II Encuentro Nacional "La Universidad como Objeto de Investigación"

Centro de Estudios Avanzados (CEA - Universidad de Buenos Aires -UBA)

Noviembre 1997

Ponencias publicadas por el Equipo NAyA
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PARA UMA LEITURA HISTORICA DAS TEORIAS EDUCACIONAIS: Primeiras Aproximações

Autora: Dr¦. Zélia Leonel.

Docente da Universidade Estadual de Maringá.

Professora da disciplina Fundamentos Históricos- Filosóficos da Educação II, no curso de Mestrado em Fundamentos da Educação

Endereço Residencial: Rua Santos Dumont, 1278 - Apt§. 302 - Cep.: 87.050-100 - Maringá - Paraná - Brasil.

Fone: (044) 223.6423

RESUMO

Este ensaio tem como objetivo geral estimular a reflexão sobre o objeto da educação inserindo no processo mais amplo das lutas humanas, onde os homens fazem a história sem se preocupar com a divisão que estabeleceram para conhecê-la, e, como objetivo específico, fixar parãmetros históricos de análise das teorias pedagógicas clássicas de modo a superar a leitura evolucionista que geralmente se faz, limitando a explicação da superação da pedagogia tradicional pela pedagogia nova pelo simples cotejar de seus elementos puramente pedagógicos.

PARA UMA LEITURA HISTàRICA DAS TEORIAS EDUCACIONAIS:

Primeiras Aproximações Zélia Leonel Kant considerava a arte de governar os homens e a arte de educá-los as duas descobertas humanas mais difíceis. Mas, não foi o único a sublinhar a natureza política do homem e da educação. Antes e depois dele, sempre se afirmou a necessidade de investir os homens das regras sociais como condição de assegurar o estado de civilização alcançado e a própria preservação da espécie. Nesse sentido, pode-se dizer que a educação sempre foi entendida como um artifício ao pretender dar ao homem uma segunda natureza; tirá-lo de seu estado natural para dar-lhe uma natureza social. Essa é a parte invariável do processo educativo, um princípio válido para todas as épocas e todos os lugares.

Mas, como as regras sociais não são sempre as mesmas, diferentes são as formas que a educação assume no curso da história. Estamos já no terreno propriamente dito da história da educação, cujas formas assumidas pelo fenômeno educativo, constituem seu objeto de estudos. Porém, como em geral esses estudos separam o que é específico da educação do conjunto das relações sociais mais amplas, em respeito à especialização do conhecimento, acabam por reduzir essas formas educacionais a sistemas de idéias ou teorias educacionais formuladas por esse ou aquele espírito e julgá-las segundo as regras de outros tempos. Uma, leitura das teorias educacionais historicamente determinadas, pelo contrário, é aquela que deixa ver, num ou noutro desses sistemas de idéias, o mundo dos homens com suas lutas constantes entre velhas e novas regras de sociabilidade para a reprodução de suas vidas. Quando delas abstraímos essas lutas, elas perdem seu verdadeiro sentido e nós uma das mais importante lições de vida. Deixamos de aprender, sobretudo, como os homens transformam a realidade social, como tudo que para eles parecia fixo, natural ou dado para sempre, pode, sob novas condições, se mostrar obsoleto e até ridículo. Essa leitura, diferente de olhar o passado como estaleiros abandonados ou como peças de museu que despertam nossa curiosidade sobre uma época menos evoluída, conduz à idéia de que o presente pode vir a ser diferente do que é, unicamente como resultado das lutas humanas sobre circunstãncias herdadas. Não há inocência nessa leitura como não há também na leitura dominante na história da educação, cujo sentido evolutivo conduz à idéia de que o impulso da ação transformadora é exterior ao próprio homem.

Dessa perspectiva, dificilmente se compreenderá o desenvolvimentos das idéias educacionais até o século XIX, fora das lutas travadas contra os ditames da sociedade feudal, quando a partir de então as lutas humanas tomam nova direção. Enquanto durou aquele processo de luta os homens combateram as instituições, os hábitos, o costumes, as crenças, ou seja, todas as regras sociais que correspondiam à sociedade feudal e que tinham sido consensuais até o momento em que começam perder sua capacidade de organizá-los. Ao perderem essa capacidade, os homens deixam de ter certeza na concepção religiosa de vida, que influenciou e dominou a massa do povo até o século XV e passam a atacá-la com o propósito de desobstruir o caminho que conduzia ao livre desenvolvimento do comércio. Contra a fé cristã - segundo a qual Deus entrava em comunicação com os homens através da revelação para condenar a riqueza e os prazeres mundanos; que invocava a autoridade e a tradição para ensinar que a vida era apenas o áspero caminho que conduzia ao céu; que afirmava ser a razão humana limitada, tendo necessidade de uma razão superior; que marcava os homens com o estigma da maldição pelo pecado original - os filósofos passaram a considerar a autoridade um abuso e a tradição um erro.

Confiavam nas alegrias e prazeres desse mundo, concebiam a razão como totalmente humana e negavam o pecado original.

Velhas e novas idéias travam entre si uma verdadeira luta de vida e morte, pois a esperança de vida que irradiada das transformações materiais ao mesmo tempo que inflamava o espírito dos homens com novas idéias para saudarem a sociedade nascente. Acendia, também, as fogueiras da inquisição com o propósito de conter a marcha dos acontecimentos pelo sentimento de morte que tomava conta daqueles que sucumbiam com a velha ordem. Esperança de vida para uns, sentimento de morte para outros é o que nos ensina a história em oposição ao nosso ideal de harmonia e perfeição.

Só no último terço do século XVIII essas idéias triunfaram como expressão da sociedade triunfante. Já não eram apenas idéias, mas idéias que correspondiam à objetividade do mundo transformado e que davam ao racionalismo dos filósofos iluministas supremacia absoluta sobre as idéias religiosas. Esse racionalismo no entanto era frio e seco.

Concebida como sinônimo de inteligência, a razão isolava da subjetividade, os sentimentos, o coração, a imaginação. Não que aqueles homens fossem sem coração, mas porque a luta era sem trégua, sem piedade, sem nenhuma concessão aos ídolos da escolástica que habitavam as cabeças dos homens, afastando-os da terra para as regiões obscuras do pensamento especulativo.

No plano da Enciclopédia1, traçado por Diderot e d'Alambert, estão contidos os princípios da chamada pedagogia tradicional, que a pedagogia nova, um século depois, irá contestar. A concepção de homem, de natureza, de método, de ciência, enfim, de progresso desses filósofos, nos diz que o conhecimento está nas coisas e que as idéias devem corresponder às coisas e não as coisas às idéias tal como fazia a escolástica. O pensamento, portanto, são impressões dessas coisas no espírito humano comprovadas pela experiência. O homem, por sua vez, age de acordo com o que pensa e pensar é fazer uso da razão objetiva, cujo conhecimento é dado pela ciência e não pela religião. O método da ciência é a experimentação e o do ensino a transmissão. Se o conhecimento científico acumulado combate os vícios, os preconceitos e superstições dos medievais, a idéia é reuni-lo sob a forma de verbetes numa enciclopédia e vulgarizá-lo. Na segunda metade do século XVIII, à idéia de progresso, contendo a idéia de liberdade, de comércio, de trabalho, de riqueza, de propriedade, enfim, de todos os elementos da nova prática, os filósofos ligaram aquela das luzes para combater a ignorãncia que a concepção religiosa de vida imprimira na cabeça dos homens.

Quando Rousseau se opôs ao racionalismo dos iluministas, valorizando o sentimento em detrimento da inteligência na sociabilidade humana, não só rompeu a cadeia das idéias dominantes como abriu um debate que chega até nossos dias.

Duramente criticado pelos seus pares, principalmente por Voltaire, não renunciou às suas idéias e quanto mais se esforçava para responder às críticas, no intuito de se fazer entender, mais aumentava o círculo de seus detratores. Inconformado pelo desprezo dos filósofos terminou seus dias amargando uma triste solidão, sobretudo por sentir-se incompreendido na dúvida que lhe corroía a alma. Não que Rousseau estivesse ao abrigo das críticas, mas teve o mérito de tocar na contradição fundamental da nova sociedade ainda que se contradizendo por não torná-la explícita a si mesmo e numa época imprópria para dela tirar todas as conseqüências.

Com a preocupação de entender um pouco mais o drama vivido por este filósofo, à semelhança de outros dramas vividos por outros homens no curso da história, recorremos a Tocqueville que muito mais do que ensinar, nos faz, sobretudo, pensar. N'O Antigo Regime e a Revolução, nos diz, entre outras coisas, existir tempos nos quais certas idéias parecem incompreensíveis aos homens, mas, existem outros tempos em que aquelas idéias ganham sentido, no entanto para isso acontecer é preciso que algumas mudanças nas condições de vida já tenham ocorrido e preparado o espírito para se deixar penetrar por elas.

O século XIX será esse "outros tempos"; o rompimento da unidade social, "as mudanças ocorridas nas condições de vida e as virtudes do cidadão, aquelas idéias". Antes porém é preciso considerar que, às vésperas da Revolução Francesa, a sociedade emergente representava ainda uma grande obra a se completar e que não pertencia a ninguém.

Suas partes se acham divididas entre diferentes obreiros, espalhados, separados uns dos outros. Cada um executa sua tarefa mas ninguém sabe qual é o fim do trabalho, o resultado definitivo e geral para o qual concorre. Só depois de passado o tempo, a criatura se mostra inteiramente ao seu criador. E hora então da sociedade mostrar seus vícios e suas virtudes, de expor suas contradições, suas limitações, mas... são outros tempos.

Rousseau foi de seu tempo ao combater o antigo regime, os privilégios feudais e o absolutismo ao lado do povo insuflado pelo ódio que os privilégios do clero e da aristocracia despertavam. Enfrentou os antigos poderes atraindo para si a reação de homens que sentiam o fim de seu reinado se aproximando. Entretanto, foi mais longe que seu século ao denunciar a contradição entre o público e o privado implícita na nova sociedade. Na eminência de um novo Estado vir a constituir-se com a finalidade de proteger o interesse privado, apressou-se em mostrar os limites da emancipação política ou os limites da Revolução, que substituiria um egoísmo por outro. A Grande Revolução que, para Rousseau, estava em marcha, representava um contra-senso histórico2, e alertava os filósofos para a contradição que a nova sociedade trazia antes de se consumar. Mas os avisados, ao se voltarem para Rousseau, viram nele o contra-senso histórico e passaram a atacá-lo.

Entusiasmados com o progresso alcançado pelos negócios privados, os filósofos exaltavam o individualismo empreendedor, as ciências, as riquezas, ao mesmo tempo que desprezavam suas conseqüências sociais, consideradas por eles detalhes no melhor dos mundos possíveis. Consideravam, por exemplo, a pobreza, condição fundamental para a riqueza e as desigualdades sociais, uma conseqüência natural da liberdade. Rousseau, ao contrário, defendia a tese de que as ciências e as artes não aprimoravam os costumes, que a ciência não era moralizante e considerava a desigualdade material a negação da própria liberdade. Desse modo os homens se livrariam de uma sociabilidade plena de vícios para adotar outra já viciosa na sua base. Enfim, Rousseau considerava um erro a aceitação, pelos iluministas, do egoísmo como móvel da nova sociedade, pois o indivíduo seria preferido ao coletivo.

O Contrato Social e o Emílio, vieram a público ao mesmo tempo com o propósito de mostrar os dois lados de uma mesma questão pela sua natureza política: a arte de governar e a arte de educar os homens, consideradas por Kant as duas tarefas humanas mais difíceis. As máximas contidas nesses dois clássicos se complementam e tratam de uma nova sociabilidade, cujo soberano não é nem o poder absoluto e nem o poder representativo dos interesses privados, mas o interesse coletivo. Neles, o interesse público é absoluto sobre o interesse privado, assim como são absolutos o amor ao próximo sobre o amor próprio, as virtudes sociais do cidadão sobre os vícios privados do individualismo, a solidariedade, a benevolência, o sacrifício, o patriotismo sobre a inveja, a cobiça, a astúcia, o logro. Eis todo o seu moralismo! Essa questão, à qual os homens faziam ouvidos moucos no século XVIII, fará muito sentido aos homens do século XIX.

Na verdade nenhuma sociedade se preocupa com as virtudes sociais senão no momento em que sua unidade se encontra ameaçada. A unidade social, rompida com o levante da classe operária em meados do século passado, para manifestar sua insatisfação com o melhor dos mundos possíveis, preparou os espíritos para se deixar penetrar por aquelas idéias. Aos homens do século XIX não bastavam mais as luzes apregoadas pelos filósofos do século XVIII, pois a sociabilidade rompida tinha necessidade das virtudes sociais do cidadão às quais se chega mais pelos sentimentos do que pela inteligência. Tal como Rousseau criticara os iluministas por quererem fazer um povo de verdadeiros filósofos quando, segundo ele, era mais fácil fazer um povo de verdadeiros cristãos, Guizot, diante da sociabilidade rompida, dizia que nada melhor do que a religião para atuar com absoluto sucesso na vida moral e restabelecer a unidade social. Mas, esse grande representante do partido da ordem não ficou sozinho na defesa dessa idéia. Era consenso na época mostrar que os filósofos do século XVIII haviam cometido um grave erro em querer substituir a religião pela razão, como era consenso a necessidade da moral cristã para a salvação da sociedade. Novos tempos, novas necessidades, o que serviu para destruir não serve para conservar. A Revolução de 1848, na França, trouxe de volta a discussão sobre a religião que os homens haviam abandonado há quase um século, como se pode depreender dessa fala de Guizot.

"Ninguém está mais convencido do que eu dos imensos erros e dos funestos desvirtuamentos de nosso tempo; ninguém teme e detesta mais do que eu o império que exerce entre nós, e o perigo do qual nos ameaça o espírito revolucionário, esse Satã Humano, ao mesmo tempo cético e fanático, anárquico e tirãnico (...) E do Deus vivo que temos necessidade. E preciso para nossa salvação presente e futura, que a fé na ordem sobrenatural, que o respeito e a submissão à ordem sobrenatural entre no mundo e na alma humana".(1851:II-XVI) Mas, se a moral cristã tem a força do sobrenatural para moderar os apetites materiais da classe insatisfeita, tem também o inconveniente de ser estabelecida fora de todos os poderes políticos e mesmo de todas as nacionalidades.

Negligencia, portanto, a moral do cidadão que tem deveres para com sua Pátria, para com seu Estado. Assim, numa feliz comunhão de propósitos morais entre Igreja e Estado, a religião desempenharia na educação familiar a mesma função que a moral laica na escola criada para as classes populares. Diferença? Nenhuma. A moral laica fará para o cidadão o que a moral religiosa faz pelo homem; isto é, dará contornos nacionais à moral cristã, ensinará sobretudo a solidariedade entre os cidadãos de uma mesma pátria, sem no entanto negligenciar a solidariedade entre todos os homens que é própria da moral cristã. Em suma, a escola ensinará as virtudes sociais que a concorrência na luta pela vida faz esquecer.

Tocqueville, na sua viagem à América em 1831 , pode constatar o papel da religião no governo dos homens em uma sociedade democrática. Observando a democracia dos Estados Unidos, aquela criatura quase perfeita nascida sem os vícios do antigo regime e sem aqueles que chegavam com a nova classe revolucionária para perturbar a finalização do processo político na Europa, concluiu que, entre vícios e virtudes, as virtudes saíam vencedoras, graças sobretudo à religião que assim resumiu: "Não se pode dizer, pois, que nos Estados Unidos a religião exerce uma influência sobre as leis nem sobre uma parcela das opiniões políticas, mas dirige os costumes e é regendo a família que trabalha no sentido de reger o Estado". (1977:224). Com tantas virtudes, dizia Tocqueville à França reticente em dar o primeiro passo em direção às liberdades políticas na Europa, não há porque temer a chegada da democracia, desde que se tome as devidas precauções contra a tirania da maioria. Uma dessas precauções foi instituir o ensino obrigatório para educar o novo soberano que nascia com a concessão do sufrágio universal.

Outros tempos, outras idéias. Não se defende mais a idéia, como defendia Locke e Condorcet, de que a educação se destina apenas àqueles cujas condições de vida lhes permitem dispor de tempo e que o pobre tem aquela de sua condição que a própria vida lhe ensina ou a idéia defendida por Mandeville e Voltaire, de que toda sociedade organizada com base no trabalho compulsório tem necessidade de uma certa dose de ignorãncia. No final do século XIX, o Estado passa a intervir na educação escolar para criar a escola primária, diversa das existentes, com a finalidade de ofertar para a massa do povo um mínimo de educação considerada necessária para a vida em comum do novo cidadão. Como resultado das discussões, que animou os homens para definir a escola que correspondesse aos problemas que a sociedade vinha enfrentando, a educação moral e a instrução cívica, transversalizadas nas demais disciplinas do currículo representaram a grande novidade, a razão mesmo da existência dessa escola. As virtudes sociais que a sociedade deseja ver expandidas com essa novidade desencadeará as disputas entre humanistas e utilitaristas e animará o grande debate entre conhecimentos úteis e conhecimentos desinteressados, instrução e educação, inteligência e sentimentos, razão e coração. Ciências e humanidades disputam primazia nos currículos, as ciências por serem necessárias à formação do homem na sua luta pela vida e as humanidades indispensáveis para o desenvolvimento das virtudes próprias do cidadão na sua união pela vida. Os humanistas acusam os utilitaristas de visarem apenas o estômago, a riqueza material, o individualismo, incapaz de propagar virtudes de solidariedade e de união; os utilitaristas acusam os humanistas de se ocuparem do que é inútil, desinteressado e sem utilidade prática. Com as barricadas nas ruas não se tratava mais de responder para a Academia, como Rousseau respondeu, se o desenvolvimento das ciências e das artes aprimoraram os costumes, mas de definir o ideário da escola que o Estado criava para restabelecer a unidade social, contraditoriamente rompida pela aplicação da ciência no processo produtivo que substituia o homem pela máquina. O debate aberto por Rousseau ganha sentido, mas suas idéias encontram outra época, outras necessidades, outros personagens, outra forma de luta. No discurso de Paul Bert, relator, na Cãmara dos Deputados, do projeto sobre a obrigatoriedade e laicidade do ensino primário, na França, já observamos elementos da grande revolução copernicana realizada na teoria educacional e conhecida, na literatura, como pedagogia nova: "Nós sabemos bem que a instrução não é, por ela mesma, e a título teórico, uma causa de moralização; nós sabemos bem que a instrução é somente um crescimento das forças que trazem em si o indivíduo, e que esse crescimento das forças ele pode aplicar para o mal como para o bem, é incontestável". (1880:371) A instrução, que cultiva as diversas faculdades intelectuais pela comunicação dos conhecimentos científicos, está para a formação do homem egoísta, como a educação, que faz apelo ao coração, aos sentimentos, está para a formação do cidadão virtuoso. A pedagogia nova devolve à subjetividade os sentimentos, o coração, a afetividade, deixados de lado pela pedagogia tradicional numa época em que a luta era dirigida para destruir a sociedade feudal. Mas o que serve para destruir é insuficiente para unir ou conservar.

Pécaut, Diretor Geral do Ensino e divulgador da doutrina pedagógica da nova escola junto aos professores, adverte que o ensino das ciências é insuficiente para engendrar sentimentos morais, principalmente nas classes mais baixas, como veremos nesse excerto transcrito de seu panfleto A Educação Moral e a Escola Laica, publicado em 1897: "Não se pode negar que a instrução, cujo propósito e dirgir-se à inteligência somente e ter nela seu ponto de apoio, não basta para determinar os atos; é necessário a intervenção do sentimento que é o motor por excelência, e o motor do sentimento, por sua vez, não é habitualmente a simples razão, é a crença e, como disse Pascal, a fé do coração".

(1945:61) Essas idéias, de homens de expressão da época pelo cargo que ocupavam no Estado, são apenas exemplos da metamorfose ocorrida na estrutura do pensamento e que podem ser constatadas reiteradamente na literatura da época. Elas trazem uma nova concepção do agir humano para sustentar a necessidade das virtudes morais e cívicas, transversalizadas nas disciplinas do currículo, a qual deslocará a ênfase do conteúdo para o método e do professor que ensina para o aluno que aprende. No aluno, em particular, encontra-se o interesse, a partir do qual se quer agir sobre sua vontade para dirigir seus atos, no método de ensino, a forma de qualificar os conteúdos, como, por exemplo, os de ciência, que não trazem em si as virtudes que se quer ver expandidas. A quantidade dá lugar à qualidade e o ensino enciclopédico verbalizado pelo professor é redimensionado para ajustar-se aos métodos de ensino ativo, cujas relações entre os alunos, em atividades de grupo, unidades de experiência ou de projetos, acrescenta àqueles conteúdos valores de cooperação, solidariedade e afeição. Bert, dois anos depois de relatar a lei na Cãmara dos Deputados, revelará que a educação moral e cívica era o principal argumento em favor da obrigatoriedade escolar, embora a prudência não o tenha permitido dizer em seu tempo. Também Jules Ferry, Ministro da Instrução Pública, na sua Carta Dirigida aos Mestres, no segundo ano de aplicação da lei, diz que a educação moral e a instrução cívica são a própria razão da existência da escola. "Das diversas obrigações que este (o novo regime) os impõe, a que seguramente chega mais ao coração, a que produz o maior aumento de trabalho e de preocupação é a missão que se lhes tem confiado de dar a vossos alunos a educação moral e a instrução cívica".

(1945:14) E importante lembrar que, entre as virtudes do cidadão de Rousseau e as virtudes do cidadão que os séculos XIX e XX querem universalizar, existe uma diferença fundamental. O personagem Emílio, protótipo do cidadão virtuoso de Rousseau, não está em contradição com a sua existência material. Pelo contrário, enquanto homem, não quer mais do que o necessário para viver, pois é virtuoso o suficiente para ter o bem-estar de todos ou da coletividade como regra de conduta. As desigualdades de riqueza, nascidas do interesse individual, estão em contradição com ele, logo a existência real desse personagem depende da transformação social, da reformulação de toda a sociedade, de um novo contrato social. No século XIX, as virtudes do cidadão, que se quer ver expandidas através da educação escolar, está em contradição com a existência real dos homens, logo o que se quer reformar não é a sociedade do interesse individual, da propriedade privada, das desigualdades materiais, e sim os indivíduos. Consequentemente a moral laica se define por princípios universais e eternos, fora da prática social. A contradição não se resolve, pois pretende-se corrigir as ações humanas, com as quais não se está satisfeito, conservando, no entanto, a forma de existência que as engendram. A vida espiritual se separa da vida material como se separa o efeito da causa. E assim que, em toda reforma ou teoria educacional o ser e o dever ser traz o divórcio entre a teoria e a prática, entre o homem real e o homem ideal. O cidadão de Rousseau, que elimina a contradição entre as classes numa época em que as classes exercem funções sociais plenas, é uma utopia; o cidadão das teorias educacionais do final do século passado, e mais ainda desse final de século, ao manter a contradição entre as classes já quase sem função histórica, é uma heresia.

Essas transformações, ocorridas na estrutura do pensamento em apenas um século, são vistas como evolutivas quando não se leva em consideração o processo das lutas humanas. E o que acontece com a leitura que em geral se faz das teorias educacionais clássicas pelo simples cotejar de seus elementos puramente pedagógicos e que inevitavelmente conduz à aceitação da superação da pedagogia tradicional pela pedagogia nova como processo natural e evolutivo.

Uma leitura histórica das teorias educacionais é aquela que encontra, no conjunto das forças organizadas no século XVIII contra a sociedade feudal, os princípios da pedagogia tradicional e no processo da luta que se abre quando aquela se encerra, os princípios da pedagogia nova. O caráter revolucionário da pedagogia tradicional não está propriamente nela, mas no processo mais amplo das lutas pela destruição da velha sociedade, da mesma forma que a pedagogia nova é engendrada no processo da moderna luta de classes para unir os homens acima de suas diferenças, o que lhe empresta um caráter conservador. E nesse sentido que dissemos anteriormente que as armas que serviram para destruir a sociedade feudal são insuficientes para conservar a nova.

E, portanto, no interior das lutas humanas, determinadas pelo desenvolvimento material, que a concepção de homem passa, em menos de um século, por um ideário que vai da concepção de homem revolucionário, destruidor da ordem feudal, à concepção de homem conservador da ordem burguesa.

De soberano irreligioso, que vê suas misérias como questões humanas, a homem religioso, que encontra no sobrenatural o consolo para seu sofrimento; de homem que vê seus males na sociedade e por isso precisa destruí-la por inteiro, a homem que assume os males como próprios de sua natureza e de suas fraquezas; de homem que acredita na razão, a homem que tem necessidade da fé; de homem que se guia unicamente pelas luzes da ciência, a homem guiado sobretudo pelos sentimentos; de homem que possui direitos, a homem que precisa sobretudo de deveres; de homem honesto, corajoso, empreendedor, virtuoso consigo mesmo, a homens solidários, altruístas, benevolentes, virtuosos para com os outros.

Todas essas transformações no pensamento, decorrentes de mudanças nas condições de vida, estão na origem dos princípios da pedagogia nova, que subverte a equação em relação à pedagogia tradicional, transferindo a ênfase do professor para o aluno, do conteúdo para o método, da quantidade para a qualidade, do método de exposição para o método da experimentação, da objetividade racional para a subjetividade afetiva, da luta pela vida para a união pela vida.

Desse ponto de vista, a instituição da obrigatoriedade do ensino para as classes populares representa um marco no processo de sociabilidade das sociedades modernas. Tanto encerra a fase na qual o trabalho, enquanto categoria social, é o elo de ligação entre os homens como inicia a fase em que o trabalho começa a perder seu vigor ou sua capacidade de organizá-los. Na primeira fase a sociedade não pode prescindir do trabalho da criança pela necessidade que tem dele e, por isso mesmo, a idéia de escolarização para todos, quando surge, é exceção. Na segunda fase, as máquinas começam a dispensar o trabalho humano, enfraquecendo o elo de sociabilidade e fortalecendo a idéia de escolarização para todos.

Ontem como hoje, as teorias educacionais não têm a simplicidade que aparentam ter ou que atribuímos a elas.

Para além das teorias educacionais e das novidades que elas agregam, existe um mundo humano em contínuo processo de transformação a ser desvendado. Portanto, não se volta ao passado senão para se pensar o presente e tudo que dissemos não teria sentido se não fosse para pensar a nós mesmos.

Neste final de século, mais do que no final do século passado, as forças produtivas dão saltos qualitativos com a incorporação das inovações tecnológicas, trazendo como conseqüências inevitáveis o crescimento geométrico, no melhor estilo das jogatinas em cassino, do capital financeiro, cuja riqueza acumulada dispensa o trabalho, assim como o aumento da produtividade pelo emprego da alta tecnologia o faz. Essa acumulação de riqueza de apropriação privada, que se faz quase sem trabalho, e seu corolário o crescimento vertiginoso das taxas de desemprego em escala mundial dão mostras de que as classes sociais vêm perdendo rapidamente as funções que desempenharam no passado e que deram sustentação à sociabilidade humana alicerçada no trabalho.

Confirmada a hipótese anunciada neste final de século, por analistas de prestígio internacional, sobre o fim do trabalho1, estaremos vivendo uma época sem precedente na história da humanidade, pois o fim do trabalho rompe radicalmente o elo da sociabilidade sob essa forma de existência. Quanto mais esse elo se rompe mais o divórcio entre a teoria e a prática, entre o discurso e a ação se manifesta e mais o cidadão virtuoso é exaltado como o verdadeiro homem enquanto que, na prática, a sociedade conserva sua natureza, num contínuo reajustar de seus aparatos em favor da existência do homem real voltado para o seu interesse próprio. Conclama-se pela formação do cidadão, cujos valores éticos, ligados à afetividade, aos sentimentos estão em contradição com a razão e a inteligência dos hábeis empreendedores. E nesse terreno, cuja fertilidade faz vicejar todos os vícios privados que se quer combater com valores morais ou éticos válidos para todos os tempos, que está o ridículo de nossa época.

Tal como no final do século passado a instituição do ensino obrigatório para as classes mais baixas trazia como novidade a educação moral e a instrução cívica transversalizadas nas demais disciplinas, o PCN (Parãmetros Curriculares Nacionais) que chega às escolas, traz como novidade os temas sob o título de Convívio Social e Etica no Ensino Fundamental, também transversalizados nas disciplinas tradicionais. Se naquele tempo tratava-se restabelecer a unidade nacional para arrefecer a luta de classes e vencer a guerra imperialista entre nações concorrentes, qual a finalidade hoje dessa política educacional voltada para o ensino fundamental? Como explicar o sucesso que faz a teoria da Inteligência Emocional4, ao defender a tese de que o sucesso individual depende mais dos sentimentos do que da inteligência respaldada em pesquisas de laboratório? Suscetíveis às novidades educacionais, principalmente as que vêm coroadas por uma aura de cientificidade, nos dispensamos de perguntar por que vieram e para que servem.

Se essa teoria não esconde sua vinculação com a pedagogia da qualidade total, criada para aumentar a lucratividade das grandes corporações industriais sob as regras da competitividade tecnológica, não revela, contudo, todas as mazelas que se escondem atrás da lógica da globalização na atualidade. Desvendar o outro lado dessa teoria que sobrepõe os sentimentos à razão, que serve tanto para a empresa como para a escola e que se propaga com a mesma rapidez com que se descobre um antídoto contra um mal que ameaça a humanidade, é tarefa dos que ensinam aos que sabem menos sobre as realidade não necessariamente visíveis na superfície das coisas.

Para finalizar, retornemos ao nosso ponto de partida para dizer que Kant tinha razão, a arte de governar e educar os homens são tarefas extremamente difíceis, mas é preciso acrescentar que a arte de desvendar as intenções, conscientes ou não, de quem governa e educa não é tarefa fácil.

Bibliografia

1. BERT, Paul. Rapport Présenté a la Chambre des Députés sur la Loi de l'Ensignement Primaire. Paris: G. Masson, Editeur. 1880.

2. --------------. De L'Education Civique. Conférence Fait au Palais du Trocadéro le 6 Ao-t 1882 au Profit des Bibliothèques Populaires Syndiquées du Départament de la Seine. Paris: Librairie Picard-Bernheim et Cie, 1882.

3. FERRY, Jules. Carta Dirigida a los Maestros por el Ministro de Instrucción. In: FERRY, J. et alli. La Escuela Laica. Buenos Aires: Editorial Losada S.A., 1945.

4. GUIZOT, François. Méditations et Etudes Morales. Paris: Didier Et Cie, Librairie Editeurs. 1872. (Prefácio/1851).

5. KANT, Emmanuel. Réflexions sur L'Education. Paris: Libraairie Philosophique J. Vrin. 1984.

6. PECãUT, Félix. "La Educación y la Escuela Laica". In: FERRY,J. et alli. La Escuela Laica. Buenos Aires: Editorial Lousada S.A., 1945.

7. ROUSSEAU, J.J. Discurso sobre as Ciências e as Artes; In: Rouseau. São Paulo. Nova Cultural. 1988. (Col. Os Pensadores).

8. --------------------- O Contrato Social. In: Rousseau.

São Paulo Nova Cultural. 1988. (Col. Os Pensadores).

9. ---------------------. O Emilio ou da Educação. Rio de janeiro: Editora Bertrand Brasil S.A. 1992.

10. TOCQUEVILLE, Alexis. A Demoracia na América. Belo Horizonte: Editora Itatiaia. 1977.

11. ------------------------------. O Antigo regime e a Revolução. São Paulo: Hucitec. 1986.

NOTAS

1 A Enciclopédia ou Dicionário Raciocinado das Ciências, Artes e Ofícios, por uma Sociedade de Homens de Letras, foi editada no período entre 1751 e 1780. Compreende 35 volumes divididos em duas partes: na primeira parte são 17 volumes de textos e 11 de estampas, publicados sob a direção de Diderot e d'Alambert e na segunda, são 4 volumes de textos, 1 de estampas e 2 de índice geral.

2 A Revolução Francesa, que segundo Tocqueville surpreendeu a Europa, inclusive a própria França, não surpreenderia Rousseau que a previra trinta anos antes ao anunciar: "Confiais na ordem presente da sociedade, sem pensar que esta ordem está sujeita a revoluções inevitáveis e que vos é impossível prever ou evitar(...). Tudo o que os homens fizeram os homens podem destruir: indeléveis são somente os caracteres que a natureza imprime e a natureza não faz nem príncipes, nem ricos, nem grandes senhores. (depois acrescenta em nota de rodapé) Considero impossível que as grandes monarquias da Europa ainda possam durar muito tempo; todas brilharam e todo estado que brilha se acha no seu declínio". ( Emílio ou da Educação. p.213)

1 Pela riqueza de dados e informações, ver: RIFIKIN, Jeremy. O Fim dos Empregos. O Declínio Inevitável dos Empregos e a Redução da Força Global de Trabalho. São Paulo: MAKRON Books do Brasil Editora Ltda./Editora MacGraw-Hill Ltda, 1995.

4 O próprio sucesso do norte-americano Daniel Goleman, autor do livro Inteligência Educacional, fundamentado nessa teoria, precisa ser explicado.

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