neutralizado ou eliminado, seja falaciosamente, ao desautorizá-lo como ideologia forânea, seja por meios menos retóricos.

O inimigo externo pode ser qualquer Estado que ameace (ou possa ameaçar) direta ou indiretamente o projeto de hegemonia regional da CEO. Assim os países vizinhos, especialmente a Argentina, eram considerados "inimigos potenciais", entrando como "hipótese de guerra" nas especulações estratégicas da CEO. Esta hipótese é chave na justificação de aumentos, e mesmo na manutenção do orçamento militar, pois assumir essa hipótese como provável significa contar com um ameaça externa e vizinha iminente. Por isso é necessário preparar-se militarmente para a possível defesa e retaliação.

Para a CEA: Interesse.

A substituição, na conceituação da CEA, da categoria de inimigo pela de interesse, permitiria pensar a estratégia em situações em que não existam inimigos potenciais, como é o caso atual. Toda oposição ao interesse da nação limitaria o espaço estratégico do Estado; como a estratégia procura aumentar o espaço de ação, tenderia a diminuir essa resistência, representando-a como inimigo.

Assim como na CEO a estratégia se estruturava a partir do conceito de inimigo, na CEA ocorre exactamente o contrário. O inimigo não pode ser anterior à manifestação do interesse, pois é a concepção estratégica, por referência ao interesse, que o define. Ele se configura enquanto oposição e resistência aos objetivos estratégicos determinados pelos interesses vitais.

VI.- FRENTE DE PROJEÇÃO ESTRATÉGICA .

Para a CEO: Cone Sul.

A frente principal de projeção estratégica da CEO é o Cone Sul. Isto é uma decorrência direta dos conceitos de "hegemonia" e de "inimigo". Sendo prioritária a hegemonia regional, sua frente estará constituída pelos países vizinhos com capacidade para ocupar essa posição. Estes se transformam em inimigos potenciais, em adversários regionais. Em função desta potencial hostilidade regional, o maior esforço estratégico estará destinado a preparar-se para neutralizar e devolver a ameaça.

Assim, as potencialidades da CEO estarão orientadas para superar vantajosamente o equilíbrio regional. Daí que tanto nas especulações estratégicas quanto nos exercícios militares, algum país vizinho seja considerado como "inimigo" na "hipótese de guerra". Dado que Uruguai, Paraguai e Bolívia, por sua baixa capacidade militar, não são caraterizados pela CEO como possíveis inimigos, se considerados isoladamente, já foi analisada como hipótese de guerra toda a gama de combinações possíveis (alianças) entre eles e Argentina.

Para a CEA: Projeção em função dos interesses.

Para a CEA, há duas frentes estratégicas possíveis: a América do Sul e o Atlântico-Sul. A manutenção das duas frentes no mesmo plano de importância, exigiria um sacrifício que o Brasil não está em condições de arcar16. Portanto, impõe-se a escolha entre as duas possibilidades para definir a frente principal, ficando a outra relegada a frente secundaria. O tipo de razão subjacente a esta categoria se manifestará, precisamente, no critério de decisão. Este deverá considerar dois aspectos: a avaliação dos focos de instabilidade nas respectivas frentes e a consideração democrática das necessidades nacionais.

A frente sul-americana, que a CEO considera principal, não apresenta focos de instabilidade iminentes. É improvável que algum país vizinho venha a manifestar hostilidade no futuro próximo. Muito pelo contrário, os esforços diplomáticos e governamentais apontam para a integração como objetivo de relacionamento com os países da região. Os passos dados na relação bilateral Brasil-Argentina mostram a possibilidade de, na medida em que a desconfiança mútua (especialmente militar) seja afastada, transformar esta frente em frente de cooperação.

É provável também que, uma vez que as dificuldades que ainda ficam no caminho da integração sejam removidas, outros países da região venham a incorporar-se ao regime de cooperação regional. O esforço estratégico deverá dirigir-se no sentido de transformar esta frente numa frente de estabilidade permanente, isto é, em secundária.

Entretanto, a frente do Atlântico Sul (incluída sua projeção no Cone-Sul africano) se configura como um cenário estratégico instável. Concorrem para a instabilidade político-estratégica vários problemas ainda não resolvidos: a manutenção do conflito nas ilhas Malvinas e sua transformação numa fortaleza (talvez nuclear) de tropas britânicas na região, e, a instabilidade político, econômica e social endêmica no Cone Sul-Africano. A impossibilidade de se prever a eliminação a curto ou médio prazo destes fatores de instabilidade, as dificuldades de se tornar a região uma área de cooperação e, fundamentalmente, a necessidade de se garantir a defesa dos interesses brasileiros nessa região (frente marítima, mar continental, as bacias petrolíferas, tráfego e rotas marítimas, etc), tornam o Atlântico Sul prioritário como frente de projeção.

VII.- ESTRUTURA DAS FORÇAS ARMADAS

Para a concepção da CEO:

A lógica interna ao conceito de hegemonia obriga a CEO a calcular como provável a eventualidade de ferir interesses dos países vizinhos. Tomando como "hipóteses de guerra" um conflito com esses países, considerando que com eles o Brasil mantém uma imensa fronteira, resulta clara a necessidade de um exército de ocupação. Para viabilizar a estratégia decorrente de tal hipótese, os teóricos da guerra devem dispor de grande contingente de tropas. Isto implica deslocar, para as áreas de fronteira (especialmente do Sul), regimentos de infanteria e de blindados, os quais estarão equipados, preparados e em estado de prontidão.

Atento à hipótese do "inimigo interno", o Exército deverá contar com tropas adestradas e equipadas (especialmente para a luta contra-insurgente) para ocupar os pontos estratégicos e ruas em caso de instabilidade social aguda, "prontas a restabelecer a paz e a ordem internas". Com esse objetivo, grande contingente de tropas deverá permanecer em volta dos grandes centros urbanos.

O peso destas hipóteses, somado a fatos históricos, levam a força terrestre a desempenhar um papel hegemônico dentro da relação de força das Forças Armadas, determinando a política destas como um todo. É evidente a importância desta hegemonia na distribuição orçamentaria.

Para a concepção da CEA:

Com a mudança na projeção da frente estratégica que a CEA propõe, a estrutura atual das Forças Armadas, com essa correlação de força interna, resultaria totalmente inadequada e obstaculizante. De acordo com a frente de projeção estratégica proposta pela CEA, o que se coloca como urgente é uma profunda reestruturação das Forças Armadas. Para contar com uma resposta eficaz nesse espaço de ação, tanto a Marinha como a Aeronáutica, que desempenharão um papel preponderante na frente principal, deverão sofrer um incremento e uma modernização substanciais; concomitantemente, as forças terrestres deverão ser reduzidas também substancialmente.

Desincumbidas da "frente interna" (dissolvida no âmbito da política) e drasticamente reduzida sua presença na frente sul-americana (que passa a ser frente de estabilização), ela poderá, sem grande esforço orçamentário, ser modernamente equipada para constituir unidades de pronto deslocamento, em estado de prontidão, para agir com eficácia e rapidez em qualquer ponto dentro de sua área de interesse. A diminuição dos efetivos permitirá dispor mais racionalmente do orçamento para cobrir suas deficiências, aumentado assim sua capacidade operativa.

 

VIII.- CIÊNCIA E TECNOLOGIA.

Na visão da CEO: autonomia.

Para viabilizar seu projeto de hegemonia regional, a CEO pretende desenvolver projetos científico-tecnológicos na área de armamentos para obter supremacia estratégica com respeito aos países vizinhos. Entre estes projetos pode-se destacar o desenvolvimento nuclear17, os mísseis balísticos, o submarino nuclear, etc. Obviamente estes são prioritários para as Forças Armadas e não podem correr o risco de ser abandonados, nem sequer questionados.

Por isso, a CEO reclama uma Ciência e Tecnologia autônomas, de maneira que a aprovação de seus projetos não dependa dos vaivéns políticos. Que eles não sejam submetidos a discussão por organismos científicos, e muito menos pela sociedade civil, que normalmente mostra-se relutante à aprovação de projetos militares, geralmente fechados ao debate público. A CEO não tolera dúvidas, discussão nem críticas no seu âmbito teórico: ela não consegue lidar com a instabilidade. Estaríamos tentados a classificar esta atitude como irracional, mas, em realidade, é estritamente coerente com a estrutura da CEO, é a manifestação autoritária da racionalidade dogmática subjacente.

Na visão da CEA: vinculada.

Para desenvolver o pais e manter uma presença eficaz na sua área de interesse, a CEA prevê uma importante modernização das Forças Armadas que as coloquem à altura das concorrentes na sua frente de projeção estratégica, de maneira a proteger os interesses nacionais dos conflitos que sua autonomia possa gerar.

Esta modernização seria impensável sem o domínio de uma Ciência e Tecnologia acurada. Para a CEA, o desenvolvimento científico-tecnológico seria insuficiente se fosse apenas militar como na CEO. Pelo contrário, ele necessita cobrir dois importantíssimos aspectos estratégicos: em primeiro lugar, o desenvolvimento cientifico-tecnológico civil, visando diminuir as vulnerabilidades internas. Nesse sentido, os avanços do setor irão de encontro a setores sociais que, pelo seu atraso, debilitam ou mesmo inviabilizam o desenvolvimento nacional.

Para este objetivo, o desenvolvimento científico-tecnológico poderá contribuir formando profissionais altamente capacitados, criando e ampliando fontes de trabalho, aperfeiçoando o sistema de comunicação e de informática, de irrigação, de saúde, de transportes, etc. Em segundo lugar: esse mesmo desenvolvimento, vinculando iniciativas privadas, estatais e militares, é que proporcionaria os meios técnico-científicos necessários ao processo de reequipamento e modernização das Forças Armadas.

Assim, a CEA imagina uma estrada de desenvolvimento científico-tecnológico única, de maneira a aproveitar os avanços de suas vertentes civil e militar para o progresso do todo. Isto supõe a discussão e decisão democrática dos projetos de pesquisa e de investimento por parte da comunidade científica, no que se refere à exequibilidade dos mesmo, e por parte da sociedade civil, no que diz respeito às prioridades.

IX.- DEMOCRACIA.

Na CEO:

Seria tão injusto quanto falso ignorar a preferência da CEO pelo sistema democrático18. Ainda assim, preferir não é optar . Todavia, se detivéssemos a nossa análise na natureza do conceito "democracia" a que os teóricos da CEO fazem referência, depararíamos com uma série de características que apenas em alguma bibliografia muito parcial encontramos atribuídas ao conceito.

A democracia compatível com o corpus teórico da CEO é um sistema vigiado na sua ordem e na sua estabilidade. Aliás, a estabilidade política e social, por exemplo, é considerada uma condição sine qua non para seu funcionamento. No Manual da ESG, a manutenção da estabilidade é considerado um requisito para lograr a "Segurança Comunitária". Podemos aí ler (p. 213): "... será necessário que o Estado também garanta, dentro da comunidade, aqueles aspectos que dão estabilidade às relações políticas, econômicas e sociais", concluindo que "deve o Estado Assegurar a Ordem Pública dentro da qual estão situados a Segurança Individual e a Comunitária".

O jogo de forças resultante das divergências políticas, que constitui a dinâmica normal das democracias conhecidas, para a CEO configura uma intolerável ameaça. As crises de poder são manifestação do caos e a qualquer momento o gatilho da intervenção militar pode ser acionado para detê-la. Para a visão da CEO, a legitimidade do regime está diretamente relacionada com a sua estabilidade.

Na CEA:

Se para a CEO a democracia era um fim condicionado à estabilidade política e social, para a CEA constitui o perfil característico de toda sua formulação. Todas as características apresentadas pela CEA supõem o mais amplo debate de seus pressupostos, só possível dentro de um marco irrestritamente democrático.

Mas, atribuir à democracia apenas um aspecto metodológico é empobrecer seu significado real. Democrático é o método do processo decisório, mas também constitui a fonte de legitimação das decisões. Como forma de governo, é o fundamento da dinâmica interna da CEA. é também o meio para atingir os objetivos estratégicos: a realização plena das potencialidades da Nação e a satisfação das demandas sociais. Se, por um lado, a democracia é a forma de governo que possibilitaria o desenvolvimento do programa de pesquisa da CEA, por outro lado, a CEA é a sua guardiã e garantia.

Pouco temos para agregar à caracterização da democracia dentro da CEA que não tenhamos dito, pois ela impregna todas as categorias, dá consistência e sentido à estrutura epistemológica, de maneira tal que nos foi impossível não nos referirmos a ela quando tratamos separadamente daquelas. A democracia permeia a CEA tanto no aspecto metodológico, quanto no formal e, sobre tudo, no substantivo.

CONCLUSÃO .

Tentamos mostrar não apenas que podem ser formuladas concepções estratégicas diferentes e até opostas, mas também que ambas podem ser, desde o ponto de vista lógico, perfeitamente racionais e coerentes com seus princípios. Também que a racionalidade não é exclusiva da concepção das Forças Armadas, muito pelo contrario, essa racionalidade é discutível já que, como mostramos, ela é fundada num critério dogmático. Apenas mediante um amplo debate, discussão e crítica, onde a sociedade civil seja o ator principal, é que o equilíbrio racional da concepção estratégica do Estado será garantido. Note-se que o debate, a discussão e a crítica não tem apenas uma importância política, eles concorrem, também, como critérios metodológicos na CEA.

Cremos que ficou evidenciado que a sintonia entre as Forças Armadas e o sistema democrático depende, em alto grau, da concepção estratégica imperante. Igualmente relativo a ela é a situação das Forças Armadas dentro do aparelho do Estado.

Pensamos que na medida em que os temas aqui apenas esboçados sejam regularmente estudados, discutidos e reformulados pela sociedade civil e seus representantes, irão se aperfeiçoando as garantias do sistema democrático. Por outro lado, poderá ser definido com precisão o papel que cabe às Forças Armadas desempenhar nesse sistema.

Achamos que, embora a pesquisa tenha sido limitada e os resultados provisórios, podemos extrair algumas conclusões epistemológicas:

1- O método de se utilizar categorias de critérios de razão antagônicas para a análise epistemológica de concepções estratégicas pode ser útil e frutífero.

2- Através do uso categorial dos tipos de razão, cremos ter mostrado uma ruptura epistemológica na formulação de concepções estratégicas (não importando se elas são ou não atualmente implementadas; basta-nos a certeza da possibilidade de sua formulação e a probabilidade de virem a ser implementadas).

3- As categorias de razão podem ser úteis classificatoriamente, ordenando a produção bibliográfica referente ao tema da estratégia, conforme o critério de razão subjacente às teorias.

Com este trabalho não pretendemos resolver as questões elencadas. Mas achamos que o modelo proposto, com suas variáveis categoriais, pode fornecer uma agenda temática para ajudar a racionalizar as discussões que cercam estas questões. Estamos cientes de que o modelo não é completo, embora não seja essa sua pretensão. Temos certeza de que novas variáveis poderão ser abertas na medida em que as pesquisas o insinuem ou os debates o exijam. Alguns dos temas que estão começando a ser estudados, como meios de informação e opinião pública, ecologia e soberania, saúde pública, etc., poderão revelar sua importância como variáveis estratégicas e, nessa medida, se inserir neste modelo. Outras questões poderão ser deliberadas, juridicamente resolvidas, culturalmente assimiladas e finalmente abandonadas como variáveis. Estes aspectos, longe de falsear o modelo, o atualizam.

Notas

*.- Este artigo foi extraido do ensaio publicado no caderno Premissas Número 3, do Núcleo de Estudos Estratégicos da UNICAMP sob o titulo Racionalidade e Estratégias.

**.- Professor de filosofia e membro da diretoria do Centro de Estudos Latino Americanos (CELA) da UNESP\Franca, membro pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos da UNICAMP.

.- Por corte ou ruptura epistemológica entendemos o aparecimento de uma nova teoria científica (podendo ou não existir simultaneamente à anterior) fortalecida, enquanto programa de pesquisa, pelo abandono por parte dos cientista do velho programa e sua adesão e militância no novo.

2.- Consideraremos as concepções estratégicas como se fossem programas de pesquisa, achamos que esta visão facilitará a analise proposta. Utilizamos o termo "programas de pesquisa" no sentido que lhe dá Irme Lakatos em The Methodology of Scientific Research Programmes. Cambridge University Press. Um programa de pesquisa se compõe de a) um "núcleo duro" ou "núcleo firme" da teoria, que são os princípios ou leis da teoria. Este núcleo é tenazmente protegido das refutações mediante b) um poderoso "cinto protetor" de hipóteses auxiliares. Também conta com c) uma heurística, isto é, uma eficaz maquinaria para a resolução de problemas, que assimila as anomalias e, inclusive, as transforma em evidências positivas.

3.- Quem entenda que a ciência é conhecimento verdadeiro ou que reclame dela a infalibilidade, achará o exposto um verdadeiro absurdo. Como é possível falar de diferentes tipos de razão? Falamos de "razões" e não simplesmente de "razão", porque dentro de nossa filosofia da ciência, não apenas a razão, mas também a verdade, as teorias e os métodos científicos são históricos . Como diz Harold I. Brown (in Percepcion, Theory and Commitment. The New Philosophy of Science, Presedent Publishing, Chicago, Illinois, 1977): "Quando mudam os pressupostos de uma disciplina científica, ficam transformados também tanto a estrutura dessa disciplina quanto a imagem da realidade do cientista. O único aspecto permanente da ciência é a pesquisa".Os qualificativos de "dogmática" e "crítica", aplicados neste trabalho ao conceito de "razão", foram extraídos, em principio, da filosofia popperiana. Esperamos que o sentido no qual aqui os utilizamos fique explicitado no transcurso do texto.

4.- Tratamos as variáveis estratégicas como se fossem categorias epistémicas. Entre as que entram normalmente no calculo estratégico, consideramos apenas nove que denominamos como segue: I.- Núcleo Duro; II.- Relação das Forças Armadas com o Estado; III.- Relação entre estratégia e geometria global; IV.- Posição no seu espaço de interesse; V.- Categoria estratégica base; VI.- Frente de projeção estratégica; VII.- Estrutura das Forças Armadas; VIII.- Ciência e tecnologia; IX.- Democracia.

5.- Na página 10 do Manual Básico (MB), 1977-78 da ESG, pode-se ler: "... mais que um movimento , surgiu, estimulado pelo exemplo de congêneres, como o norte-americano, o National War College , mas com características novas, a Escola Superior de Guerra, voltada à busca de soluções nacionais para os problemas brasileiros ..." (negrito no original).

6.- Shiguenoli Miyamoto: Geopolítica e Política Externa Brasileira , Séries monográficas, Relações Internacionais, 5; Marilia, UNESP, 1987.

7.- João C. K. Quartim de Moraes: "O argumento da força" in E. R. de Oliveira: As Forças Armadas no Brasil (FAB), ed. Espaço Tempo, RJ, p. 11.

8.- E. R. de Oliveira: "Constituinte, Forças Armadas e Autonomia Militar" in FAB. p. 148.

9.- Nos referimos à clássica definição de Max Weber: "... Estado é aquela comunidade humana que, dentro de um determinado território ..., reclama (com êxito) para si o monopólio da violência física legítima " in El Político y el Científico , ed. Alianza, Madrid, 1975, p. 83. Também in Economia y Sociedad , Fondo de Cultura Económica, México, 1979, pp. 43-4.

10.- R. Dreyfuss, in FAB, p. 124.

11.- Seria injusto responsabilizar exclusivamente as Forças Armadas por esta negligência civil sobre os temas militares. é lamentável perceber que políticos, que lutaram quase três décadas contra a ditadura militar, manifestem sem pudor sua ignorância sobre o tema. Ainda hoje transitam pelos claustros intelectuais de notável trajetória, manifestando com orgulho seu preconceito sobre o tema militar. Somado a este aspeto e agravando-o, está a visão de uma parcela da sociedade civil cujos interesses sectoriais são contemplados pelo aventureirismo militar.

12.- Em realidade este talvez seja o problema de mais difícil solução. Parece que esta questão só poderá ser resolvida no marco de uma ampla e irrestrita discussão democrática. Nela, numa sorte de "relação dialética", os militares deverão compreender a natureza política dos conflitos de interesses, e os civis terão de se apropriar da "arte" da decisão estratégica, já que ela pertence estritamente ao âmbito político.

13.- Para Cavagnari (1987, p 75), por sua vez, a pedra de toque da eficácia das garantias constitucionais consistiria na submissão das Forças Armadas a um governo do tipo por elas considerado "não-confiavel". E embora este teste possa parecer sumamente arriscado, as eleições presidenciais de 1989 mostraram que essa possibilidade esteve muito perto de concretizar-se e, sobretudo, que ela faz parte do jogo democrático.

14.- Por "inimigo" entendemos aqui o "outro ameaçador", aquele cuja presença coloca em risco a nossa existência. à diferença do adversário ou do concorrente, o inimigo hostiliza; sua mera existência nos ameaça. O relacionamento com ele, enquanto inimigo, não pode ser pacífica. O inimigo, assim entendido, remete ao Polemos grego, traduzido para o latim como hostilis e não como inimicus . Com este, em última instância, pode-se conviver, aquele, em contrapartida, é a negação de nossa existência. Aprofundamos este conceito com uma extensiva classificação do "inimigo interno", no nosso artigo "Inimigo e excepcionalidade na teoria da soberania de Carl Schmitt" in Revista Impulso Número 9, Unimep, Piracicaba, 199l. Para este tema, recomendamos a leitura dos textos de Carl Schmitt: El concepto de lo politico , Folio Ediciones, Buenos Aires, 1984, e Théologie Politique , ed. Gallimard, Paris, 1988. De Julien Freund: L'essence du politique, éditions Sirey, Paris, 1965.

15.- No Manual Básico da ESG pode-se ler: "Quanto à Segurança, é necessário que se cumpra um processo de permanente prevenção e de eventual repressão, conforme o ditem as necessidades estratégicas", p. 220.

16.- Atualmente o Brasil não tem possibilidades de manter um dispositivo que atenda simultaneamente ambas as frentes. Este implicaria a disponibilidade de um orçamento com o qual as Forças Armadas não contam.

17.- Este programa é independente do programa nuclear, é um projeto estritamente militar. Como diz E. de Oliveira (1987, p 177): Trata-se de um programa militarizado no sentido de que se desenvolve segundo objetivos, meios, recursos e instituições vinculados ou sob controle da instituição militar, sem que a representação política, no caso o Congresso Nacional tenha dele participado.

18.- O conceito de democracia aceito pela visão da CEO é bem estreito (quando não paradoxal), desde o momento que exclui dele a instabilidade política que, como componente do conflito, intervém no jogo político democrático.

BIBLIOGRAFIA CITADA

Eliezer Rizzo de Oliveira (et. al.): As Forças Armadas no Brasil , ed. Espaço e Tempo, RJ, 1987.

Golbery de Couto e Silva: Conjuntura Politica Nacional. O Poder Executivo e Geopolítica do Brasil , ed. Jose Olympio, RJ, 1981.

João C. K. Quartim de Moraes (et. al.): A tutela militar , ed. Vertice, SP, 1987a.

Manual Básico da Escola Superior de Guerrra,

Shiguenoli Miyamoto: Geopolítica e política externa brasileira , Serie monográficas. Relações Internacionais, # 5, UNESP, Marilia, 1987.


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