49 Congreso Internacional del Americanistas (ICA)

Quito Ecuador

7-11 julio 1997

 

Márcio Serelle

A IRONIA FANTASTICA;

UM ESTUDO SOBRE A LOGICA DO ABSURDO NOS CONTOS DE MURILO RUBIÃO

AUTOR: Márcio Serelle

Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC-Minas.

RESUMO

Neste trabalho, a estrutura literária dos textos fantásticos é vista como um sistema ambíguo, onde os elementos insólitos da narrativa são dispostos, ironicamente, com lealdade naturalista. O relato fantástico não apenas lança o extraordinário mas também trata-o como fato prosaico. A dissertação mostra como é feita a naturalização do irreal no universo intradiegético dos contos de Murilo Rubião, tornando a estrutura fantástica ainda mais absurda para o leitor. O mais espantoso nas ficções fantásticas é que, no interior da narrativa, os fatos espantosos não espantam ninguém. A incongruência entre a perplexidade da audiência e a disposição natural dos elementos insólitos no texto literário gera o fenômeno da ironia fantástica, que aponta para a instabilidade dos conceitos de fantasia e real. E mostra ao leitor que uma obra fantástica pode ser ao mesmo tempo insólita e absurdamente verossímil.

ABSTRACT

In this work, the literary structure of the fantastic texts is seen as an ambiguous system, where the unusual elements of the narrative are ironically displayed with naturalistic loyalty. The fantastic account not only presents the extraordinary, but also treats it as a prosaic fact. This dissertation shows how the unreal is naturalized in the diegetic universe of Murilo Rubiãos short stories, turning the fantastic structure into a even more absurd subject. The most astonishing point about the fantastic fiction is that the astonishing facts, inside the narrative, dont amaze anybody. The incongruity between the audience perplexity and the natural display of the unusual elements in the literary text creates the fantastic irony, which points to the instability of fantasy and reality concepts. And it shows to the reader that the fantastic literature may be, at the same time, incredible and absurdly credible.

Kafka intuiu a lógica do absurdo, um sistema como qualquer outro.

Carlos Drummond de Andrade

Márcio SerellePUC-MG.

A busca do absurdo na literatura norteia-se frequentemente pelo esforço de construir uma visão inverossímil, porém coerente com parâmetros assombrosos. Nada é então espantoso no universo intradiegético. O relato fantástico não apenas lança o extraordinário mas também trata-o como fato prosaico, trabalhando ironicamente o insólito como padrão da marca naturalista.

Para o leitor, contudo, imagino que o caráter inexplicável do fantástico seja profundamente angustiante. E, diante da narrativa, ele procure indícios que de alguma forma desvelem a farsa do absurdo. O devaneio é apenas mais um artifício literário que no final será corrigido, mantendo-se assim ainda no costeio do real. Engana-se o leitor. O fantástico não tem medidas para com a realidade imediata.

O processo , de Kafka (1967), é construído nesta projeção ao apresentar uma máquina de justiça onipresente, que denuncia o fictício em que o Estado de direito se converteu. Desde a cena da detenção de Joseph K, o leitor começa a desenvolver sua lógica policial para tentar desvendar o emaranhado de ameaças veladas e perseguições arbitrárias. Tem início o julgamento e novas questões surgem. O leitor, entretanto, - a não ser que procure descodificações alegóricas - ficará sem respostas.

E, de fato, não há necessidade de respostas, pois não há perguntas quanto à natureza e legitimidade dos acontecimentos narrados. Ironicamente, a verossimilhança não se opõe ao fantástico. No interior do gênero fantástico, é verossímil a ocorrência de reações fantásticas.

De volta a O processo , um leitor desatento poderia alegar que, do ponto de vista da personagem Joseph K, todo o julgamento é absurdo. Mas uma leitura atenta deverá informar que a velha proprietária, que aluga um quarto ao Sr. K, não estranha a visita dos guardas. A locatária, sua vizinha, tampouco considera fantástico o relato que se sucede. O tio e o cliente que se dispõem a ajudá-lo também não duvidam da justiça coadora. Muito menos o advogado a que o tio lhe conduz ou Leni, sempre bem informada sobre os bastidores da justiça. Em suma, ninguém se surpreende com o que acontece a Joseph k.

Por isso é preciso entender que o sistema lógico do fantástico é regido por princípios próprios. Como se as leis do real imediato fossem infringidas, surgindo um novo universo invertido ou às avessas. Um mundo dominado pelo estatuto do absurdo, condenado - assim como o ex-mágico da taberna Minhota, personagem de Rubião -, à prestidigitação.

Se tudo é fantástico no universo narrado, o fantástico não existe.

No entanto é justamente a naturalização do irreal dentro da narrativa o que torna a estrutura do fantástico ainda mais absurda para o leitor. O mais espantoso em Kafka é que os fatos espantosos não espantam ninguém. E isto não é irônico? A ironia fantástica está na incongruência entre a perplexidade do leitor e a disposição natural dos elementos insólitos no texto literário.

Essa idéia de reelaboração da realidade, criando um novo universo obediente a uma lógica própria, sustenta o próprio conceito da palavra fantasia. O termo foi definido pela primeira vez por Aristóteles como a faculdade de reproduzir os dados das sensações em ausências dos objetos que as provocam (cf. CARRELA, s./d.). Na Idade Média, a palavra foi convertida para o seu correspondente em latim, imaginatio, e dividida em duas instâncias básicas: imaginação reprodutiva e imaginação produtiva.

A imaginação reprodutiva (ou simplesmente Imaginação) se refere à leitura dos detalhes e circunstâncias perceptíveis da realidade. Ela está circunscrita a interesses práticos na reprodução de novas associações ou criações de imagens. Já a imaginação produtiva, ou fantasia, faz a combinação e elaboração livre desses dados. A fantasia possui o caráter de elaboração estética das representações.

Dispondo as duas instâncias numa linha vertical, teríamos a Imaginação num degrau mais baixo, próxima ao que vou chamar de real imediato. Mas a imaginação, logicamente, não é o real em si. Como representação, o processo realiza novas associações e criação de imagens. O importante, no entanto, é que a imaginação nunca perde de vista o seu referente. A fantasia, a um passo acima, já seria a elaboração livre dessas representações, o que implica num distanciamento ainda maior entre a estética proporcionada pelo processo e o chamado real imediato.

A fantasia é um tipo de atividade mental limítrofe do sonho e da magia, ao passo que a imaginação semelha a atividade mental do tipo superior; a fantasia conota uma formatação desregrada das representações, uma caprichosa associação de imagens, desobediente aos nexos lógicos, ou construída ao sabor de uma lógica inconsciente. Em contrapartida, a Imaginação constitui um modo de ser coerente de nosso mundo mental, e, portanto, um mecanismo de investigação e conhecimento da realidade. A fantasia consistiria numa imaginação criadora, própria das Artes, e a imaginação propriamente dita seria reprodutora, afeita às demais áreas do saber humano. A primeira se classificaria de imaginação difluente, na medida em que tende a desgarrar-se do real, e a outra seria a imaginação plástica, visto que se caracteriza por aproximar-se do real tanto quanto é possível através da linguagem. A literatura fantástica seria, em tese, um exemplo de emprego maciço da fantasia, ou imaginação difluente, e a prosa realista, da imaginação plástica.

Na transposição do conceito de fantasia para a estética literária, temos uma narrativa que se desdobra como um jogo que invariavelmente transgride os limites da realidade imediata. No texto fantástico, o ponto não é manifestar ou exaltar o ato de escrever, nem é muito menos levantar um ponto com a linguagem; é mais uma questão de criar um espaço onde o objeto da escrita constantemente desaparece, dando origem a um mundo fictício e autônomo, mas ao mesmo tempo dotado de regras internas. A obra fantástica estabelece um mundo muito diferente do nosso, porém também obediente a idéias, sentimentos e leis de ordem insólita. Ironicamente, no extraordinário, tudo é extraordinário e nada o é.

Nesse ponto, o surgimento da estética fantástica pode ser entendido como uma reação literária ao desenvolvimento científico dos últimos séculos. Com a evolução tecnológica e o descentramento do pensamento humano, a coesão que se observava entre natural e sobrenatural se torna mais frágil. O conhecimento, menos hierarquizado e mais relativo, proporciona uma realidade cultural complexa e fragmentária. Todos esses questionamentos, baseados em diferentes pontos de vista, horizontes de expectativa e focalizações, fizeram aparecer dados contraditórios no contexto cultural. E isso gerou a seguinte dúvida: se os elementos extraliterários - isto é, os elementos que constituem a realidade conhecida -, são instáveis e traiçoeiros e não têm a confiabilidade que se supunha, porque o mundo ficcional deveria continuar se apoiando parasiticamente no mundo real? O respeito pela verossimilhança, como regra clássica e pertencente a escola de Aristóteles, perde então o sentido. E a literatura abre espaço para a imaginação difluente, surgindo o imprevisível e o improvável. A obra de arte não mais necessita de se apoiar em elementos referentes ou paralelos ao mundo real. Dessa forma, o extraordinário pode surgir de forma arbitrária e inconsequente, sem a necessidade de justificativas como, por exemplo, a presença do deus ex machina ; intervenção direta dos deuses nas tragédias gregas e romanas.

Outro fator que contribuiu para o surgimento da estética fantástica foi a crescente desreligiosidade que fez com que a cultura fosse incapaz de conciliar o natural e sobrenatural, baseado na noção do maravilhoso. A situação de desequilíbrio, fez com que a literatura se afastasse do verossímil e da imaginação para dar lugar à estética do inadmissível.

A literatura fantástica elabora um mundo ficcional sem as guias da explicação racional ou sobrenatural. Ao contrário do que pensou Todorov (TODOROV, 1975), o fantástico não abraça simultaneamente os dois gênero, mas rejeita ambos. Seu limite está onde atua a fantasia, entre o devaneio e a magia, criando uma lógica obediente somente à coerência interna da ficção. A narrativa remodela o cotidiano e cria um mundo invertido ou às avessas onde a inverossimilhança é parte do estatuto.

A naturalidade diante do acontecimento inaudito é uma característica do conto fantástico de Murilo Rubião. Em O convidado (RUBIÃO, 1988), José Alferes recebe um convite para uma festa. No cartão não há data, local nem nome das pessoas que promoviam o evento. Mas não há nenhum espanto nisso, tanto que mesmo sem todas essas informações, a personagem veste uma fantasia e consegue chegar ao local da recepção. Na festa, a situação é ainda mais absurda; todos esperam um convidado que não conheciam, ignoravam o seu aspecto físico, os motivos da homenagem. Mas ao mesmo tempo sabiam que sem ele a comemoração não seria possível.

Em O bloqueio, também de Rubião (1993), as circunstâncias também são incompreensivelmente insólitas. Um prédio vai, aos poucos, sendo devorado por uma máquina que nunca se revela. Ilhado num andar flutuante e oprimido pela força coatora, a personagem Gérion nunca questiona a veracidade dos acontecimentos.

Todos essas ocorrências são absolutamente inexplicáveis e mostram a sobreposição de ocorrências inusitadas ao universo familiar. O que significa essa estrutura de narrativa? No fantástico, o acontecimento estranho é percebido sobre o fundo daquilo que é julgado normal e natural. O acontecimento sobrenatural não provoca mais hesitação pois o mundo é descrito inteiramente bizarro, tão anormal quanto o próprio acontecimento a que serve de fundo. O irracional faz parte de uma lógica onírica, se não de pesadelo, que tudo e nada tem a ver com a real. A verdade é que nunca nos espantaremos suficientemente como esta falta de espanto. E essa é a grande ironia fantástica .

MARIO, MURILO E A IRONIA FANTASTICA

Rubião, quando era aprendiz de prestidigitador, trocou correspondência com Mário de Andrade. Foram várias cartas, entre 1939 e 1944, período entre a primeira e última viagens do vampiro a Belo Horizonte. Parte do material foi recentemente reunido em um livro por Marcos Antônio de Moraes (MORAES, 1995). Nas cartas de Rubião, sempre bem escritas, há uma modéstia e humildade importunas. Junto a uma das missivas, o escritor mineiro envia também uma entrevista feita com Mário de Andrade na capital mineira. Antecipadamente, ele solicita uma boa dose de bondade ao modernista, pois além dos muitos erros de revisão, a entrevista continha citações que Murilo não sabia se tinha reproduzido como fidelidade. E conclui: Nesse grifo o senhor não encontrará o elogio que merece. Quem o fez carece de cultura e inteligência para dizer seu enorme valor.

Rubião, vacilante, também pede opinião e conselhos a Mário de Andrade sobre as ficções que começava escrever. É aí a melhor parte do texto epistolar. Na carta de 6 de junho de 1943, Mário analisa o esboço dos contos O ex-mágico da taberna Minhota, chamado no texto de Mágico; o Pirotécnico Zacarias, mencionado como o outro conto, da volta à vida do morto; e um terceiro, provavelmente Mariazinha, que não é identificado. O autor de Paulicéia desvairada chega a seguinte conclusão sobre as narrativas de Rubião:

Um humorismo áspero, revoltado; um sarcasmo maltratante que provoca a invenção do caso - invenção que é rara e curiosamente impositiva. Dominadora. É estranho como, passado o primeiro momento fatal em que a gente verifica que está lendo um caso impossível de suceder e às vezes se preocupa uns dois minutos com um possível símbolo, uma alegoria escondida no reconto (e é perigo a evitar cuidadosamente no seu caso): o mais estranho é o seu dom forte de impor o caso irreal. O mesmo dom de Kafka: a gente não se preocupa mais, e preso pelo conto, vai lendo e aceitando o irreal como se fosse real, sem nenhuma reação mais. Será talvez essas as qualidades e caracteres dominantes mais notáveis nestes apenas três contos: o humorismo asperamente amargo e a força. (MORAES, 1995:32-33)

Mário segue dizendo que a profissão escolhida para o Mágico, a de funcionário público, era muito pouco inventiva, banal. E que o conto do morto-vivo foi mal concluído, que Rubião não conseguiu solucionar a narrativa com lirismo.

Mas a reflexão mais importante do modernista sobre os textos do escritor mineiro está mesmo no extrato transcrito: o humorismo asperamente amargo e a força estranha de apassivar dominadoramente o leitor, impondo o irreal como se fosse real. Essa frase demonstra como Mário de Andrade percebeu a instabilidade inerente da estética fantástica, onde a cooperação harmoniosa entre o insólito e o cotidiano deixa o leitor muito pouco confortável. Ele mesmo admite, noutra carta a Rubião, que sempre tem uma dificuldade enorme em dar opinião a esse gênero de criação em prosa, baseado no princípio da fantasia. O próprio Kafka, diz, confesso a você que me deixa numa insatisfação danada.

Não sei se, ao falar em humorismo asperamente amargo, Mário fez referência ao aspecto externo do enunciado do texto ou à macroestrutura ficcional. De qualquer forma, a ambiguidade irônica dos textos de Rubião pode ser vista realmente como uma estrutura angustiante. A narrativa fantástica percorre uma região onde não se tem uma extrema seriedade nem uma extrema alegoria. Na verdade, ela se instala num lugar que flutua entre os dois conceitos.

De que outra maneira, senão inconstante, poderíamos classificar O ex-mágico da Taberna Minhota e O pirotécnico Zacarias? As narrativas, ao mesmo tempo que se afastam das técnicas de verossimilhança na literatura, inserem o insólito de uma forma completamente trivial na diegese. No conto do pirotécnico, o problema maior de Zacarias não é a sua condição de morto-vivo, mas sim como seguir viagem na turma de jovens sem ter uma parceira:

Entretanto, outro obstáculo nos conteve: as moças eram somente três, isto é, em número igual ao de rapazes. Faltava uma para mim e eu não aceitava fazer parte da turma desacompanhado. (...) Para melhorar meu aspecto, concluiu, bastaria trocar as minhas roupas pelas de Jorginho, o que me prontifiquei a fazer rapidamente. (RUBIÃO, 1995: )

Tudo o que há de insólito em O pirotécnico Zacarias perde seu efeito no universo intradiegético. Incongruentemente, é essa estratégia, essa forma natural de tratar o extraordinário dentro da ficção, o que torna o relato ainda mais absurdo para o leitor.

A ironia fantástica é, de certa forma, áspera porque é desnorteadora, afrontosa, evidenciadora da incapacidade do leitor de lidar com conceitos de real e irreal. É o tipo de ironia que confisca a lógica realística para atingir uma ultra-lógica, dentro da qual, no entanto, interfere sempre uma lógica realista muito modesta e honesta. É esta contradição entre um afastamento em princípio da lógica realista e a obediência, dentro da ultra-lógica conseguida, de uma nova lógica realista, o que faz o encanto do estranho e a dramaticidade irônica da ficção fantástica.

A ironia, ao desestabilizar os conceitos de ordinário e extraordinário, sugere que o fantástico pode ser absurdamente verossímil. E, ao mesmo tempo, que o homem e o mundo comuns são precisamente fantásticos. Nos contos de Rubião, o fantástico torna regra, não exceção. A própria condição humana é absurda. A lógica formal não explica o homem, e o irracional, no caso, revela muito mais. A razão, muitas vezes, não é o instrumento mais adequado para se atingir a essência das coisas. Os contos de Murilo Rubião, como exemplares do fantástico, celebram o absurdo e instauram a estética do caos, da indeterminação, da ilogicidade como o padrão da obra de arte.

No prefácio a O pirotécnico Zacarias (RUBIÃO, 1995), Davi Arrigucci defini o fantástico como o absurdo que se rotiniza. Próximo do mito, a sua transformação constante instaura o reino insólito onde tudo pode acontecer, mesmo as coisas mais absurdas (grifo meu).

A naturalização do super-real no contexto extraordinário foi mal colocada por Arrigucci. Quando se diz mesmos as coisas mais absurdas têm-se a impressão de que no reino do fantástico há espaço para tudo, até para o absurdo. E a lógica intuída pela Ironia fantástica trabalha justamente o inverso. O absurdo não é apenas algo permitido dentro do universo insólito, mas a própria lei deste universo.

O fantástico instaura o reino insólito onde tudo pode acontecer, mesmo as coisas mais sensatas.

O CONTO COMO GENERO NARRATIVO DO FANTASTICO

Rubião escreveu muito pouco. Apenas 32 contos, rigorosamente, são originais. O restante das narrativas publicadas em seus oitos livros são - como as atividades de Teleco, o coelhinho - metamorfoses. O escritor reelaborava continuamente seus textos, na maioria das vezes apenas atualizando palavras que ficavam caducas com o passar dos anos.

Em uma das cartas a Mário de Andrade, Rubião assume que escrever era a pior das torturas. Por outro lado, diz que a sua imaginação era estranhamente fácil. Construía seus casos em poucos segundos, porém levava meses até transformá-los em obras literárias.

Não é nada incomum que a invenção caminhe mais rápido do que a escrita. O processo de construção literária é às vezes, como na leitura metapoética dO Edifício, interminável. Enquanto a fantasia, como desdobramento de uma lógica que opera entre o devaneio e a magia, parece mesmo fluir. O desafio maior, entretanto, parece ser o de organizar a fantasia através de um discurso tão colado ao real como a linguagem. A narrativa fantástica, para constituir-se, precisa ser irremediavelmente ambígua e instável. Nela, a ruptura com o cotidiano tem que se sustentar por suas próprias regras, sem buscar apoio em aspectos elucidativos de qualquer espécie.

Sabemos muito pouco, ou quase nada, do segredo que ampara a trama de A armadilha, conto do livro A casa do girassol vermelho, de Rubião (1993). A única informação que é dada ao leitor sobre a procedência das personagens é o nome completo de Alexandre Saldanha Ribeiro. Mas o que Alexandre trazia na sua maleta volumosa e o que fazia naquele prédio? Quem na verdade era o seu oponente e qual o motivo da rivalidade, que faz com que os dois fiquem trancafiados em uma sala com portas e janelas de aço por um ano, dez ou mil anos? Contudo, nenhuma dessas dúvidas é questionada no conto, e o narrador segue seu relato ironicamente como se o extraordinário fosse familiar ao leitor, pois no interior da diegese ele é perfeitamente coerente. E o fantástico há de se manter até a última linha, sem que o conto necessite de qualquer tipo de explicação para seu conteúdo absurdo.

Talvez seja esta a razão para a brevidade dos textos de Rubião. Afinal, a ficção fantástica precisa conservar, durante toda sua extensão, uma lógica narrativa completamente desprovida de justificativas, e para isso deve equilibrar-se na linha do insólito puro sem que o relato tome o rumo do maravilhoso ou da explicação racional. E o conto, pelo seu caráter de compacidade, é o gênero literário mais apropriado para abrigar o fantástico de Rubião e sua estrutura irônica.

Alguns teóricos, afirmam que a extensão, por si só, não é um fator distintivo para a conceituação do conto. O gênero obedece também a outras implicações de ordem operacional. Contudo, essa característica é historicamente verificável e bastante pertinente para se condicionar a construção do conto. Na língua inglesa, por exemplo, se diz short story , o que se refere à capacidade de concentração textual desse tipo de narrativa em relação a dimensão normalmente muito mais ampla do romance.

E não há duvida que essa limitação de extensão é um dado favorável à construção da narrativa fantástica de Rubião. Com um esquema temporal restrito, um reduzido elenco de personagens e uma ação simples ou pelo menos poucas ações separadas, o conto possui mais chances de sustentar a técnica e o tom da ironia fantástica , sem que a ficção precise buscar justificativas para o inusitado. Coisa que o romance, pelo seu emaranhado de intrigas, é muito menos capaz de manter. O que eu quero dizer é que o fantástico (e aqui eu falo de todo texto fantástico) talvez não tenha fôlego para durar centenas de páginas e sobreviver a um universo diegético profundo e de grande dimensão, onde relata-se uma ação relativamente extensa e, quase sempre, complicada por ramificações secundárias. Até A metamorfose , de Kafka, que possui a forma de romance é uma narrativa breve e pouco complexa em termos de intriga. Contos como Romance negro, de Rubem Fonseca ou Narrative of A. Gordon Pym, de Poe, são tão ou mais extensos que o texto de Kafka.

Já disse também que o fantástico é fluidez, e que essas narrativas devem ser lidas mesmo ao pé-da-letra, sem preocupações alegóricas. E também que o significado do texto deve irromper de um sentimento condicionado pela lógica proveniente do irreal que, ironicamente, aproxima-se de sensações experimentadas no cotidiano. Dessa forma, uma leitura, sem interrupções, favoreceria a estrutura corrente do fantástico. E qual outro gênero narrativo, senão o conto, pode ser lido em um único ato de narração? Na ficção de Rubião, a concentração de eventos e a linearidade arrebatam o leitor. O artifício é também muito usado em temáticas policiais, onde existe uma intriga e um mistério a resolver. E, muitas vezes, essa é a atitude do leitor diante do texto fantástico. Ele passa rapidamente as páginas tentando, angustiado, desvelar o processo que, ironicamente, não tem solução alguma, porque o mistério é que não há mistério algum a ser resolvido.

Em A fila (RUBIÃO, 1988), a personagem Pererico está, não se sabe a mando de quem, em uma missão confidencial. Pererico precisa falar com o gerente da Companhia. Contudo, não pode antecipar o argumento, pois trata-se de assunto de terceiros, que deve ser guardado em sigilo. A personagem é obrigada a esperar em uma fila imensa até que possa, finalmente, falar com o gerente, e revelar o segredo. Assim, toda uma estrutura de mistério envolve a trama. E a situação fantástica está na espera que se eterniza à medida que a personagem volta a ocupar um lugar cada vez mais afastado na fila, nunca chegando a falar com o gerente. Mas o que há na outra ponta dessa linha interminável ou o que Pererico quer mesmo falar ao gerente, pode se perguntar o leitor. Mas o meio da fila é seu próprio fim, e o segredo a ser desvelado é o próprio segredo já desvelado. Contudo, toda a estrutura do conto, ironicamente, sugere que há mesmo um mistério a ser elucidado.

Outra característica importante do conto é que, tentando organizar o material diegético para ser lido numa só respiração, o narrador trata com economia o tempo narrativo. Por isso, predominam no gênero velocidades narrativas tão redutoras como o sumário e a elipse, desvalorizando-se simultaneamente a pausa descritiva. E, como pretendo mostrar, a rapidez da ficção é uma condição importante para o surgimento da ironia fantástica .

Essa cumplicidade entre a forma compacta do conto e o conteúdo fantástico, confesso, mereceria ser investigada com mais rigor. E talvez fosse necessária toda uma pesquisa sobre o tema. Mas ainda assim é uma discussão que eu gostaria de deixar registrada aqui. Pelo menos na ficção brasileira, acredito que essa tendência possa ser ainda confirmada pelos textos de J.J. Veiga e Rui Mourão, todos breves e fantásticos.

RAPIDEZ

Li num livro de Calvino (1994) que os contadores de história na Sicília usam a seguinte fórmula: lu cuntu num metti tempu (o conto não perde tempo), quando querem saltar passagens inteiras ou indicar um intervalo de meses ou de anos. A técnica da narração oral obedece a critérios de funcionalidade, que omitem ou negligenciam os detalhes inúteis das histórias, ou seja, tudo aquilo que não se precisa explicar ao leitor. Por ser um relato de pouca extensão, o conto usa esse artifício para acelerar a diegese e por isso pode ser considerado um gênero narrativo rápido.

Mas como medir a velocidade de um texto literário? Nos termos da análise literária é possível distinguir uma dupla dimensionalidade do tempo: a sua existência como componente da história e a sua manifestação no nível do discurso.

Temos assim duas instâncias cronológicas interdependentes: o tempo da história (vivido pelas personagens, enquadrando várias ações etc.) e a feição unidimensional, linear, da sintagmática narrativa. A primeira faz parte do conteúdo da diegese. Se o texto diz que cem anos se passam, como no livro de Garcia Márques, o tempo da história são cem anos. Mas isso poderia, e aliás deveria ter sido dito em muito menos páginas pelo escritor colombiano. Em apenas uma linha, um texto pode avançar indefinidamente pelo tempo. É só dizer e cem anos se passaram... que o leitor acompanhará a mudança temporal, por mais radical que seja.

Já o tempo do discurso é consequência de várias estratégias textuais que interagem com as respostas dos leitores e lhes impõe um ritmo de leitura. No caso das narrativas de Rubião, para consolidar a estrutura irônica, esse tempo é extremamente ágil. E como um autor consegue esse efeito na literatura? Suprimir uma abundância de explicações e detalhes mínimos, bem como dispensar uma grande quantidade de descrições, podem ser modos eficazes de se atingir uma narrativa rápida. E todos esses artifícios colaboram para a aceleração do tempo narrativo até o leitor entrar no ritmo que o autor julga necessário à fruição da obra.

A rapidez ou o caráter elíptico da história fantástica é fundamentada principalmente na ausência de detalhes e explanações ao leitor. Trata-se o inusitado como elemento real, plenamente adaptado ao universo ilógico da diegese, e por isso não há nada a acrescentar além dos fatos em si.

Os primeiros dragões que apareceram na cidade muito sofreram com o atraso dos nossos costumes. Assim começa o narrador do conto Os dragões (RUBIÃO, 1993). Como e por que os dragões apareceram na cidade, o leitor nunca saberá. A narrativa, rápida, omite qualquer explicação sobre o inusitado. O mesmo acontece em Teleco, o coelhinho, quando o ser inicia suas metamorfoses: Dizendo isto, transformou-se em uma girafa. O processo de transmutação não é contado em detalhes; como se fosse algo tão ordinário, ele apenas acontece sem qualquer justificativa.

A rapidez dos textos de Rubião é irônica porque convida o leitor à preencher as muitas lacunas deixadas pelo relato. É como se o acontecimento absurdo fosse facilmente inteligível, sem a necessidade de descrições ou maiores demoras por parte do narrador.

Alguns leitores irão perguntar se as narrativas fantásticas de Kafka não fogem a essa regra. Se a descrição do corpo metamorfoseado de Gregor Samsa, com as suas costas duras como uma couraça, seu ventre abaulado, marrom, divido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha, não é minuciosa e, portanto, lenta. De fato, essas poucos linhas de Kafka são um exemplo de realismo, não de surrealismo, e por isso o relato é detalhado.

Sim, mas o que dizer da frase inicial de A metamorfose (KAFKA, 1971), já lembrada nesta dissertação e que, na minha opinião, constitui uma síntese literária de tudo o que estou dizendo até aqui: Certa manhã, quando Gregor Samsa abriu os olhos, após um sono inquieto, viu-se transformado num verdadeiro inseto. Conheço poucas frases de romance tão compactas e irônicas como esta. De novo não se sabe as causas e a origem da ocorrência fantástica, ela apenas está no texto, de uma forma tão natural quanto dizer que a personagem, após um sonho inquieto, levantou-se para tomar o café da manhã.

O narrador de Kafka, assim como o de Rubião, acelera a narrativa quando o leitor precisa de informações e, ironicamente, freia o texto, com precisão realista, quando ninguém necessita de detalhes. É óbvio que, se Samsa realmente transformou-se num inseto, ele deve ter as características normais de um inseto normal. Nesse ponto, ele não acrescenta nada ao leitor. O mesmo faz o narrador de Rubião quando fornece o nome completo da personagem em A armadilha (RUBIÃO, 1988), mas sonega todo o contexto que originou a intriga. Ou ainda o convite que José Alferes recebe em O convidado (RUBIÃO, 1988), que omite o local, data, e motivo da festa, mas que inexplicavelmente pede aos cavalheiros que usem fardão, bicorne ou casa irlandesa, sem decorações. Quer dizer, o autor organiza o texto de forma que ele continue rápido quando precisaria ser lento, e esse é o caráter fundamentalmente elíptico da ironia fantástica .

O autor fantástico faz o mesmo que o contador de histórias de Calvino: o que julga não ser importante, essencial ao conhecimento do leitor, ele simplesmente salta. E realmente não há nada o que explicar já que o universo fantástico instaura uma outra realidade onde o extraordinário é regra e não exceção.

NATURALIZAÇÃO E AUSENCIA DE DESCULPAS

O caráter elíptico da narrativa serve de suporte para outros dois estratagemas textuais que consolidam a ironia fantástica . O primeiro deles vou chamar de efeito de naturalização, e se refere à habilidade ficcional que o autor tem de dispor as ocorrências insólitas na narrativa de forma realista.

Rubião pode nos dar quantos exemplos quisermos:

- Por acaso gosta de carne de coelho?

Não esperou a resposta:

- Se gosta, pode procurar outro porque a versatilidade é meu fraco.

Dizendo isto, transformou-se numa girafa.

- À noite - prosseguiu - serei cobra ou pombo. Não lhe importará a companhia de alguém tão instável?

Respondi-lhe que não e fomos morar juntos. (Rubião, 1993:22)

Neste extrato do conto "Teleco, o coelhinho", a Ironia fantástica é facilmente observada. A personagem conversa normalmente com um coelho. E como se não fosse suficiente um animal falante, Teleco transforma-se ainda numa girafa. Promete ainda novas metamorfoses. Diante de realidade tão instável, o protagonista não se espanta. Pelo contrário, vai morar junto ao ser insólito, trazendo a presença do fantástico para seu círculo ordinário e familiar.

O mesmo acontece em Os dragões (RUBIÃO, 1993), quando os animais tentam se adaptar à vida na cidade.

Apenas as crianças, que brincavam furtivamente com os nossos hóspedes, sabiam que os novos companheiros eram simples dragões. Entretanto elas não foram ouvidas. (RUBIÃO, 1993:37)

Nesse extrato, as palavras hóspedes e companheiros, referentes aos dragões, mostram como os seres fantásticos são introduzidos de forma familiar no mundo intradiegético. Além disso, o narrador afirma, eles eram simples dragões. O pasmo, porém, é reservado ao leitor. Afinal, como podem as personagens de Rubião conviverem afeitamente com acontecimentos tão inverossímeis?

O insólito é disposto com fidelidade naturalista, como se as ocorrências extraordinárias apenas reproduzissem lealmente a realidade. Para isso, o narrador normalmente vai direto ao ponto, e renuncia a adornos supérfluos, imagens brilhantes e comparações enfáticas que possam dar um destaque maior ao sobrenatural. O absurdo simplesmente faz parte da narrativa; é corriqueiro e usual como qualquer outra ação não-insólita. É assim em O ex-mágico...:

A platéia, em geral, me recebia com frieza, talvez por não me exibir de casaca e cartola. Mas quando, sem querer, começava a extrair do chapéu coelhos, cobras e lagartos, os assistentes vibravam. Sobretudo no último número em que eu fazia surgir, por entre os dedos, um jacaré. Em seguida, comprimindo o animal pelas extremidades, transformava-o numa sanfona. E encerrava o espetáculo tocando o Hino Nacional da Conchinchina. Os aplausos estrugiam de todos os lados, sob o meu olhar distante. (RUBIÃO, 1993:31)

Temos, em O ex-mágico..., um prestidigitador vestido em roupas casuais e que possui um olhar distante sobre tudo de extraordinário que faz. O que surpreende na narrativa é justamente a ausência de pirotecnia para descrever o espetáculo. Falta adjetivação, o que sugere também a falta de motivação do narrador para relatar os fatos. E o texto segue descrevendo as mágicas num processo de rotinização absurdo e angustiante até que termina num mundo completamente às avessas, onde o que rompe com o natural não são as mágicas, mas sim a inabilidade do mágico em fazê-las.

A consideração natural de fatos sobrenaturais é extremamente irônica. E para compreender o fantástico, sem tentar explicações metafóricas ou alegóricas, é preciso mesmo acatar as regras do jogo.

A outra característica da narrativa fantástica, que já foi discutida na PARTE II desta dissertação, é a ausência de explicações, mesmo que extraliterárias, para os acontecimentos absurdos. Não temos a interferência do maravilhoso no conto fantástico de Rubião. O sobrenatural não é explicado por intervenções divinas ou pelo aproveitamento mítico no real. Nos textos, o próprio fantástico se sobrepõe ao real, fazendo andares inteiros de um edifício desaparecerem no ar, um mágico em constante metamorfose, um vizinho invisível, entre outros.

Um leitor pouco atento poderia afirmar que no conto Os dragões (RUBIÃO, 1993) há uma referência ao monstro mítico, cujo corpo é uma mistura de réptil e ofídio, com garras e pele escamosa. Na mitologia, o dragão é usualmente representado com asas e cuspindo fogo. A palavra dragão veio do verbo grego derkein , que significa ver. Por sua força, agilidade e vista extraordinária, o monstro era, quase sempre, nas histórias míticas, um guardião que tomava conta de montanhas de ouro e de mulheres virgens.

Mas não há uma só linha no texto de Rubião que confirme essa alusão. Na narrativa, os dragões são retirados de sua posição mítica e tratados como simples animais domésticos. Os moradores da cidade pretendem batizá-los, instruí-los e, entre outras funções, sugerem seu aproveitamento na tração de veículos.

A naturalização do monstro mítico na diegese afasta qualquer potencial explicativo que o referente possa ter, e o ser, antes superior às leis da natureza e dos homens, é colocado num patamar abaixo, o que relembrando a classificação de Frye (s./d.) conota o gênero da ironia, porém, ao mesmo tempo, intimamente relacionado ao extraordinário e ao fantástico. Pois ao mesmo tempo em que os dragão são superiores ao nosso mundo real, eles são inferiores no mundo intradiegético. E quando esses universos se unem através do processo da leitura, temos um ruído extremamente irônico.

Mas quando falo na ausência de desculpas para o fantástico, afasto também qualquer explicação de ordem racional ou alegórica que possa justificar as ocorrências inusitadas na narrativa. Espero já ter deixado claro que essas leituras muitas vezes podem ser feitas até com certa pertinência, mas são rivais do efeito fantástico.

A maior adversária, entretanto, do fantástico e sua ironia é a leitura alegórica. É mesmo impossível impedir que um leitor realize uma interpretação alegórica. No entanto, insisto no fato de que não se pode falar em alegoria, pelo menos criticamente, a não ser que dela se encontrem indicações implícitas no interior do texto (como em O médico e o monstro , de Stevenson). Caso contrário, passa-se à simples interpretação do leitor, que caminha numa trilha particular de leitura ficcional. Dessa forma, não existiria texto que não fosse alegórico, pois é próprio da literatura ser interpretada e reinterpretada infinitamente - e essa é a contribuição principal do leitor. Contudo, o ponto ainda é que posso deduzir significados que os textos não disseram explicitamente, mas não posso fazê-los dizer o que não disseram ou mesmo o contrário do que disseram.

Pode-se ler, como já me sugeriram, os eventos de O convidado (RUBIÃO, 1988) como uma alegoria do destino. E como elementos dessa significação temos o táxi de Faetoni, que leva José Alferes à festa. A imagem de um veículo que nos guia a um destino mesmo sem sabermos ao certo onde é, de fato combina com a crença popular e de certos sistemas filosóficos que apoiam a existência de um poder de agenciamento onde os eventos são inalteravelmente pré-determinados. Há ainda Astérope, a mulher que nesta parte final do conto se apresenta como guia:

Curvado, no seu desconsolo, já aceitava a idéia de retornar ao parque quando lhe tocaram no braço. Assustou-se: era Astérope. Ela fingiu não perceber o temor estampado no rosto dele e arrastou-o consigo:

- Sei o caminho.

Saberia? - Dos olhos de Alferes emergiu avassaladora dúvida. Mas deixou-se levar. (RUBIÃO, 1988: 52)

No entanto, é difícil chegar a um sentido alegórico satisfatório em O convidado porque nada no conto nos incita a isso de uma forma explícita. Ou, pelo menos, nada no conto nos diz que ele não deve ser lido na sua forma literal. Além disso teríamos que desprezar uma série de elementos como a própria identidade do convidado, indefinida, e que todos (não se sabe porque) esperam; a fantasia pedida no convite que mais se parecia com os trajes de um rei espanhol, entre outros, que não cabem nessa definição alegórica.

Mas a melhor razão para não se ler O convidado, e outros contos de Murilo Rubião, de forma alegórica é que devemos respeitar a forma como o texto foi cuidadosamente construído para funcionar como uma máquina de contradições. O conto fantástico de Rubião afasta qualquer possibilidade de justificativa seja literária ou extraliterária para o inusitado. E, fazendo isso, indica que a narrativa deve ser levada no seu sentido literal como um meio de o leitor alcançar uma ultra-lógica onde o fantástico é naturalizado na realidade diegética. É possível dessa forma atingir uma ambiguidade extrema, onde o que é fantástico não pode ser visto como real porque de fato foge às regras do nosso mundo real, mas também não pode ser vista como insólito porque possui uma fruição que é muito próxima da nossa experiência cotidiana.

Diante dessa instabilidade, o leitor passa a questionar os conceitos antes determinados de real e irreal, e a relativização extrema insinua, com uma leveza irônica, que o que é fantástico também pode ser absurdamente verossímil. O processo inverso então também deve ser verdadeiro. Ou seja, ao apelar para o insólito, fazendo dele algo comum, a narrativa fantástica descoberta o absurdo do nosso cotidiano. De que outra maneira, senão extraordinária, poderíamos falar hoje do processo de burocratização da sociedade, como é mostrado em A fila (RUBIÃO, 1988). Ou ainda da situação opressora vivida por Gério, em O bloqueio (RUBIÃO, 1993), ou por Alexandre Saldanha Ribeiro, que sob a mira de um revólver aguarda numa sala blindada em aço, durante um ano, dez, cem ou mil anos. É tudo fantasia e realidade. E não há duvidas que essa estética manifesta terrivelmente a natureza do nosso tempo.

CONCLUSÃO

A ironia fantástica , que não deve ser confundida com a ironia no fantástico, é um processo altamente literário que desestabiliza os conceitos de real e irreal, alcançando uma outra lógica onde o insólito é disposto na narrativa com lealdade naturalista. O fenômeno, ao contrário de outros artifícios da retórica, não chega a dizer uma coisa e significar outra. É mesmo uma ironia instável ou de segundo grau, que celebra a ambiguidade sem apontar para um único significado que deva ser interpretado às avessas.

Toda essa estrutura é mesmo inerente ao fantástico, já que o gênero, retirando todas as escoras explicativas, se fundamenta essencialmente na incerteza do leitor. A narrativa fantástica, ironicamente, sugere que o insólito deva ser lido de forma literal, sem descodificações, e para isso trata o extraordinário de forma realista no universo diegético. Por outro lado, todo esse processo seria mesmo em vão se o leitor ignorasse as linhas da interpretação ideal traçadas pelo autor. O fantástico exige mesmo um certo tipo de leitura feita no equilíbrio da linha fina do extraordinário, sem que tendamos para uma justificativa alegórica. Enfim, descrevi uma série de estratégias utilizadas principalmente por Murilo Rubião para se conseguir o efeito da ironia fantástica na literatura.

Mas esse ensaio tem, até aqui, se colocado no interior do gênero. A ironia fantástica , como estrutura literária, foi definida de acordo com as suas categorias, estratégias e efeitos internos à narrativa. Agora, em conclusão, talvez seja necessário mudar de perspectiva. Um vez elaborado o fenômeno, surgem questões sobre seu uso na literatura em geral e na interação com o leitor. A questão, antes colocada, o que é a ironia fantástica ?, pode dar lugar agora a uma outra: para que a ironia fantástica ?. A primeira indagação tinha relação com a estrutura do processo irônico; a segunda visa às suas funções.

Uma das funções da ironia fantástica , e por que não dizer também do fantástico, é social. N O conto fantástico de Murilo Rubião , Audemaro T. Goulart (GOULART, 1995) defende a idéia de que ao invocar o insólito, fazendo dele algo rotineiro, o fantástico - a exemplo do que ocorre na narrativa muriliana - insiste em pôr a descoberto o processo de estrangulamento da personalidade dos indivíduos, (...) abrindo-nos os olhos ao o que não vemos à nossa volta.

A idéia de que existem componentes da realidade que passam desapercebidos por nós é mesmo assustadora, fantástica, porém plenamente coerente com a vida do homem contemporâneo. Vivemos na maior parte do tempo uma relação ingênua com a realidade, onde aceitamos passivamente várias idéias, crenças e valores. Admitimos explicações fragmentárias e parciais do real como se fossem plenas e satisfatórias. Há, de fato, pouco espaço e tempo no cotidiano para dúvidas e problematização das questões. Nesse sentido, nosso espírito é vítima do que Marco Antônio Leite (LEITE, 1983) chama de enfeitiçamento ou quebranto, cujo processo inicia muito cedo: na primeira infância, na medida que aprendemos a falar, que os nossos próprios gestos se especializam. Está na linguagem a nossa relação com o mundo e o nosso processo de humanização, mas aprender que existem determinadas maneiras de dizer as coisas significa, ao mesmo tempo, o risco de se esquecer que as coisas sempre são mais do que podemos dizer delas.

A ironia fantástica procura denunciar essa nossa relação às vezes fictícia com a realidade. Ela é uma figura literária que mostra ao leitor sua incapacidade de lidar com as categorias do real e do irreal, e, talvez, por isso seja tão desnorteadora. Através dessa inversão infinita do ordinário e do extraordinário todas as verdades se tornam indeterminadas, o que leva o leitor a perceber que o universo é essencialmente absurdo e que não há coerência alguma na realidade. Mais ainda, insinua que seu poder de conhecimento é inerentemente parcial e limitado.

Em termos de figura de reconstrução, a ironia fantástica , aspirando à instabilidade infinita convida o leitor a juntar-se ao autor no mergulho a um abismo sem fim. E é de fato o único ato nobre que nos resta fazer diante de um texto fantástico. Devemos apreendê-lo em sua forma literal e talvez, só assim, seja possível extrair da narrativa algum significado inteligível e transformar o fantástico em algo estável. Mas o efeito de estabilidade é efêmero e logo se desfaz porque tudo aquilo que é verossímil emana do absurdo (e vice-versa), e essa é uma contradição que não pode ser desfeita.

A narrativa fantástica não é construída para dar conforto ao leitor. Muito pelo contrário, ela apresenta uma trilha onde cada passo nega o anterior e a revelação final é que não se pode chegar a lugar algum. Desde que o universo é instável, a noção de realidade é instável, a experiência de leitura pode ser finalmente sacudida para dentro dessa mesma verdade extremamente relativa. E aí está a função social do fantástico: alertar o leitor para a fragilidade de qualquer conceito tido e havido como definitivo.

Depois deste exame da importância social da ironia fantástica , volto à literatura para discutir as funções do fenômeno no próprio interior da obra. A primeira função, de ordem pragmática, é a de prender a atenção do leitor. A ironia fantástica se desenvolve como um jogo, rico em significados duplos e instáveis, que nunca termina. Mesmo após a leitura, o desconforto permanece. E a sensação lúdica, de se poder reconstruir um sentido que no final mostra-se impraticável, contribui para que o fantástico seja um gênero corrente.

O que move o leitor no texto fantástico é a tentativa, inútil, de encaixar as peças do quebra-cabeça. Mas a inversão contínua de sentidos sugere que não há mesmo significado para ser reconstruído e que a atenção do leitor deve se deslocar para o processo literário em si, onde toda a intriga de contradições foi elaborada. A ironia fantástica , como toda a ironia instável, não é um fenômeno para ser decifrado. Ela é muito mais que uma charada ou uma mensagem em código; é alguma coisa para ser saboreada e não meramente resolvida.

Outra função da ironia fantástica na literatura é de ordem semântica. Ela marca o discurso de uma maneira que provém seu destinatário de informações para uma leitura ideal. No caso do fantástico, o leitor deve mesmo aceitar a instabilidade entre o ordinário e o extraordinário, e através dessa contradição apreender da narrativa um significado ao mesmo tempo real e absurdo.

Marcar um texto irônico significa estabelecer, intuitiva ou conscientemente, alguma forma de contradição perceptível: disparidade, incongruência ou alguma outra anomalia que pode então ser assimilada pelo destinatário, que reconhecerá a característica desestabilizadora do texto.

É o fenômeno irônico que dá o tom insolúvel à narrativa fantástica. Ele impede que o texto seja lido de forma inequívoca e mostra ao seu destinatário como a ficção deve ser recebida em seu processo ambíguo, e não simplesmente descodificada. Dessa forma, a ironia fantástica lida com uma co-presença de significados opostos que guiam o leitor a uma significação instável.

Finalmente, devo dizer aqui que a ironia fantástica nos ajuda a compreender melhor o processo literário. O fenômeno evidencia, por exemplo, o papel fundamental do leitor para uma reconstrução do sentido na obra. O próprio fantástico para existir como efeito literário necessita da colaboração de seu destinatário. Por mais que se crie uma estrutura propícia ao surgimento do gênero, nada irá funcionar se o leitor, por exemplo, optar por uma interpretação alegórica. E esse processo de recepção parece ser mesmo incontrolável, o autor pode indicar os caminhos para uma leitura ideal, mas não pode impedir que outras leituras se realizem.

Além disso, a ironia fantástica instaura um estatuto paradoxal que parece ser também o da arte literária. O mundo fantástico representa um rompimento estético com o mundo real, mas que, ao mesmo tempo, atingi uma realidade mais profunda que aquela representada pela superfície casual das coisas que conhecemos na nossa experiência cotidiana. Toda literatura, de certa forma e grau, assume essa antítese entre o verbal e o transverbal, entre o real e o irreal. Uma narrativa, embora construída e assumidamente artificial, pode ser a imagem precisa da vida na sua relação com a absoluto. Literatura é fruição e sempre nos diz mais do que o discurso restrito ao plano do enunciado parece dizer. A literatura ultrapassa a distinção do real e do imaginário, daquilo que é e não é. Mas ainda assim, por métodos científicos e críticos, tentamos cercá-la, explicá-la, transformando tudo o que há de literário em coisas inteligíveis. A ironia fantástica talvez tente educar, nós leitores, para o mergulho no abismo. Ou pelo menos ensinar-nos a conviver com essa leveza, com essa autonomia que a literatura tem de mudar, sem aviso, para o sentido oposto, e que nos parece insuportável.

março de 1997.

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