49 Congreso Internacional del Americanistas (ICA) |
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Quito Ecuador7-11 julio 1997 |
Erneldo Schallenberger
SCHALLENBERGER, Erneldo.
As missões jesuíticas do Guairá: a defesa do índio no processo da colonização do Prata.
Porto Alegre, PUC - RS, 281p. (dissertação de mestrado)
Data da defesa: 15.12.86
Programa: História
Banca Examinadora: Dr. Arno Alvarez Kern (orientador)
Dr. Bartolomeu Melia
Dr. Rafael Carbonell de Masy
Palavras Chaves: Colonização, colonialismo, missões, cultura,
índios, jesuítas.
Resumo
O presente estudo analisa as missões jesuíticas do Guairá diante do movimento global do colonialismo luso-espanhol na área do Prata. Retrata as especificidades do processo de conquista e colonização, evidenciando a emergêngia de estruturas sócio-econômicas internas, que resultaram dos contatos étnicos e culturais que se desencadearam a partir da própria dinâmica do movimento colonizador no extremo sul da América Meridional. Nesta perspectiva, a formação de uma rápida sociedade mestiça fez com que a partir dela se estabelecesse um complexo quadro de relações sociais e de produção, que se sustentaram a partir da dominação do índio e da conquista do seu espaço existencial, dando origem ao colonialismo interno, que passou a se constituir em um desafio ao próprio sistema colonial. As fricções interétnicas, o crescente domínio social, a expansão das estruturas econômicas e os desafios ético-culturais fizeram com que no sistema colonial se articulasse uma estratégia para recuperar o controle sobre a colonização na região do Prata.O Guairá era a área sobre a qual os núcleos de expansão do colonialismo interno (Assunção e São Paulo) encontram maior projeção. As missões e a proibição do serviço pessoal e do saque a que foram submetidas os índios tinham a função de normalizar os conflitos sócio-econômicos e as fricções interétnicas que vinham ameaçando as pretensões do Estado e da Igreja no universo da colonização do Prata. As reduções passaram a caracterizar-se como instituições de defesa do índio, contra o colonialismo interno. Buscaram a organização de um espaço de liberdade para o índio e a defesa de fronteiras para a ação missionária que se propunha a construção da sociedade colonial do futuro, dentro dos princípios ético-cristãos e dos ideais políticos do sistema colonial.
MISSÕES NO
GUAIRÁ:
Espaço e Territorialidade nas Missões Jesuíticas do Guairá
Erneldo Schallenberger
1 Introdução
A formação social da região platina permite identificar experiências ibero-indígenas, com influências culturais mútuas, com aculturações forçadas ou espontâneas e com mudanças de hábitos e costumes, distintas das relações socioculturais das sociedades das metrópoles ibéricas. No espaço platino as peculiaridades regionais, marcadas pelas paisagens diversificadas e pela diversidade étnica, e as diferentes situações de contato são componentes de um conjunto de relações que caracterizam os complexos processos históricos das sociedades emergentes. A busca de elementos identificadores da cultura latino-americana nos remete à reconstituição destes processos a partir de cenários múltiplos para aferir as formas de produção e organização sociocultural decorrentes do conjunto de relações que as sociedades tribais e a sociedade de conquista operaram entre si.
O estudo do Guairá insere-se no contexto mais amplo da ocupação do Prata e tem o sentido de evidenciar algumas especificidades decorrentes das situações peculiares de contato e das características espaço-territoriais de fronteira. Fronteira viva onde as sociedades em presença ainda não haviam cristalizado os limites políticos.
A dinâmica interna do colonialismo luso-espanhol fez emergir frentes de expansão da colonização que se projetaram sobre as populações nativas do Guairá. Estas frentes internas começaram a exercer pressão sobre as sociedades tribais, interferindo substancialmente no seu modo-de-ser, principalmente pela desestruturação das relações familiares e tribais resultante da subjugação da força de trabalho pelo serviço pessoal e pela encomenda. O conjunto de relações decorrentes da projeção dos interesses dos encomendeiros, que necessitavam da mão-de-obra indígena para incrementar suas atividades agropastoris e de extrativismo, e dos bandeirantes que viram no índio encomendado e, posteriormente, reduzido uma possibilidade de abastecer as necessidades de mão-de-obra da agroindústria açucareira, passaram a gerar conflitos e crises que exigiram a intervenção do Estado e da Igreja.
O presente artigo quer evidenciar as peculiaridades da situação de contato entre as frentes de colonização e as sociedades tribais do Guairá, num primeiro momento. As relações decorrentes destas situações veicularam, em muitas circunstâncias, interesses que desafiaram os propósitos expressos pelos agentes oficiais do sistema colonial. A intervenção destes agentes, através da estratégia missionária, além da revitalização dos propósitos de formar súditos e cristãos, promoveu a segregação social, afastando o índio do consumo direto das frentes internas de expansão do colonialismo. A reunião dos índios em povoados para civilizá-los e cristianizá-los teve, pois, o caráter de preparar as bases para a sociedade colonial do futuro, muito embora a percepção desta realidade fosse apreendida de forma diferenciada entre o Estado e a Igreja Missionária. Além de dar conta destas diferenças pretende-se, pelo estudo das reduções jesuíticas do Guairá, evidenciar a redução como espaço de produção sociocultural marcado pela combinação de elementos da cultura tribal com os da cultura euro-cristã ibérica.
2 O Espaço Missioneiro do Guairá
A antiga Província Jesuítica do Guairá compreendia a região localizada entre os rios Paraná, na vertente Oeste, o Tietê e o Anhembi ao Norte, o Iguaçu ao Sul e a Leste a linha imaginária do Tratado de Tordesilhas. As condições naturais desta região caracterizavam-se pela existência de solos férteis, florestas subtropicais, abundantes rios e um clima marcado por uma boa distribuição de chuvas, com maior intensidade no verão, e uma temperatura média em torno de 23ºC.
Neste ambiente viviam as parcialidades guaranis, que eram povos semi-nômades de cultura tribal. Tinham entre eles um principal a quem todos deviam obediência e viviam em pequenas povoações (Montoya, 1985, p. 52). Praticavam a poligamia. A organização social refletia-se grandemente nas relações de parentesco e da dádiva, que expressava uma forma de ascendência social. A religião de matiz mitológica fundamentava-se na crença de um Deus, primeiro criador, na vida pós-morte e nas diversas formas de divindade que referenciavam a explicação dos fenômenos da natureza e da vida (Cadogan, 1959, Cap. I-III). Havia entre eles um feiticeiro que exercia um duplo papel social: o de líder religioso e de curandor. Detinha um certo domínio sobre a farmacologia e tinha um relativo poder derivado da adivinhação (Montoya, 1985, p. 54).
A subsistência nas pequenas aldeias era provida pela caça, pela pesca, pela coleta e pela agricultura. A divisão do trabalho obedecia critérios de gênero, onde as mulheres, além da puericultura, dedicavam-se às lidas agrícolas, enquanto os homens praticavam a caça, a coleta e a pesca. Os filhos aprendiam os ofícios com os pais. Segundo a mitologia dos Mbyá-Guarani do Guairá o Primeiro Pai deixou um conjunto de regras para a agricultura. Dentre elas deixou a primavera como época apropriada para semear. Além da observação da estação do ano, as regras indicam também a influência da lua sobre o plantio. A lua recomendada para o plantio do milho e da mandioca é a lua minguante. Plantando na lua nova o milho mofa ou é carcomido pelos insetos e a mandioca dá tubérculos podres. Assim, nenhuma semente deve ser semeada em lua nova (Cadogan, 1959, p. 129-32).
Na perspectiva do colonizador os guaranis ofereciam plenas condições para que fossem positivamente incorporados ao sistema colonial. Eram lavradores que semeavam milho duas vezes ao ano, plantavam mandioca e criavam galinhas e patos ao modo da Espanha. Ocupavam uma grande área de terra (Cabeza de Vaca, 1945, p. 120).
Além dos reconhecidos atributos das qualidades produtivas, capazes de dar conta das necessidades de subsistência, a intenção colonizadora projetou sobre os guaranis qualidades humanas, definindo-os como um povo muito doméstico e amigo dos cristãos, e com um pouco de trabalho seria possível introduzi-los na fé católica (Idem, p. 129-30).
O potencial humano da região do Guairá sobre o qual poder-se-ia empreender a obra da colonização e da evangelização era muito grande. Na área circunvizinha de Vila Rica havia, pela apreensão de Jaeger, mais de 100 mil índios tributários, sem contar com as mulheres, os filhos e os velhos (1957, p. 104-5).
A incorporação do índio no processo da colonização do Prata e do Guairá, especificamente, dar-se-ia pelo sistema de encomienda. Por este sistema os colonos espanhóis poderiam se valer do trabalho indígena de forma temporária, mediante a sua introdução na fé cristã e nas práticas culturais da sociedade colonizadora. A não aceitação da proposta de cristanização constituía-se subterfúgio para a subjugação total e permanente da mão-de-obra indígena (Schallenberger, 1986, p. 121-31).
No Guairá havia muitos caciques com seus índios encomendados. Eram cometidos ali enormes abusos com os índios, que foram desde o indiscriminado serviço pessoal até a apropriação indevida de suas terras. A pressão das encomendas sobre as aldeias indígenas provocou a sua desestabilização, gerou conflitos, constituiu uma permanente ameaça sobre o espaço tribal, provocou reações ao jugo imposto pela colonização e instalou um ambiente generalizado de crise. O padre Luiz da Grã, em carta a Santo Inácio de Loyola, referiu-se a guerra que os castelhanos fizeram a estes índios, provocando reações que inviabilizariam qualquer projeto de colonização ou de evangelização (Leite, 1940, p. 105).
Em Vila Rica, centro de processamento da erva-mate, os índios haviam sido eliminados e andavam dispersos por causa do serviço pessoal que lhes fora imposto. Existiam aí em torno de 100 encomendeiros que se opuseram à tentativa missionária de libertação dos índios (Montoya, 1982, p. 30). Na Serra de Maracaju, fonte e manancial de erva-mate, havia índios aldeados, que viviam na mais ínfima condição humana, explorando e carregando a erva até mais de 20 léguas de distância (Idem, p. 35). Eram eliminados aí milhares de índios. Nesta região, segundo informação do padre Torres, habitavam em torno de 400 mil almas, sem sacerdote (Jaeger, 1957, p. 105).
Em Guarambaré, Assunção e Vila Rica a conciliação entre colonos e índios se fazia difícil em função da resistência e do mau exemplo dos encomendeiros. As bases do sistema de encomenda do índio fundamentava-se na exploração da sua força de trabalho, uma vez que a economia paraguaia caracterizava-se pela agricultura de subsistência.
Não bastassem as interferências das encomendas na vida das comunidades tribais, projetaram-se também sobre o Guairá os interesses expansionistas dos bandeirantes, a partir do núcleo de povoamento português de São Vicente. Num primeiro momento os bandeirantes estabeleceram relações de troca com os encomendeiros e, em certos casos colateralmente, com alguns caciques, pelas quais pagavam resgate pela mão-de-obra indígena subjugada, que era comercializada com a agroindústria açucareira do litoral brasileiro (Schallenberger, 1986, p. 123). As ações desencadeadas pelos núcleos coloniais de Assunção e São Vicente moveram-se, acima de tudo, na busca da satisfação dos seus interesses imediatos e particulares, não contribuindo em nada para a construção das verdadeiras bases do sistema colonial, fundamentadas nos ideais de expansão das estruturas do Estado e da Igreja Católica (Leite, 1940, p. 184).
As dificuldades da convivência da intenção missionária com a intenção colonizadora dos encomendeiros resultou na definição de novas estratégias para política colonial no Prata. As autoridades coloniais preocupavam-se com a progressiva extinção do índio e pela quase total inexistência de imigrantes que pudessem acelerar a fixação do povoamento e promover o desenvolvimento econômico.
Por outro lado, as constantes invasões dos bandeirantes aceleraram o processo de consumação das populações nativas. Hermandarias de Saavedra, governador do Rio da Prata, chegou a sugerir que se despovoasse a Cananéia de portugueses, por estar sob a coroa da Espanha e para evitar a escravidão dos índios que estavam desejosos de ter alguém que os doutrinasse (Schallenberger, 1986, p. 212).
As condições históricas favoreceram o surgimento de um espaço entre os guaranis para o aparecimento do herói civilizador. Neste sentido, a mudança da estratégia de integração dos índios nos interesses do sistema colonial era, pois, imprescindível. Dever-se-ia não arrastá-los pela força, pois esta comprovadamente havia gerado resistência, mas conquistá-los pelo bom exemplo e pela benevolência. Acosta assegura que a nação dos índios, havendo ao princípio recebido o evangelho mais pela força das armas do que pela pregação, conserva o medo contraído, e a condição servil, mesmo depois da passagem pelo batismo à liberdade de filhos de Deus, [...] Nada existe que tanto se opõe à fé como a força e a violência (1952, p. 109-10).
O provincial do Paraguai e o próprio governador do Rio da Prata, em cartas de 1607 e 1609, asseguraram que seria de muito proveito doutrinar os naturais da Província da Guairá, que estaria necessitada de padres e, por isso, solicitaram auxílio da Província Jesuítica do Brasil (Pastells, 1912, p. 144-5).
Os próprios jesuíticas do Brasil já haviam percebido que o Guairá era um campo missional propício, em virtude da existência de grande concentração de índios, de serem estes índios agricultores (o que facilitaria a fixação de povoados) e, sobretudo, pela capacidade de levar a paz para os conflitos hispano-guaranis (Leite, 1940, p. 68). A preocupação missionária dos jesuítas parece ter se movido para o ensino e para a defesa dos modos cristãos de convivência humana. Por outro lado, os conflitos que se originaram das relações dos colonos com os índios eram desfavoráveis à expansão da doutrina cristã e do próprio sistema colonial. Às missões jesuíticas foi atribuída, portanto, a função de normalizar as relações entre colonos e índios, e anular o contratestemunho dos cristãos e quebrar a resistência sociológica das massas indígenas.
A estratégia missionária definida em torno da opção preferencial pelo índio começou a ser definida em base ao contratestemunho e à resistência dos encomendeiros frente às tentativas de moralização dos costumes, das exigências de cumprimento dos princípios ético-cristãos e da observância da legislação do Estado sobre o índio, que previa a sua liberdade. As ordenações de Francisco de Alfaro, que proibiram o serviço pessoal, vieram reforçar esta opção preferencial (Espanha, 1680, II, p. 201-7). O provincial do Paraguai, Diogo de Torres, definiu, em suas ordenações para as missões do Guairá, as estratégias para a doutrinação dos índios e a sua redução à vida civil e cristã. Deveriam os missionários usar de muita moderação para atraí-los, pouco a pouco, para si. Para tal fim, o melhor meio era a cooptação política dos caciques, pois em tratando-os bem e conquistando-os teriam facilitados os seus trabalhos de redução dos índios dispersos.
3 A Missão por Redução no Guairá
As reduções são definidas por Montoya como povoados ou povos de índios que, vivendo à sua antiga usança em selvas, serras e vales, junto a arroios escondidos, em três, quatro ou seis casas apenas, separados uns dos outros em questão de léguas duas, três ou mais, reduziu-os a diligência dos padres a povoações não pequenas e à vida política (civilizada) e humana... (1985, p. 34).
A fundação das primeiras reduções na região do Paranapanema, em 1610-1611, deu-se num período de profunda crise da sociedade guarani. A luta contra o domínio espanhol e sua intensiva exploração nos ervais de Maracaju foram fatores de desagregação social e de dispersão (Cortesão, 1951, p. 145). Manifestou-se neste processo de opressão espanhola sobre as comunidades tribais a resistência guarani, ora expressa em revoltas, ora sustentada pelo chamamento messiânico (Haubert, 1978, p. 480-8). Os índios ofereciam uma dupla resistência ao trabalho missionário: por um lado, desconfiavam tratar-se de uma nova estratégia de denominação dos brancos e, por outro, através da ação de seus líderes messiânicos, contestavam a liderança dos padres. Assim, em não raras oportunidades, os padres tiveram que se socorrer do auxílio dos colonos e de soldados para livrá-los dos ataques organizados pelos caciques e feiticeiros, que repudiavam a presença dos missionários em suas terras (Montoya, 1892, p. 46). Impor-se aos índios, conquistá-los e fazer-se obedecer, dependeria da maior ou menor capacidade de liderança de cada padre. Esta liderança foi buscada, inicialmente, junto aos caciques. Torres instruiu seus missionários do Guairá no sentido de buscarem os caciques influentes, não castigando-os em público e fazendo com que ajudassem na determinação da escolha do sítio para as reduções. Para a implantação das reduções jesuíticas em meio aos índios, os missionários aproveitaram-se, portanto, do papel fundamental dos caciques, aproveitando as suas qualidades de liderança para que a redução à vida civil e cristã fosse possível.
A determinação do sítio para as reduções era de fundamental importância. Primeiro, deveria oferecer condições de clima, de relevo, de solo e de hidrografia para possibilitar um desenvolvimento agropastoril. Por outro lado, deveria levar em conta os aspectos culturais dos guaranis, que fundamentavam a sua subsistência na agricultura rudimentar, na caça e na pesca e conservavam especial atração pelas águas, em função dos seus hábitos de higiene.
A fundação da redução do Loreto pelos padres José Cataldino e Simão Masseta, em 1610, deu-se em um espaço apropriado para o desenvolvimento agropastoril. Localizava-se junto aos rios Paranapanema e Pirapó. Havia terra fértil em ambas as margens para as práticas agrícolas e, em frente, uma ilha apropriada para a pecuária.
A redução de Santo Ignácio, fundada em 1611 pelos mesmos padres, distante a quatro léguas de Loreto, obedecia as mesmas características espaciais. A abundância de um contingente humano reduzível e o relativo isolamento da influência dos encomendeiros tornaram-se fatores humanos básicos para a estruturação do espaço reducional. A reorganização do espaço implicava numa proposta concreta dos missionários de trazer alívio aos índios diante do estado de crise que viviam (desventuras, fome, enfermidades, trabalhos forçados...). A abundância, pela garantia de alimentos, implicava a preparação de campos para cultivar e para a criação de gado. A introdução de novas técnicas de manejo de solo, de cultivo e de armazenagem representaram uma revolução cultural que afetava as bases materiais da existência, interferindo no modo-de-ser Guarani. As novas técnicas de produção, fundamentadas na racionalidade, refletiram-se sobre o sistema de organização do trabalho e, consequentemente, da sociedade, onde o jesuíta passou a desempenhar o papel de mediação do conjunto das relações sociais.
A manutenção de conceito de propriedade familiar, abambaé, para prover a subsistência da família, e a definição da propriedade comum, tupambaé, para suprir os encargos tributários, manter o culto, assegurar a vida e o desenvolvimento da redução e atender os pobres, órfãos e viúvas, implicaram na remodelação do antigo modo-de-ser dos índios (Schallenberger, 1984, p. 244). Toda esta remodelação foi feita mediante o poder coercitivo da religião, que, com sanções extra-sociais, anunciava a terra sem males, na medida em que as regras de conduta social e religiosa seriam condição para o gozo da felicidade eterna. Em essência, se as missões jesuíticas, com as reduções, buscavam salvar o índio do serviço pessoal que o consumia, elas foram responsáveis, também, pela destruição do espaço humano e social destes mesmos índios que defenderam diante dos colonos espanhóis e dos predadores paulistas. O que houve, em contraste com os colonos espanhóis, foi que os missionários transmitiam suas habilidades profissionais e procuraram preservar o papel político dos caciques, valendo-se de sua liderança para introduzir novos elementos culturais sem quebrar o equilíbrio social.
As missões tiveram sua função determinada no sentido de solucionar os conflitos originados da relação colonos-índios. Mas o trabalho dos missionários havia encontrado limites quase intransponíveis. O relativo êxito inicial das reduções de Loreto e Santo Inácio defrontou-se com os problemas ocasionados pela profunda reorganização social que o reagrupamento da população em grandes povoados ocasionava. Por outro lado, a agressão externa dos encomenderos e dos mamelucos puseram-se como obstáculos ao natural desenvolvimento das reduções.
O segundo provincial dos jesuítas do Paraguai, D. Pedro de Oñate, que substituiu Diogo de Torres em 1615, preocupou-se sobretudo, com a reorganização interna das missões e com a remodelação das casas de formação dos jesuítas. Buscava ele uniformizar os métodos de doutrinar e de ensinar a estabelecer certas rotinas para introduzir novos hábitos entre os índios reduzidos.
A partir das reduções de Loreto e Santo Inácio os jesuítas buscavam apalavrar os índios das áreas circunvizinhas, aldeando-os e cooptando os seus caciques (Schallenberger, s.d., p. 26).
Os guaranis do Guairá, encontravam-se, contudo, cada vez mais premidos, de um lado pela exploração dos encomenderos e de outro pelo avanço do bandeirantismo paulista. Em 1615 toda área que compreende hoje a região Sul do Brasil foi percorrida pela bandeira de Lázaro de Costa. O padre Simão Masseta escreveu ao procurador geral das Índias em Madrid, em 1619, que os paulistas haviam realizado duas expedições escravizadoras de índios. A partir de 1623 haviam se intensificado as expedições paulistas ao Guairá, buscando sistematicamente o índio como peça de trabalho a ser vendida nos engenhos do litoral (Mora Mérida, 1971, p. 80-1).
Esta dinâmica do colonialismo interno, que de um lado explorava o índio pelo serviço pessoal e de outro o saqueava do seu meio para negociá-lo como mercadoria, representava uma ameaça às pretensões do sistema colonial de fixação da colonização no Prata a partir do índio. A própria Igreja Missionária teve ameaçadas as suas pretensões de estabelecer uma sociedade em base aos valores éticos do cristianismo e teve que definir uma nova estratégia para o índio.
A estratégia reducional teve novo alento quando o governador do Paraguai, Don Manuel de Frias, autorizou, em 1622, a expansão do universo missioneiro, estendendo-o à Província de Taioba. Assim, sob a orientação do P. Antônio Ruiz de Montoya, os jesuítas penetraram pelo Rio Tibagi e à sua margem fundaram a terceira redução do Guairá, São Francisco Xavier, em 1622. A redução de São Francisco, fundada em sítio propício, distava 30 léguas da de Santo Inácio. Corriam entre uma e outra extensos campos com pinhais e os índios encontravam-se abandonados nas mãos dos espanhóis (Cortesão, 1951, p. 147). Em continuidade a estratégia missionária e para resguardar os índios das malocas dos encomendeiros e mamelucos, os padres José Cataldino e Ruiz de Montoya fundaram, em 1625, a redução de São José, a meio caminho de São Francisco e São José, nas margens do Rio Tibagi (Montoya, 1892, p. 97).
Era comum a entrada de espanhóis na Província de Taiaoba para sair carregados de índias e de moços para o seu serviço (Montoya, 1892, P. 133). Diante disto resistiam os índios; e os jesuítas buscavam intensificar o seus trabalhos e ampliar suas bases com a fundação de novas reduções. Assim, ainda no ano de 1625, os padres Cristóbal de Mendoza e Ruiz de Montoya fundaram a redução de Encarnación, nas proximidades de São Francisco Xavier. Esta redução foi transferida para sítio mais apropriado em 1627, em função da grande quantidade de índios que a ela ocorreram. Era necessário, portanto, um sítio onde fosse possível ampliar os campos de produção.
Durante os anos de 1626 a 1628 a área circunscrita pelos rios Tibagi e Ivaí se tornou o grande núcleo missioneiro do Guairá. Foram fundadas aí, neste período, as reduções de São Paulo, em 1626, de São Tomé e de Jesus Maria em 1628 e a de los Siete Arcangeles, na margem esquerda do Rio Ivaí, em 1627. São Paulo do Iniay, fundada pelo padre Simão Masseta, teve grande resistência dos encomenderos de Vila Rica, devido à sua proximidade com aquele núcleo colonial.
Arcangeles, São Tomé e Jesus Maria foram fundadas nas áreas circunvizinhas de Vila Rica para organizar a defesa dos índios contra os espanhóis. A estratégia missionária da Companhia de Jesus foi, neste período, de organizar núcleos indígenas auto-suficientes e distantes da influência dos espanhóis, evitando-os onde e quando fosse possível (Cortesão, 1951, p. 283 e 300).
No biênio de 1626 e 1627 a expansão das reduções atingiu a terra dos Gualachos, representando o seu ponto mais avançado em direção ao litoral Atlântico. O conjunto das reduções fundadas entre as cabeceiras do Rio Tibagi e o Iguaçu buscavam, sobretudo, a defesa dos índios contra os saques dos paulistas (Cortesão, 1951, p. 150). Destacaram-se nestas reduções os trabalhos missionários dos padres Ruiz de Montoya, Cristóbal de Mendoza, Francisco de Diaz Tanõ, Simão Masseta e José Cataldino. O padre Montoya contribuiu, de forma direta, na fundação das reduções de: São Miguel, em 1626, com o auxílio do Padre Cristóbal de Mendoza; Imaculada Conceição, em 1627, em colaboração com o padre Francisco Diaz Taño; e Santo Antônio, também em 1627. Ao padre José Cataldino é atribuída a fundação de São Pedro, em 1627. Nesta região tiveram os jesuítas muitos índios apalavrados para novas reduções, mas que não se concretizam porque os portugueses os apresavam (Pastells, 1912, p. 436).
Os constantes saques dos paulistas às missões e a omissão e permissividade do governador do Paraguai, Luís de Céspedes Xéria, fizeram com que a experiência reducional fosse, progressivamente, assolada e destruída no Guairá. Os jesuítas tentaram resistir de todos os modos, ao ponto de os padres Justo Mansilla e Simão Masseta irem junto ao provincial do Brasil, P. Antônio de Matos, e do governador geral do Brasil, D. Diego Luís de Oliveira, para procurar a liberdade dos índios e as soluções para o futuro. No momento da invasão os missionários promoviam sozinhos a defesa dos seus índios. As autoridades coloniais permaneceram omissas. Assim, um contingente de aproximadamente 200 mil índios foi consumido pelo cativeiro ou pela covardia e pela fome (Schallenberger, s.d., p. 31).
Os saques dos bandeirantes que culminaram com a grande invasão de Raposo Tavares, de 1628 a 1631, promoveram a transmigração de aproximadamente 12 mil almas do Guairá para a Província do Uruguai. De instituições de defesa do índio as reduções foram assumindo o papel de instituições de fronteira.
4 Considerações Finais
A situação geográfica, social e econômica que prevaleceu no Paraguai e em São Paulo fez com que no centro destes dois núcleos propulsores do colonialismo interno estivesse o índio. Sobre ele se projetou a expansão das fronteiras econômicas e se exerceu o domínio social. Serviu de base genética e ofereceu as condições iniciais de subsistência para que os povoadores europeus pudessem lançar as estruturas de sua exploração colonial. As instituições coloniais, articuladas na alta esfera administrativa, foram por si só frágeis para regular as relações entre os povoadores europeus e os índios.
As missões jesuíticas do Guairá, nesta visão globalizante, representaram uma articulação do sistema colonial, que, ao nível local, valeu-se da estratégia missionária para sanar os conflitos étnicos e sócio-econômicos e para fazer prevalecer seus interesses de hegemonia sobre o processo de colonização. Por outro lado, os colonos espanhóis não conseguiram dispor o índio para a colonização. Pelo contrário, pelas situações de contato o consumiam e, progressivamente, foram gerando nele a rebeldia, sem que o conseguissem programar para a vida cristã e política. A redução era, pois, um tipo de estrutura colonial prevista para os índios. A sua implantação no Paraguai, e mais especificamente no Guairá, com os jesuítas, comportou, no entanto, características peculiares.
As missões jesuíticas do Guairá obedeceram ao curso da necessidade de trazer uma solução humana e cristã para os conflitos derivados da ação dos colonos espanhóis e dos bandeirantes sobre os índios. Retrataram uma prática dentro do colonialismo que buscou coibir a indiscriminada exploração do índio e estabelecer condições para que o sistema de encomiendas pudesse viabilizar o processo da colonização. A conjugação dos interesses da Igreja missionária e do Estado, na ação política de fazer cumprir a proibição do serviço pessoal e do resgate, teve, pois, como finalidade básica normalizar as relações entre colonos e índios e evitar a dispersão destes, tornando a aldeia indígena auto-suficiente para garantir os recursos humanos necessários para a colonização. Neste sentido, as missões definiram-se a partir do sistema de encomiendas e os missionários se tornaram os representantes do sistema colonial, na fase inicial.
A organização defensiva do índio implicou na reorganização do seu espaço social e produtivo, o que permitiu a introdução de um conjunto de elementos culturais que, progressivamente, foram dispondo as populações reduzidas para o cristianismo, sem que isto pudesse representar a conversão dos índios ao cristianismo. A coesão social e a organização das reduções como um espaço de liberdade para o índio e um campo missional para o jesuíta requereram a interação de elementos culturais e dependeram da eliminação de conflitos internos. Pela ação missionária e pela redução em povoados os jesuítas foram catequizando os índios da região guairenha, apalavrando-os, isto é, pelo empenho da palavra e pela fidelidade ao evangelho os missionários ofereceram em troca a liberdade diante do avanço das frentes colonizadoras. Preparou-se, assim, a fronteira possível da ação missionária no complexo processo de colonização do Prata e, afastada das influências nefastas das frentes de expansão colonial, se ensaiou a utopia da civilização colonial do futuro, estruturada a partir das referências da vida civil e cristã européias.
Se a ação do colonialismo luso-espanhol acabou por destruir a experiência reducional do Guairá, não conseguiu, contudo, extinguir a utopia da sociedade possível, almejada pelos jesuítas. Neste elã eles defenderam as fronteiras e buscaram novas fronteiras, sempre inspirados nesta utopia colonial: reduzir o índio a um espaço de liberdade onde ele pudesse viver em estado civil e cristão. Contudo, em outra dimensão, mas não em menor sentido, a organização defensiva dos índios com as reduções e a projeção ofensiva das frentes colonialistas contribuíram para um mesmo fim: a extinção do índio como cultura e como etnia, embora uma buscasse preservá-lo do consumo da outra.
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