49 Congreso Internacional del Americanistas (ICA)

Quito Ecuador

7-11 julio 1997

 

Márcia Suzuki

49th INTERNATIONAL CONGRESS OF AMERICANISTS

Quito, Ecuador, July 7-11, 1997

SYMPOSIUM LIN 04

INDIGENOUS LANGUAGES OF LOWLAND SOUTH AMERICA

Suruwahá: OCP e aquisição na definição do status fonêmico das sibilantes

Márcia Suzuki

UNIR

ABSTRACT

This paper aims to discuss the problems in the determination of the phonemic status of the sibilants in the Suruwahá language of Brazil and proposes an alternative treatment to them. Focusing on the analysis of the sibilants it demonstrates that the phonemic status of a segment cannot be determined only on the basis of the local regular contrastive relations. In some cases, the phonemic inventory can only be defined on the basis of an analysis which considers segmental and prosodic aspects, approaching the whole phonologic system in an integrated way. The analysis proposed in this paper reduces the number of rules necessary to describe the palatalization of the consonants and highlights the symmetry of the system. To understand the functioning of the problematic segments within the general picture of the phonological grammar of the language, aspects such as syllabicity alternations between high vowels and glides, effects of OCP on the geminate vowels, structural ambiguity and constraint conflicts in phonology acquisition are brought into the discussion.

1. Introdução

A minha proposta neste trabalho é desenvolver uma discussão com relação ao status fonêmico das sibilantes na língua Suruwahá e propor um tratamento alternativo para as mesmas1. Demonstro que os procedimentos da fonêmica tradicional, como o uso de pares mínimos e análogos, não são decisivos no estabelecimento do status fonológico destas consoantes. Refuto a hipótese de neutralização de contraste entre elas e proponho uma nova análise que trata as sibilantes palatais como alofones das alveolares em ambiente precedendo uma sequência tautossilábica de vogais onde o i é a primeira vogal2 A análise que proponho neste trabalho dispensa o uso das diversas regras que eram necessárias para dar conta de explicar os processos de palatalização que ocorrem na língua. Muito embora tenha-se percebido, desde o início das pesquisas, que os processos de palatalização de consoantes eram bastante centrais no sistema da língua, nenhuma das descrições conseguiu evidenciar a relação entre todos estes processos. Na análise proposta em Suzuki (1995a), que faz uso da Gerativa Clássica, estes processos são tratados ora como regras de inserção progressiva de i , ora como regras de posteriorização das sibilantes. Já em Suzuki (1995b), um trabalho que faz uso de Geometria de Traços, aparecem regras de palatalização progressiva das sibilantes, palatalização progressiva das não-sibilantes, palatalização regressiva do s e palatalização regressiva do z . Já naqueles trabalhos, a dificuldade de se combinar os diversos processos de palatalização em uma só regra indicava que alguma generalização importante não estava sendo percebida:

... não consideramos completamente satisfatório o tratamento dado neste artigo aos processos de palatalização porque foram necessárias quatro regras para cobrir processos fonológicos que parecem bastante relacionados entre si. (1994:66).

Acredito que o tratamento proposto neste trabalho resolve este problema, na medida que consegue cobrir todas as palatalizações com apenas uma regra. Apresento evidências de naturezas diversas para apoiar esta análise; evidências morfológicas, empréstimos, análise das sequências vocálicas e estudos da aquisição da fonologia Suruwahá por parte das crianças. Além de simplificar a análise, esta proposta tem implicações interessantes com respeito a atuação da OCP e ao tipo de sequências vocálicas que são permitidas no input de maneira a assegurar sílabas ótimas do tipo CV(V). Embora Suruwahá não apresente contraste superficial entre vogais longas e breves, existem, de fato, vogais geminadas no léxico. O framework da OT (Teoria da Otimalidade) é introduzido na parte final do artigo para explicar de que maneira a manutenção da sílaba ótima toma precedência sobre outros tipos de restrições fonológicas conflitantes no sistema fonológico do Suruwahá.

2. Aspectos segmentais e prosódicos da fonologia Suruwahá

A proposta corrente para o inventário de fonemas Suruwahá (Márcia Suzuki 1995a, 1995b e 1996; Everett 1995 e Dixon 1995) distingue 12 fonemas consonantais e cinco fonemas vocálicos , como se verifica nos quadro (1) e (2). As vogais podem se combinar e formar ditongos de sonoridade crescente. Segundo esta análise, a distribuição dos fonemas sibilantes é assimétrica: a língua possuiria duas sibilantes surdas (o s e o ), e apenas uma sibilante sonora, (o z ). Assim, o seria o único fonema palatal do sistema.

(1) Consoantes.

labiais alveolares palatais dorsais
oclusivas t k
b d g
nasais m n
fricativas z
s h
flap r

(2) Vogais.

anteriores posteriores

altas

i

u
baixas e a

distendidas labializadas

O padrão silábico é simples: CV(V) . Ou seja, as sílabas são formadas por um onset obrigatório seguido por um núcleo vocálico que pode ser formado por uma vogal ou por um ditongo de sonoridade crescente. A organização interna da sílaba obedece a uma hierarquia de ressonância que prevê três posições, com a restrição de que elementos de mesma ressonância não podem ser adjacentes. As vogais altas i e u têm funcionamento ambíguo dentro do sistema, podendo ocupar qualquer uma das três posições: (i) primeira posição da sílaba, funcionando como consoante; (ii) a segunda posição, funcionando como primeira parte de um ditongo crescente numa sílaba CVV ; (iii) ou a posição de pico silábico.

Sílabas V ocorrem somente nas margens das palavras. Como o domínio da silabificação em Suruwahá é a palavra, achamos apropriado adotar a noção de extrametricidade para tratar estas sílabas anômalas.

Underlying and intermediate phonological representations often do not constitute sequences of well-formed syllables within a given language. Where such violations occur at the edge of the syllabification domain, they are often tolerated on the surface, and aberrant strings result... In such cases, it has been useful to adopt the notion of extrametricality introduced by Liberman and Prince (1977:239) and developed by Hayes (1980) for metrical stress theory: extrametrical (or extraprosodic, or extrassylabic) are: (1) limited to the edge of the stress and syllabification domain, respectively, (2) invisible to the rules of constituent construction, and (3) are adjoined to existing metrical structure late in the derivation.

(Blevins 1995:223)

Assim, vogais isoladas no início ou no final das palavras são invisíveis às regras de silabificação no Suruwahá, podendo ser silabificadas mais tarde na derivação, quando serão adicionadas a segmentos de sílabas adjacentes.

Cada sílaba tem uma mora de duração e a tonicidade têm função apenas demarcativa. O pé fonológico é binário, construído da direita para a esquerda e com núcleo à direita, sendo que o acento primário ocorre no pé mais à direita. A palavra mínima permitida é formada por um iambo, e a palavra ótima, preferida pelo sistema, é aquela que possui dois pés binários3. Um aspecto interessante da língua é justamente a interação entre estas restrições prosódicas e as regras de reajustamento que elas desencadeiam com objetivo de conformar as sequências subjacentes a estas restrições. Aspectos prosódicos são cruciais na definição do status fonêmico das sibilantes, e serão retomados mais adiante na discussão.

Existe um processo de palatalização das consoantes que é central no sistema fonológico do Suruwahá. Somente com base na proposta deste artigo é que este processo pode ser descrito através de uma única regra, a saber:

(3)

C [+ palatal] / { i __

__ i V

}

Ou seja, toda consoante se torna palatalizada quando segue i ou quando precede sequência vocálica iniciada em i .

Ilustro este breve resumo do sistema fonológico de Suruwahá com os seguintes dados4.

(4) /batakara/ [batakara] ferida

/saduui/ [saaduwi] abano

/bami/ [baami] água

/uniak/ [uunak] minha cabeça

/huaua/ [hawa] eu como

/igat/ [iigat] caça

// []5 muratinga

3. O Problema das Sibilantes

Embora no quadro fonêmico apresentado em (1) apareçam três fonemas sibilantes, podemos encontrar na forma fonética tanto s e z quanto e . Diversos pares mínimos e análogos que parecem comprovar a oposição fonológica entre s e :

(5) [asa] barreiro [aa] preto

[sama] não faça [ama] verme

[kasini] muito [haini] espinho

[asu] minha sogra [au] meu irmão

[suburi] umbigo [ubukwa] nome.F6

Exemplo de pares mínimos e análogos deste tipo foram usados como evidências de que as sibilantes surdas s e deveriam ser consideradas fonemas distintos em Suruwahá. Existia, entretanto, uma lacuna da distribuição do s ; ele nunca ocorreria precedendo ditongo iniciado em i . A solução encontrada foi a seguinte: o contraste entre estas sibilantes seria neutralizado antes de ditongo iniciado pela vogal i .

No presente artigo contesto esta análise. Argumento que pares mínimos não são evidência decisiva no estabelecimento dos fonemas. As palavras em (5) indicam que para cada par apresentado existe algum elemento em oposição. Mas a determinação exata de qual elemento é responsável por esta oposição depende de uma interpretação anterior que que se faz dos segmentos ambíguos. A análise mais óbvia diria que a oposição se dá entre sibilantes alveolares e alveopalatais. Isso levaria à conclusão de que elas são fonemas distintos. A análise que eu proponho refuta esta hipótese com base numa interpretação diferente das sibilantes palatais. No caso, interpreto a sibilante como uma sequência de dois segmentos: uma sibilante alveolar seguida por uma vogal i . Esta decisão teve que ser tomada antes de se realizar a análise dos pares de palavras foneticamente semelhantes. Só assim o uso de pares mínimos ou análogos passou a ter alguma utilidade como procedimento analítico. Ficou claro que a oposição relevante nestes pares de palavras é a presença ou a ausência da vogal i . Isso mostra que a análise que se baseia em somente em pares mínimos é circular e não apresenta grande valor explanatório.

Minha proposta é a seguinte: (i) Não existe oposição fonológica entre as sibilantes alveolar e alveopalatal s e , logo, não há neutralização de contraste entre elas; (ii) a sibilante alveopalatal é a manifestação superficial do fonema s quando precedendo uma sequência vocálica tautossilábica onde a primeira vogal é o i :

(6) /siV/ [V]

Segundo esta análise, as palavras em (5) são manifestações superficiais das seguintes entradas lexicais:

(7) /asa/ barreiro /asia/ preto

/sama/ não faça /siama/ verme

/kasini/ muito /hasiini/ espinho

/asu/ minha sogra /asiu/ meu irmão

/suburi/ umbigo /siubuka/ nome.F

Até aqui esta análise é simples. Não é difícil se supor a motivação fonética para um processo como este, especialmente numa língua como Suruwahá, onde toda sequência tautossilábica de vogais se funde numa só mora (Everett 1995 e Suzuki 1995a). A vulnerabilidade das sibilantes alveolares a processos de palatalização é quase universal. O movimento muscular que abaixa a língua após a produção da sibilante alveolar encontra imediatamente uma pressão muscular contrária que tenta levantá-la novamente para a produção do i . Duas tensões musculares opostas tendem a tornar a articulação destas consoantes relativamente imprecisas, causando fricção extra (Burquest & Payne, 1993, pp94).

Uma evidência negativa que pode ser acrescentada às demais para justificar esta análise é a ausência da forma fonética siV . Formas fonéticas como as abaixo seriam agramaticais:

(8) *[husia]

*[siamari]

*[tasiuna]

O fato de este tipo de sequência nunca ocorrer superficialmente, apesar de ser perfeitamente possível tanto em termos de fonemas quanto em termos de estrutura silábica, nos sugere que ele sofre algum processo e se manifesta de alguma maneira diferente.

4. Alternância entre Glides e Vogais Altas

Um outro aspecto da fonologia Suruwahá que é relevante para a compreensão do funcionamento das sibilantes é a alternância de silabicidade entre glides e vogais altas. Em Suzuki (1995a) propus uma análise que interpreta os glides como vogais altas em posição de onset7 .Segundo esta análise, não existe oposição fonológica entre u e w , nem entre i e d. Esta análise é coerente com a teoria da sílaba, que prevê que a silabificação não faz parte do input , mas é atribuida por regras (Blevins 1995). Segundo Blevins, várias evidências sugerem que a estrutura silábica não esteja presente na representação subjacente. Uma destas evidências é a seguinte:

...segments, in many languages exhibit syllabicity alternations which can be viewed as the simple result of derived syllabification. (Blevins, 1995, 221)

Parece ser exatamente este o caso das vogais altas em Suruwahá. Como são segmentos que, devido à sua própria natureza fonética, são ambíguos quanto ao seu valor de silabicidade, nenhuma informação com relação à sua silabificação pode ser retirada do segmento por si só. Eles só terão seu status silábico definido em função das características sonoras dos segmentos que os circundam. Neste sentido, não pode haver nenhuma diferença lexical entre u e w , por exemplo. A diferença entre eles é definida no momento da silabificação. Ou seja, dependendo das possibilidades de combinação articulatória com os segmentos vizinhos, um dado segmento, que no input é labial e alto, funcionará como vogal u se cair num núcleo silábico ou como consoante w se cair numa margem silábica. Seguindo este raciocínio, não existe oposição fonológica entre as vogais altas i e u , e as suas contrapartes consonantais, e w , respectivamente.

Uma alternância deste tipo entre u / w não é novidade na literatura fonológica, já tendo sido reportada em várias línguas (Blevins 1995). Já a alternância i / parece menos comum. Ao que tudo indica, o que acontece no Suruwahá é que o glide palatal tem suas características consonânticas maximalizadas num nível bastante superficial. Assim, o que se esperaria ser um glide palatal simples, um y , manifesta-se como no nível fonético. A compreensão desta alternância é fundamental para a discussão deste artigo, já que a manifestação fonética da vogal anterior alta em posição de onset é justamente a de uma sibilante alveopalatal sonora. Fundamental também é a compreensão de que w e 8 não fazem parte do inventário de fonemas de Suruwahá.

A exemplo do que ocorre em Lenakel (Lynch 1974)9, esta alternância é fortemente apoiada no Suruwahá através de evidências morfológicas. Comecemos pela análise da relação entre a vogal alta u e o glide labial w . O prefixo para primeira pessoa do singular, u-, funciona de maneira ambígua. Em raízes de substantivos obrigatoriamente possuídos ele se combina com o sufixo de posse (que no caso da primeira pessoa tem significante zero) para indicar o possessor, e manifesta-se sempre como vogal:

(9) /u + dam + / [udam] meu pé

/u + niak + / [unak] minha cabeça

/u + wiarubi + / [uwarubi] minha orelha

Aparentemente o mesmo afixo, quando ocorre com raízes verbais pode manifestar-se como vogal ou como consoante. Em raízes iniciadas por consoante ele sofre metátese com esta consoante, funcionando como primeira vogal num ditongo de sonoridade crescente, criando sílabas CVV 10.

(10) /hawa/ [hawa] comer /u + hawa/ [hawa] eu como

/kaba/ [kaba] pilar /u + kaba/ [kaba] eu pilo

Já em raízes iniciadas por vogal ele aparece antes desta vogal, funcionando como consoante, criando sílabas CV .

(11) /aga/ [aga] pegar /u + aga/ [waga] eu pego

/ama/ [ama] menstruar /u + ama] [wama] eu menstruo

Vejamos agora a relação entre a vogal anterior alta i e o glide . Em substantivos obrigatoriamente possuídos O morfema verbal para a segunda pessoa do singular é o prefixo i- , que se combina com o sufixo de posse -ni para indicar a pessoa do possessor.

(12) /i + dam + ni / [idamani] teu pé

/i + niak + ni / [inakani] tua cabeça

/i + wiarubi + ni / [iwarubani] tua orelha

Em raízes iniciadas por consoante este prefixo sofre metátese com a consoante inicial, dando origem a sílabas CVV , com ditongos monomoráicos de sonoridade crescente:

(13 ) /hawa/ [hawa] comer /i + hawa/ [hawa] você come

/gawa/ [gawa] andar /i + gawa/ [gawa] você anda

Em raízes iniciadas por vogal, este prefixo funciona como consoante , dando origem a sílabas do tipo CV :

(14) /aga/ [aga] pegar /i + aga/ [aga] você pega

/uhuna/ [uhuna] assustar-se /i + uhuna/ [uhuna] você se assusta

Um fato interessante, que confirma a análise de ditongos na língua, é o que ocorre quando o prefixo i- precede raízes iniciadas por CV , nas quais o V é a vogal . Considerando que esta vogal raramente se combina com outras para formar ditongos, o que esperaríamos encontrar aí?

(15 ) /kh/ [kh] medicar /i + kh/ [kih] você medica *[kh]

/bdad/ [bdad] colocar /i + bdad/ [bidad] você coloca *[bdad]

Este processo mostra que a vogal do prefixo -i é mais ligada ao núcleo da sílaba do que à margem. Quando uma vogal alta tem que ser introduzida numa sílaba, ela pode ocupar duas posições: onset ou núcleo . No caso da sílaba já possuir um onset, ela irá se instalar no núcleo. Poderá então, dependendo da qualidade da vogal que estiver alí, se combinar com ela formando um ditongo, como vimos em (10) e (13), ou substituí-la completamente, como vimos em (15).

É importante que tenhamos em mente a alternância de silabicidade entre i e enquanto tratamos do problema das sibilantes em Suruwahá. Isto porque existem dois tipos de na língua. Este, que foi discutido até aqui, e um outro, que é a manifestação fonética da fusão entre um z e um i antes de outra vogal tautossilábica. Este processo exibe simetria com o que acontece com a sibilante surda. Ambas sofrem palatalização quando precedem sequência tautossilábica de vogais iniciada por vogal i . Voltando à morfologia verbal, vejamos o que acontece quando o prefixo pessoal i - é colocado numa raiz onde a primeira vogal é uma sibilante.

(16) /sawa/ [sawa] lavar /i + sawa/ [awa] você lava

/zawa/ [zawa] se zangar /i + zawa/ [awa] você se zanga

Este processo trás à tona a proposta principal deste artigo, que é a de que a sibilante surda é a manifestação fonética da fusão entre a consoante s e a vogal i . Além disso, esta análise realça a simetria do sistema fonológico, mostrando que sibilantes surdas e sonoras funcionam da mesma maneira.

Poderíamos ainda tomar os empréstimos como evidência adicional para esta análise. A pronúncia Suruwahá para um nome como Marcia, por exemplo , é maa . Como o inventário Suruwahá possui os fonemas m, s, i e a , seria de se esperar que eles conseguissem produzir pelo menos algo como masia, e isto não é o que acontece. Seguindo o padrão acima, s e i são fundidos num único segmento, o , gerando a pronúnica maa.

(17) /masia/ [maa] Márcia

Esta pronúncia é consistente em todos os casos de palavras emprestadas do português que possuem s seguido de i mais outra vogal tautossilábica.

As evidências apresentadas até este ponto apontam para uma relação de alofonia entre sibilantes alveolares e palatais, mas não eliminam a possibilidade de que sejam fonemas distintos que se neutralizam antes de iV . Especialmente nas palavras monomorfêmicas, onde não existem evidências morfológicas, uma análise que propõe arquifonemas deveria ser considerada. Desejo refutar também a possibilidade de arquifonema através de evidências na área de aquisição da fonologia e de percepção dos fonemas por parte dos falantes nativos. Antes porém de entrar nesta discussão, levanto um possível problema levantado pela análise que proponho: como dar conta da aparente oposição fonológica entre si e i ?

5. Vogais Altas Geminadas

Como já foi dito, estou argumentando neste trabalho que é a manifestação fonética da fusão entre s e i antes outra vogal tautossilábica. Esta vogal pode ser qualquer uma das vogais do Suruwahá, inclusive o próprio i :

(18) /sii/ [i]

Segundo esta análise, palavras com i superficias são interpretadas da seguinte forma:

(19) /siina/ [ina] doce

/kasiitikiri/ [kaitikiri] fel

Esta interpretação decorre da análise proposta acima e é necessária para dar conta de explicar a oposição superficial entre si e i :

(20) /kasini/ [kasini] muito

/hasiini/ [haini] espinho

A estranheza a esta análise é previsível. Como sustentar esta interpretação se Suruwahá não apresenta contraste entre vogais breves e longas? Não seria abstração demais postular vogais geminadas na forma subjacente que nunca se manifestam na superfície?

Parte da minha argumentação se baseia na análise das sequências vocálicas possíveis no léxico do Suruwahá e parte se baseia nos processos de aquisição da linguagem por parte das crianças.

Embora o Suruwahá não apresente contraste superficial entre vogais breves e longas, precisamos considerar a existência de vogais geminadas no léxico para dar conta de explicar o contraste em formas como as de (21). No início deste artigo discuti como a hierarquia de ressonância organiza os segmentos dentro da sílaba. Aquela análise infere que segmentos com o mesmo valor de ressonância não podem ser adjacentes. Isso seria coerente com o Princípio de Contorno Obrigatório (OCP), que exerce uma pressão para dissimilação no sistema fonológico das línguas através de evitar estruturas semelhantes em adjacência:

At the melodic level, adjacent identical elements are prohibited.

(McCarthy 1986b:207)

Este princípio porém, não é fixo nem em termos do tipo de estruturas às quais se aplica nem em termos do plano onde ele é ativado. Uma primeira interpretação para o Suruwahá seria que o OCP estaria ativo no sentido de eliminar estruturas idênticas no input , já que elas nunca se superficializam.

Entretanto, para dar conta de explicar os dados de Suruwahá, temos que considerar que existem certas sequências de vogais idênticas que são permitidas no input - somente aquelas sequências que permitem a silabificação do tipo CV(V) . Como as vogais i e u não são especificadas quanto ao traço [+/- consonantal], elas podem ocupar tanto posição de núcleo quanto posição de onset. É justamente essa flexibilidade na hora da silabificação que vai permitir que as sequências de vogais altas sejam silabificadas sem problemas. Outros tipos de sequências, (de vogais baixas ou de consoantes) se ocorressem no input , não poderiam ser silabificadas de maneira a respeitar o padrão silábico. Isso mostra que a restrição quanto à adjacência de segmentos de mesma ressonância não se dá no input , e que a OCP não é ativa no Suruwahá no sentido de impedir estas sequências idênticas adjacentes.

Sem considerarmos a presença de vogais alta geminadas no léxico não conseguiremos explicar o contraste entre formas como as abaixo:

(21a) /hua/ estou (21b) /huua/ pilão

skeletal tier CVV CVCV

| | | | | / |

root tier h u a h u a

| / | |

moras

A oposição entre as duas formas é definida em termos do mapeamento do u a uma ou a duas posições no skeletal tier . O uu de (21b) é um caso claro de geminadas verdadeiras , isto é, geminadas em posição interna de morfema. Neste caso, um único conjunto de traços articulatórios é mapeado em duas posições deferentes no skeletal tier .

Assim sendo, a formas abaixo são perfeitamente aceitáveis:

(22) / huua / [ huwa ] pilão

/ hiia / [ hia ] sim

Desta forma, anula-se uma das objeções à análise proposta neste artigo, que é justamente o fato de a forma lexical postulada, [sii] , possuir uma sequência de vogais idênticas. A forma /sii/ é uma entrada lexical possível porque sequências de ii não são barradas pela restrição de OCP. Pelo contrário, precisamos admitir a existência de vogais altas geminadas, que embora nunca se superficializem como vogais longas, são necessárias para dar conta de explicar o contraste entre determinadas formas superficiais.

Sequências de ii podem ser verificadas também em situação de fronteira morfomorfêmica. Veja o exemplo abaixo:

(23) /zawa + si + ru + ba + da / [zawaubada] Ela vai ficar brava

/zawa + si + ri + ba + da/ [zawaibada] Ele vai ficar bravo

O que acontece nestas construções é que o flap nos sufixos de gênero feminino, -ru e masculino, -ri , é apagado na posição de fronteira morfêmica. A regra de ressilabificação cria então sílabas CVV formadas por sibilante alveolar mais sequência vocálica tautossilábica iniciada em i . O que acontece então é previsível:

(24) /si + u/ [u]

/si + i/ [i]

O próximo passo na nossa pesquisa seria tentar descobrir como os falantes nativos percebem e interpretam a sílaba [i] em palavras monomorfêmicas. Isto poderia ser verificado em testes psicolínguísticos ou num programa de alfabetização. É possível que eles tenham consciência linguística de que não se trata de uma consoante diferente, mas do próprio s 11. Neste caso eles teriam dificuldades de aprender um símbolo diferente para grafar estas sílabas. Como os Suruwahá não demonstram nenhum interesse em alfabetização, ainda não temos condições de verificar isto. Vale registrar apenas um exemplo que aponta para a percepção que os falantes nativos têm do contraste entre as formas fonéticas [si] e [i] :

(25) [na imeki ka si koni ha ma?] (ela disse) Será que foi o meu marido ?

[na hazawa ka i ka ha ma?] (ele disse) Será que foi a minha esposa ?

Embora tenhamos condições de fornecer uma tradução livre para cada um dos enunciados acima, ainda não sabemos o significado todos os morfemas envolvidos. O relevante para a discussão é que existe um contraste entre as formas fonéticas [si] e [i] nestes dois enunciados e que este contraste é percebido por eles. Quando perguntamos por que no primeiro enunciado tem que ser [si] e no segundo tem que ser [i] , obtivemos a seguite resposta: É porque o primeiro é feminino e o segundo é masculino. Então pedimos que ele repetisse lentamente cada um dos enunciados, separando as sílabas. No enunciado feminino a sílaba [si] foi pronunciada sem nenhuma mudança. Já no enunciado masculino, a sílaba [i] foi substituída pela sequência [si i] .

Neste ponto da discussão o leitor poderia perguntar porque não encontramos outras sequências de Cii no input . Esta pergunta é absolutamente legítima. Se a fonologia da língua manteve sequências de sibilante mais i duplo, porque não manteve também as sequências de não-sibilante mais i duplo ? Não deveríamos esperar encontrar também inputs do tipo tii , mii , rii , etc?

Para responder a esta pergunta precisamos fazer uma breve referência à importância do aspecto perceptivo na construção dos inventários fonêmicos.

The third source for natural phonological processes might best be understood as psychological, since it involves mental processing. Language is an instrument of communication; and, as such, correct perception and interpretation on the part of the hearer are obligatory for language use. Thus, the tendency toward assimilation is in tension with a counter-tendency to keep phonemes distinct and easily recognizable. The operation of this principle is most easily seen in phonemic inventories.

(Payne 1993;85)

Segundo este princípio, as línguas têm a tendência de perder contrastes que exigem um esforço muito grande de percepção por parte do ouvinte. No caso do Suruwahá, onde todas as sílabas possuem somente uma mora de duração, os ouvintes teriam que perceber diferença entre inputs como ti e tii , por exemplo, com base apenas numa palatalização da consoante t .

(26) /ti/ [ti]

/tii/ [ti]

Com uma diferença acústica tão sutil, é compreensível que contrastes deste tipo tenham se perdido. Este princípio se aplica a todas as sequências de consoante mais vogal alta dupla, exceto às sequências de sibilante mais i duplo. Por que? Justamente porque o efeito acústico da palatalização das sibilantes é muito mais facilmente perceptível do que este mesmo efeito nas não-sibilantes. O fato de o ouvinte conseguir perceber facilmente a diferença entre [si] e [i] contribuiu para que se mantivesse a oposição fonológica entre os inputs /si/ e /sii/ , respectivamente.

6. Lacunas na Distribuição das Sibilantes

Voltemos agora a discutir a questão do arquifonema. Tudo o que foi dito até aqui consiste de argumentos em favor da interpretação de muitas das instâncias de em Suruwahá como outputs de si precedendo vogal. A consequência desta análise poderia simplesmente ser a seguinte: existe o fonema , mas o contraste entre ele e o fonema s (em ambiente precedendo ditongo iniciado em i ) é neutralizado. Existiria então uma regra de palatalização tornaria o output do s num certo ambiente, coincidente com a forma fonética do .

(27) /s/ [] / _ iV.

[s] / nda

// [] / em qualquer ambiente

Para as palavras onde não existisse evidência morfológica para se decidir qual dois dois inputs estaria por trás do output em questão, o seria como qualquer caso clássico de arquifonema. Entretanto, certas assimetrias na distribuição das sibilantes palatais dentro do sistema fonológico de Suruwahá me levam a refutar a hipótese de arquifonema.

Existem várias lacunas intrigantes na distribuição das sibilantes. O quadro a seguir mostra estas lacunas de maneira esquematizada. As sibilantes são encontradas na forma fonética nas seguintes combinações com as vogais (onde a representa qualquer vogal, exceto i , e # representa silêncio ):

(28 ) a __ a a __ i i __ i # __ a # __ i

asa asi * isi # sa * # si
aa ai ii # a # i
aa ai ii # a # i
aza *azi *izi # za * # zi

6.1. A Palatalização nas Sibilantes

A mais simples delas pode ser observada na terceira coluna deste quadro. A ausência das sibilantes alveolares seguindo vogal i pode ser explicada através da regra palatalização proposta no início deste artigo (3). Todas as consoantes do Suruwahá se tornam palatalizados quando seguem vogal i . No caso de segmentos não-sibilantes, este processo manifesta-se como uma co-articulação palatal na consoante. No caso das sibilantes, devido à sua própria natureza fonética, toda a articulação se torna palatal:

(29) /igat/ [igat] animal

/siina/ [ina] doce

/agi + ha/ [agiha] no caminho

/i + marus + ni/ [imarusani] sua bochecha

/isaha/ [iaha] panela

/i + suburi + ni/ [iuburini] seu umbigo

/izu/ [iu]12 fezes

/i + zum + ni/ [iumani] seu dente

6.2. Duplicação de Moras

A próxima lacuna encontra-se na primeira linha da última coluna e é a ausência de s em início de palavra, antes de vogal i . Para compreendermos porque a sibilante alveolar é eliminada nesta posição precisamos fazer referência à prosódia da língua. Como dissemos no início deste capítulo, Suruwahá apresenta uma particularidade interessante na sua estrutura métrica. A palavra mínima admitida pelo sistema corresponde a um pé binário, e a palavra ótima corresponde a dois pés binários. Como nem todas as entradas lexicais possuem este padrão, a fonologia da língua lança mão de regras que aumentam o tamanho de palavras mais curtas e diminuem o tamanho de palavras mais longas com o fim de alcançá-lo. O que nos interessa no momento são as regras que aumentam o tamanho das palavras através da duplicação da primeira vogal (Suzuki 1995a). Veja alguns exemplos:

(30) // [] muratinga

/bami/ [baami] água

/awani/ [aawani] marimbondo

/hi/ [hii] ele

Como vimos em (18), a manifestação fonética da sequência sii é i . Isso explica a ausência da sequência si em posição inicial na forma fonética. Numa perspectiva derivacional, poderíamos dizer que a regra que duplica a mora da vogal alimenta a regra que palataliza a consoante. Como a regra de duplicação de mora aplica-se a todas as raízes livres, não sobram palavras livres nas quais a regra de palatalização não se aplique.

(31) # / si ... / # sii ... # [ i .. ]

Isso parece explicar a ausência se si inicial. Esta hipótese pode ser confirmada se encontrarmos palavras com quatro sílabas ou mais, nas quais ocorram sequências iniciais de si . Isto porque tais palavras já teriam a forma ótima na representação subjacente e dispensariam a regra de duplicação de mora. Até o momento não encontramos tais dados.

6.3. A ausência da forma zi

Passemos agora a discutir a lacuna mais intrigante, que é a que pode ser observada na última linha do quadro em (28): a ausência absoluta da sequência zi . Se z é um fonema no sistema, e tem um comportamento geralmente simétrico com relação ao s , o que justificaria esta lacuna? Pretendo demonstrar que essa lacuna é compreensível quando trazemos learnability para a discussão. Quando a criança está aprendendo a língua, ela ouve as sequências fonéticas e as interpreta. Quando existe mais de uma opção de interpretação para a mesma sequência, ela opta pela análise mais simples. A possibilidade que depende da análise mais complexa vai cair em desuso, criando lacunas no sistema.

Considerando a hipótese de que as únicas sibilantes que ocorrem no input são s e z , vejamos como a criança que está adquirindo o sistema fonológico de Suruwahá interpreta as sequências de sibilante + vogal que ouve. Como a criança não tem acesso direto à representação subjacente, ela tem que ouvir as formas fonéticas e fazer uma análise. Tratemos primeiro das sibilantes surdas.

(32) Quando a criança ouve: só há uma opção de análise: análise escolhida:
[sa] /sa/ /sa/
[a] /sia/ /sia/
[si] /si/ /si/
[i] /sii/ /sii/

Se não faz parte do léxico, não existe nenhuma possibilidade de a criança analisar estas sequências como instâncias do fonema . Assim sendo, não há ambiguidade estrutural nas sequencias acima e a criança aprende com facilidade. Não se criam lacunas porque não existem opções de interpretação. Cada sequência ouvida corresponde a somente uma possibilidade de interpretação dentro do sistema fonológico.

A mesma coisa não ocorre com relação às sibilantes sonoras. Existe aqui uma ambiguidade estrutural , isto é, estruturas subjacentes diferentes têm uma mesma representação no output fonológico (Hale & Reiss 1995:7). Neste caso, uma só sequência fonética tem a possibilidade de ser output ou de uma ou de outra sequência de segmentos no input . A criança enfrenta a necessidade de analisar e decidir:

(33) Quando a criança ouve: opções de análise: análise escolhida:
[za] /za/ /za/
[a] /ja/ ou /zia/ /ja/
[ i] /ji/ ou /zii/ / ji/13

Aqui as dificuldades de interpretação por parte da criança justificam a assimetria encontrada nos dados. No caso do za , ou seja, sibilante alveolar sonora seguida de qualquer vogal (menos i ), a interpretação é simples: Se trata do fonomema z seguido de uma vogal. Não há ambiguidade estrutural.

No caso dos africados, a criança terá que fazer uma opção. Por que razão as sequências da terceira coluna são escolhidas pelas crianças como os inputs mais prováveis para estes outputs ? Justamente por postularem inputs mais simples, que manifestam o padrão silábico ótimo, CV . Assim, cada sequência V é analisada como uma sílaba CV , proveniente de dois segmentos apenas: um onset e um núcleo. Ou seja, a interpretação mais simples para V é considerá-lo como proveniente do input iV . Esta interpretação acabará por se consolidar como a interpretação preferida para todas as instâncias de [V] . Isto é, com o passar do tempo, a criança acabará reinterpretando até mesmo as que eram provenientes de inputs ziV autênticos se fossem também instâncias de iV . Assim, esta possibilidade mais complexa de interpretação deixa de ser considerada um input possível.

A Teoria da Otimalidade (OT) será brevemente introduzida aqui porque parece oferecer um framework apropriado para esta parte de nossa discussão. A idéia básica da OT é simples: os sistemas fonológicos se organizam com base num conjunto universal de restrições violáveis, e estas restrições são hierarquizadas de maneira diferente de língua para língua. Nesta teoria, a descrição da língua corresponde à análise do papel desta hierarquia de restrições nas relações entre inputs e outputs .

Segundo a OT, o que entra em jogo para a criança no momento de fazer a opção é uma competição entre restrições de dois tipos: restrições de fidelidade , que inibem modificações nos elementos do input , e restrições de boa-formação, que licenciam estas modificações. O pensamento geral entre os otimalistas com relação à aquisição foi resumido por Gnanadesikan :

The initial state of the phonology, I propose, is one in which constraints against phonological markedness outrank the faithfulness constraints, which demand that the surface form (output) is identical to the underlying form (input, in OT terminology).

Gnanadesikan (1995:1)

Segunda esta hipótese, justifica-se a escolha das formas mais simples, que respeitam as restrições de boa formação silábica (CV), em detrimento das formas que respeitam a restrição de fidelidade chamada CORRESPONDÊNCIA, que versa que o número de elementos no output deve corresponder ao número de elementos no input . Os candidatos vencedores são sempre os que mantêm a boa-formação silábica. Os quadros abaixo ilustram o ranking de restrições proposto:14

(34) CV COR
zia > zia !*
zia > a !

(35) CV COR
ia > a
ia > ia !*

(36) CV COR
sia > a
sia > sia !*

(37) CV COR
sii > i
sii > sii !*

(38) CV COR
zii > i
zii > zii !*

Assim, no sistema fonológico do Suruwahá, a restrição quanto ao padrão silábico está numa posição mais elevada na hierarquia que a restrição de fidelidade quanto ao número de elementos. Estas duas restrições, hierarquizadas desta maneira, explicam a relação entre os inputs e os outputs das sibilantes.

Mas ainda não chegamos a explicar a lacuna mais intrigante do sistema. O que acontece então com as sílabas zi ? O que justificaria seu desaparecimento? Como já foi dito acima, para resolver o problema de ambiguidade estrutural, a criança deixa de considerar ziV como um input possível na língua. Isso é meio caminho andado para a eliminação da possibilidade de que zi seja também um input possível. Esta generalização pode ter sido a causa da eliminação destas sequências também no output . Devido a esta generalização simplificadora, teria se criado uma lacuna no sistema e a forma fonética zi teria desaparecido totalmente.

Essa hipótese explica porque não há zi em Suruwahá, e serve como argumento a favor de outra questão básica. Ela apóia a hipótese de que não faz parte do léxico. De que maneira a ausência de zi é uma evidência contra a fonologização do ? Se o fosse realmente um fonema, haveriam duas possibilidades de interpretação pela criança para outputs do tipo V . Quando ouvisse uma sequência V a criança teria que optar por interpretá-la como resultado do input V , ou do input siV . Neste caso, a situação do s seria idêntica à situação do z . A opção que postulasse um input mais mais complexo iria ser sistematicamente preterida em função da possibilidade mais simples. A ambiguidade estrutural levaria à eliminação da sequência siV como input possível. Consequentemente, as sequências si tenderiam a se perder, da mesma forma que as sequências zi se perderam. E isso não é o que verificamos nos dados. Palavras com si são tão comuns quanto palavras com i . Esta assimetria no comportamento das sibilantes surdas e sonoras se justifica pelo fato de existir uma ambiguidade estrutural entre as sibilantes sonoras e não existir esta mesma ambiguidade estrutural entre as sibilantes surdas. Isto parece indicar que existe somente uma sibilante surda no léxico, a alveolar.

7. Conclusão

Neste trabalho abordei diversos problemas relacionados com a análise da sibilantes na língua Suruwahá. Argumentei que as evidências de contraste da fonêmica tradicional, como pares mínimos e análogos, não são decisivos no estabelecimento de contraste entre as sibilantes alvelares e alveopalatais. Refutei a hipótese de arquifonema através de demonstrar que não é uma entrada lexical possível no sistema Suruwahá e propus uma análise que parte de uma interpretação alternativa para este segmento ambíguo.

Através de focalizar o problema das sibilantes, demostrei que o status fonêmico dos segmentos não pode ser determinado com base apenas nas relações locais de contraste. Em certos casos, o inventário fonêmico só poderá ser definido com base numa análise que considere aspectos segmentais e prosódicos, e que explore as relações entre os vários níveis fonológicos, fornecendo uma abordagem integrada de todo o sistema. A análise proposta aqui, além de reduzir o número de regras de palatalização necessárias para descrever o comportamento das consoantes a apenas uma, e de ressaltar a simetria do sistema, tem implicações interessantes dentro da teoria fonológica. Aspectos como alternância de silabicidade entre glides e vogais altas, aplicações da OCP na análise de vogais geminadas, ambiguidade estrutural na aprendizagem e conflitos de restrições na aquisição da fonologia por parte da criança são trazidos para a discussão e ajudam a focalizar os segmentos problemáticos dentro do quadro geral da fonologia da língua.

Referências Bibliográficas

BLEVINS, Juliette (1995). Syllable in Phonological Theory. In: The Handbook of

Phonological Theory . Ed. GOLDSMITH, John A., pp. 206-244, Blackwell

Publishers, USA.

BROSELOW, Ellen (1995). Skeletal positions and moras. In: The Handbook of

Phonological Theory . Ed. GOLDSMITH, John A., pp. 175-205, Blackwell

Publishers, USA.

BURQUEST, Donald A. & PAYNE, David L. (1993) . Phonological Analysis,

A Functional Approach . SIL & University of Texas at Arlington.

DIXON, R.M.W. (1995). Fusional Development of Gender Marking in Jarawara

Possessed Nouns. International Journal of American Linguistics . Vol. 61, No. 3,

July 1995, pp. 263-94. University of Chicago, USA.

EVERETT, D. (1995). Sistemas Prosódicos da Família Arawá. In: WETZELS, L.

Estudos Fonológicos das Línguas Indígenas Brasileiras .p. 297-339. Rio de

Janeiro: editora da UFRJ.

GNANADESIKAN, Amalia E. (1995). Markedness and faithfulness constraints in child

phonology . ms., Rutgers Optimality Archive.

HALE, Mark & REISS, Charles (1995 ). The initial ranking of faithfulness constraints

in UG. Concordia University, Montreál.

LIBERMAN, Mark, and, PRINCE, Alan (1977). On stress and linguistic rhythm.

LI 8: 249-336.

McCARTHY, John (1986b). OCP Effects: Gemination and antigemination.

LI 17: 207-263

HAYES, Bruce (1980). A metrical theory of stress rules. Doctoral dissertation, MIT.

Distribuído por IUCL. New York: Garland, 1985.

SUZUKI, Edson & SUZUKI, Márcia (1993). Análise tentativa da língua Zuruahá. Manuscrito inédito. Arquivo da Universidade das Nações: Porto Velho.

SUZUKI, Márcia (1994). Fonêmica da Língua Suruwahá . Manuscrito apresentado à

prof. Bernadete Abaurre como requerimento do curso de Fonética e Fonologia do

convênio UNIR/UNICAMP. Arquivos inéditos da Universidade das Nações: Porto Velho.

SUZUKI, Márcia (1995a). Esboço Fonológico Preliminar da Língua Suruwahá.

In: WETZELS, L. (org) Estudos Fonológicos das Línguas Indígenas Brasileiras . p.341-378. Rio de Janeiro: editora UFRJ.

SUZUKI, Márcia (1995b). Fonologia Suruwahá . Manuscrito apresentado ao prof.

Stephen Parker como requerimento do curso de Fonologia Autosegmental

oferecido pelo SIL, Brasília. Arquivos inéditos da Universidade das Nações:

Porto Velho.

SUZUKI, Márcia (1996). Interação entre Regras Segmentais e Prosódicas no Suruwahá.

In: BISOL, L (org) Letras de Hoje. v. 31, no 2, p.97-118. PUCRS: Porto Alegre.

WETZELS, Leo (1995). A Teoria Fonológica e as Línguas Indígenas Brasileiras.

In: WETZEL, L. (org) Estudos Fonológicos das Línguas Indígenas Brasileiras.

p.1-27. Rio de Janeiro: editora UFRJ.

Notas

Suruwahá é uma língua da família Arawá falada por cerca de 140 pessoas no sudoeste do Amazonas. Os Suruwahá vivem em malocas comunitárias nas terras firmes entre os rios Pretão e Coxodoá e têm apenas 15 anos de contato com a sociedade envolvente. Os dados usados para este trabalho, um dicionário de 2000 entradas e cerca de 800 páginas de textos foram colhidas por meu esposo, Edson Suzuki, e por mim, em diversas viagens ao campo durante os anos de 1991 e 1997.

2 Em Suzuki & Suzuki (1993:6-7) já havia sido elaborada a proposta do presente trabalho, só que de maneira mais incipiente.

3Estas restrições quanto ao tamanho da palavra se referem às palavras livres e são mais comuns no registro de fala formal.

4 Omito nestes exemplos dados com sibilantes alveopalatais, que serão tratadas mais adiante neste artigo.

5A duplicação da primeira vogal, que tem função de criar output s que se conformem às restrições prosódicas, será omitida daqui para a frente para não sobrecarregar as transcrições fonéticas. Para uma discussão detalhada deste processo ver Suzuki (1996). O acento não será marcado neste trabalho por não ser relevante na discussão.

6 O mesmo tipo de análise poderia ter sido proposto para as sibilantes sonoras, já que existem inúmeros pares análogos do tipo [zawari] está zangado e [awari] pote.

7Uma análise semelhante foi proposta anteriormente por Everett (1993) para a língua Banawá, da mesma família.

8Estou me referindo neste ponto somente à sibilante alveopalatal que corresponde à forma alternante da vogal i em posição de onset. Como veremos mais tarde, existem outras instâncias de sibilante alveopalatal que são alofones do fonema z .

9 Blevins (1995) aponta que em Lenakel, existem alternâncias de silabicidade no morfema de primeira pessoa /-i/: /i-ak-ol/ yagól eu faço isto, /t-i-ak-ol/ tyagól eu farei isto e /i-n-ol/ ínol eu fiz isto

1 0Evidências para a análise destas sílabas, que foneticamente apresentam uma consoante modificada seguida por uma vogal, como consoante seguida por ditongo, podem ser encontradas em Suzuki (1995a).

11 É possível também que esta consoante esteja em processo de fonologização, e que a percepção dos falantes não seja clara com relação a ela.

12 Este, sim, seria um caso típico de arquifonema. Diante de uma forma fonética como fezes, ficaríamos sem condições de decidir se a representação subjacente seria /izo/ ou /iio/. Mas mesmo neste caso, estudos dos processos morfológicos indicam que a consoante em questão é o z.

13 Nestes quadros estou usando o j para representar a vogal i quando silabificada em posição de onset.

14 Os quadros apresentados aqui são apenas abreviações dos quadros completos.


Buscar en esta seccion :