Especial NAyA 2001 (version en linea del cdrom)

Do tempo ‘primitivo’ ao tempo ‘moderno’:
Mudança social (pós)colonial e os usos da memória

Fernando Bessa Ribeiro [1]

Resumen

En este artículo se analizan los usos y el papel de la memoria en la investigación antropológica sobre el cambio social y el desarrollo en Mozambique. La cuestión estudiada está relacionada con las posibilidades y los límites de utilización de la memoria en un contexto poscolonial. Empezando por imaginar el terreno mozambicano donde se pretende llevar a cabo el trabajo de campo, el autor presenta y discute los conceptos básicos que inciden en la configuración de la memoria. El análisis de los conflictos alrededor de la memoria conduce a la reflexión sobre su uso etnográfico. Apoyado en los argumentos producidos, el autor destaca la importancia crucial de las memorias individuales y colectivas para la investigación antropológica en un contexto poscolonial.

Abstract

In this article an analysis is undertaken of the role and the uses made of Memory in anthropological research into social change and development in Mozambique. This whole issue is raised in relation to the uses to which Memory is put, their possibilities and limits, in post-colonial contexts. Beginning by invoking the situation in the Mozambican territory where he is planning to conduct the fieldwork supporting his case, the author presents and discusses the basic competing concepts shaping the contours of Memory. The analysis of the conflicts surrounding Memory leads to reflection on its application within ethnography. Drawing on arguments from evidence presented, the author underlines the crucial importance of individual and collective memories for anthropological research in a post-colonial context.

0.   Introdução

      A elaboração de um projecto de doutoramento no domínio da mudança social e do desenvolvimento em Moçambique conduziu-me à reflexão sobre os usos e o papel da memória no trabalho antropológico em contexto pós‑colonial, em especial em sociedades nas quais a escrita e a escola são aquisições recentes e ainda não universais. Sendo uma investigação baseada na observação participante, na qual o recurso à memória dos actores sociais observados sobre as experiências vividas ou conhecidas por via da transmissão oral terá um lugar relevante, as possibilidades e os limites nos usos da(s) memória(s) têm de ser equacionadas [2] . A questão que me proponho abordar está, pois, relacionada com o papel da memória numa investigação antropológica. Em concreto, são várias as interrogações: Como ‘cruzar’ a memória oral com as outras formas de memória, como a que está plasmada nos documentos e fontes escritas? Quais os modos, institucionais e informais, de avivar e renovar a memória colectiva? Como fazer a crítica daquilo que é dito, quando sabemos que todos os actores sociais pretendem fazer passar a sua "verdade", fazer acreditar o observador da pertinência de um determinado ponto de vista? Será possível conhecer e compreender as mudanças verificadas através da mediação da memória dos observados?

      O trabalho de campo será efectuado num espaço social sujeito a um processo de industrialização, iniciado ainda durante o domínio colonial português e prosseguido pós‑independência, por via da implantação de uma fábrica baseada na utilização dos recursos locais em matérias-primas agrícolas e trabalho humano. Embora ainda em aberto, considero como uma das hipóteses mais pertinentes a indústria de exploração e transformação da castanha de caju. Entre as várias razões que justificam esta opção, relevo a articulação da agricultura tradicional com a indústria orientada para a exportação.

      Ao tomar como intervalo temporal de análise um período de tempo que compreende cerca de meio século - desde a implantação da unidade industrial até ao presente - a investigação atravessará, em termos cronológicos, todo o conturbado processo económico, social e político vivido por Moçambique nas últimas décadas: (i) uma situação colonial capitalista, marcada pela guerra a partir dos anos sessenta; (ii) a experiência, na sequência da independência, nacional‑popular de matriz socialista (cf. Amin 1999); (iii) mais recentemente, a partir de meados dos anos oitenta, a adopção do modelo capitalista de tipo neoliberal. Neste contexto, considero muito sedutora a possibilidade (de momento imaginada) de observar e reflectir sobre dois "mundos" diferentes em tensão no interior deste espaço social: o "mundo" africano pré‑industrial, relativamente auto-suficiente e autónomo face ao Estado, inexistente ou demasiado distante e débil, e o "mundo" da (quase) integração no Estado moçambicano e na economia capitalista. De notar que estes "mundos" se cruzam e se interpenetram com dois sistemas de conhecimento diferentes: o "moderno", "ocidental", "científico" e "burocrático" face ao sistema "local" e "indígena" (Grillo 1997: 7). Neste contexto complexo, a etnografia deve ser capaz, como sugere Grillo (1997: 3), citando Marcus e Ficher, de contextualizar historicamente os seus objectos de investigação e, simultaneamente, registar o modo como os sistemas económico e político transnacional actuam ao nível local, precisamente onde o trabalho de campo tem lugar [3] .

1. Entre a recordação e o esquecimento: a configuração da memória 

      Todos nós temos a faculdade de recordar (mas também de esquecer) acontecimentos passados, momentos singulares da nossa vida pessoal e, por mediação ou reprodução, da vida colectiva da sociedade a que pertence. Não tocando na análise dos aspectos físico-biológicos que sustentam o funcionamento da memória, empreendo uma breve revisitação por algumas reflexões sócio‑antropológicas acerca das diversas dimensões da memória na expectativa de que tal possa contribuir para melhor elucidar as questões inicialmente formuladas, em especial no que se relaciona com a memória individual, a memória colectiva, a recordação e o esquecimento. 

      Começando pela memória individual, Connerton (1993: 26-28) considera que ela se manifesta em três planos: (i) pessoal; (ii) cognitivo; (iii) habitus. Enquanto a memória pessoal caracteriza as recordações relacionadas com as experiências da vida de cada indivíduo, a memória cognitiva abrange todos os actos de recordação relacionados com os conhecimentos adquiridos, nomeadamente no plano linguístico, lógico, histórico, geográfico, etc. Como sublinha o autor, "para existir uma memória deste tipo o nosso conhecimento pressupõe, de algum modo, a ocorrência anterior de um estado pessoal cognitivo ou sensorial. Mas, ao contrário do primeiro tipo de memória não necessitamos de possuir qualquer informação sobre o contexto ou episódio da aprendizagem para sermos capazes de reter e utilizar este tipo de recordações" (1993: 27). Por último, a memória-hábito refere-se aos mais diversos comportamentos que adquirimos e que, sempre que tal se torna necessário, os executamos. É o caso de, entre os mais simples, caminhar e correr até aos eventualmente mais complexos, como pilotar um avião ou escalar uma montanha.   

      Se a memória é, como vimos, recordação, é forçoso relevar a sua outra dimensão, simultaneamente oposição e complemento: o esquecimento. É em torno destes que os indivíduos e os diferentes colectivos humanos edificam a sua identidade, articulando o dever ou a necessidade da recordação com o dever ou a necessidade do esquecimento (Caudau 1996: 5). Já em Augé, esta dupla dimensão da memória não está tão vincada no que se refere à recordação. Ao vê-la como produto da memória, ela surge como que sumida nesta, por contraponto ao esquecimento, a sua força viva (1998: 30). Inspirando-se nos rituais africanos, nos quais a memória do passado, a consideração para com o presente e a expectativa em relação ao futuro organizam a maioria destas práticas e se constituem como dispositivos de pensar e gerir o tempo (1998: 75), Augé reconhece três formas diferentes de esquecimento: (i) retour, isto é, recuperar o passado distante perdido através do esquecimento do presente e do passado recente; (ii) suspens, cujo objectivo é reconhecer o presente através do esquecimento - suspensão momentânea - do passado e do futuro [4] ; (iii) commencement, encontrar o futuro através do esquecimento do passado. Na primeira forma, encontramos como expoente máximo a possessão, na qual um outro - um espírito, um antepassado ou um deus - está simbolicamente dentro de um indivíduo vivo. Já na segunda forma, as inversões sexuais e sociais constituem os seus principais modos de expressão. Por exemplo, uma mulher que se transforma num homem ou um escravo que se proclama rei vivem esses momentos, esquecendo não apenas o passado como também o futuro, aquilo que voltarão a ser, esgotado esse presente fugidio. Na última forma, a iniciação, momento fundador que abre novas possibilidades para o futuro, é a sua melhor expressão. Todas estas formas são, no entender de Augé, ambivalentes, uma vez que os momentos em que elas se fazem sentir são, simultaneamente, acontecimentos sociais e experiências individuais (1998: 76-79).

      Acima de tudo, gostaria de relevar, citando de novo Augé (1998: 7), a importância do esquecimento para a sociedade e para o indivíduo. Sem ele, a saúde colectiva e individual estaria em risco. A impossibilidade de esquecer (hipertrofia da memória) - perturbação clínica pouco comum - provoca profundas desordens psicológicas nos indivíduos afectados, inviabilizando uma vida quotidiana normal. Por outro lado, sem o esquecimento as sociedades teriam, muitas vezes, dificuldades de prosseguir o seu quotidiano, toldadas pela recordação constante do horror e do ressentimento (Caudau 1996: 78-81) ou, ao invés, da euforia contagiante dos momentos festivos.

      Não quer isto dizer que a recordação seja menos importante. É ela, não raro, que permite dar sentido à vida, continuar a viver. Na Odisseia de Homero, Penélope é o paradigma da força da recordação, que lhe dá o alento para continuar a resistir, enquanto aguarda pela chegada do marido. A ama Euricleia exprime-o de uma forma muito intensa: "Acorda, Penélope, minha filha; vem, que os teus olhos contemplem aquilo que desejas todos os dias: ele chegou, Ulisses, está em tua casa, tardiamente, mas está cá" (Homero s.d.: 243). Mais, e agora já numa dimensão colectiva, a recordação sob a forma das cerimónias rituais e comemorativas, em especial as promovidas pelo Estado e outros poderes institucionalizados com funções (para)‑políticas, detém uma função social decisiva. Estes, para além de influenciar o comportamento e o pensamento dos indivíduos, contribuem também para a estruturação da memória colectiva (cf. Connerton 1993: 49-86).

      Se, como vimos, a relação entre recordação e esquecimento é muito forte, ela não será menor entre as memórias individuais e a memória colectiva. Começando por esta, Pujadas (1994: 618) argumenta que a memória colectiva - enunciação, através do discurso, da consciência colectiva - é, simultaneamente, a depositária do conjunto de atributos e símbolos de uma sociedade e um dos instrumentos de legitimação da ordem social dominante [5] . Embora me pareça atinente que a memória colectiva constitua a enunciação, através do discurso, da consciência colectiva, assim como o papel central que os agentes do poder político - "engenheiros do discurso social" na feliz expressão de Pujadas - desempenham na configuração da memória colectiva, penso que em sociedades estratificadas, como aquela que eu imagino encontrar em Moçambique, não existe apenas uma memória colectiva e, portanto, uma só consciência colectiva, mas sim várias memórias colectivas. Sustentadas, em parte, pelas suas memórias familiares, de classe, geracionais, étnicas e outras, as diversas memórias colectivas concorrem entre si para conquistarem o estatuto de memória colectiva institucional, ou seja, do Estado e dos diversos aparelhos político, militar e económico que o sustentam [6] . Assim, por correlação, parece pertinente considerar que se as ideias dominantes são as ideias da classe dominante, pois esta dispõe não somente dos meios de produção material como também dos meios de produção intelectual [Marx e Engels 1975 (1846): 55‑56], então a memória colectiva dominante é a memória colectiva da classe dominante ou, pelo menos, aquela que lhe é conveniente, que serve os seus interesses de manutenção e reprodução da ordem social vigente [7] . Como é isto conseguido? Tal como o poder não se impõe apenas pela coacção, tal como a ordem não depende apenas da repressão (Godelier 1992: 111), para a definição da memória colectiva contribui tanto a imposição como o consentimento.

      Não obstante a existência de instituições e de indivíduos especialmente investidos pelo poder com a tarefa de preservar, enunciar e inculcar a memória colectiva nos indivíduos que compõem o colectivo social, a sua reprodução nas memórias individuais não se faz por meio de uma estrita transacção mimética. Seguindo Pujadas (1994), se é certo que os actores sociais tendem a reproduzir o discurso dominante que dá a conhecer a memória colectiva, as memórias individuais, apesar de decisivamente influenciadas por aquela, são muito mais matizadas, dotadas de vida própria. Ou, numa perspectiva não muito diferente, formulada por Candau (1996: 67), a memória individual, embora autónoma, está em estreita articulação com a memória dos outros indivíduos, possuindo sempre uma dimensão colectiva. Ora, tal como sugere Holbwachs, citado por Candau (1996: 67), a memória individual cumpre-se sempre no seio de um determinado quadro social que, por sua vez, está implantado num dado espaço. Se, por um lado, não existe memória sem espaço, é também certo que qualquer alteração no espaço em que os indivíduos vivem, por migração ou transformação, produz naquela mudanças (cf. Halbwachs 1997: 193-236). De igual modo, qualquer mudança no quadro social imprime sempre uma alteração na memória individual. Mais, caracterizando com maior minúcia e densidade, é possível dizer que o conjunto das memórias individuais constituem o sistema de inter-relações que produz a memória colectiva (Bastide in Caudau 1996: 66). Todavia, é forçoso relevar que as memórias individuais têm desigual força e autoridade, não se fazendo ouvir por igual. É, certamente, bem diferente o poder de adesão e de convencimento que um discurso memorial, feito por uma autoridade política ou eclesiástica, possui face ao de um indivíduo despossuído de prerrogativas desta natureza.

2. Entre colonizador e colonizados: conflitos em torno da memória?

      Voltando ao terreno imaginado, considero plausível a existência de, pelo menos, duas memórias colectivas que, apesar de desiguais, quer em termos de símbolos, quer em termos de proximidade ao poder político, continuam a defrontar-se e a tentar influenciar o observador. São elas a memória colectiva dos (ex)-colonizadores e a memória colectiva dos (ex)‑colonizados. Se estas memórias exprimem uma diferença, com dimensão histórica, em termos político‑administrativos, traduzem também o antagonismo identitário fundado na etnia, o branco face ao indígena africano [8] . Daí estar consciente que as memórias dos (ex)‑colonizadores e dos (ex)-colonizados serão, em muitos domínios, divergentes [9] .  Uns e outros são condicionados por aspectos como a classe social, a etnia, o género e a posição político‑ideológica. Ora, é admissível considerar que as grandes linhas de fronteira entre uma e outra memória colectiva se estabelecem precisamente em torno do papel desempenhado pelos diversos actores sociais. Hipoteticamente, será diferente a memória enunciada por um nativo moçambicano camponês-operário face à enunciada por um agente da administração colonial; a de uma nativa criada doméstica por oposição à da mulher dum grande proprietário de terras; a do jovem guerrilheiro face à do agente da polícia política do Estado colonial. Mas se em todos estes exemplos surge como primeiro elemento diferenciador a etnia, importa graduar um pouco as oposições nela fundadas. De facto, é também de supor, não obstante as diferenças étnicas, de classe ou outras, a partilha, se não de uma mesma memória, pelo menos de diversos dos seus componentes entre, por exemplo, o jovem colono português politizado e anticolonialista e os militantes africanos pró‑independência.

      No que se relaciona com a memória dos portugueses durante o tempo colonial, Almeida (1991: 247-261) mostra-nos como o Estado Novo em Portugal, mas certamente também em Moçambique e nas outras colónias africanas, (re)produz socialmente a memória colectiva dominante, proclamando a grandeza de Portugal, do Minho a Timor. No mesmo sentido, já num tom irónico, quase subversivo, Souta (1995: 53-55) descontrói essa memória colectiva sobre o império colonial português, através dos diálogos do professor Silva Lobo com os seus jovens alunos a propósito da anexação, em 1961, de Goa pela União Indiana [10] . Estes exemplos justificam, em meu entender, uma reflexão cuidada sobre o impacto dos manuais escolares utilizados nas escolas primárias moçambicanas até à independência. Em concreto, é meu propósito analisar o modo como os conteúdos destes livros (e os programas que os suportavam) são hoje representados pelos indivíduos escolarizados. Daqui resultarão pistas para a compreensão da permanência (ou não) nas memórias colectivas, em especial na institucional, dos principais valores e factos inculcados pelo Estado colonial português nos moçambicanos [11] .

      O meu trabalho nesta matéria não se esgotará, contudo, nestes livros. A indagação das memórias colectivas implica também a análise dos livros escolares adoptados após a independência. E uma vez que Moçambique vive, como já atrás foi referido, um processo de integração na economia-mundo capitalista, será também proveitoso para a investigação conhecer o que mudou nos manuais, tarefa que se articula com a análise das mudanças no discurso e na ideologia por parte do poder político moçambicano [12] . Assim, será pertinente identificar as principais alterações em relação ao passado mais distante - o período colonial, em especial o do tempo da guerra - e o mais recente, da independência até ao fim da guerra civil, que muito nos dirá sobre o que efectivamente mudou a nível político‑ideológico em Moçambique.

      De relevar também o contraste antes/agora que neste contexto assumirá - estamos, de novo, no plano das hipóteses - diversas expressões: (i) antes da chegada dos Portugueses colonizadores e agora no presente; (ii) antes da independência e agora no presente; (iii) no tempo da colectivização e das experiências de orientação socialista e agora no presente. [13] Esta oposição entre o antes e o agora é uma dicotomia temporal que está presente, como salienta Caudau (1996. 39), em todas as sociedades e em todos os grupos sociais e que organiza todo o processo de recordação [14] .

      Numa outra dimensão será também atinente confrontar as alterações ao nível da percepção e utilização do tempo: do tempo cíclico, dominado pelos ritmos das estações do ano, do dia e da noite, ao tempo do relógio, rigorosamente medido e que determina e regula a vida dos indivíduos em função das obrigações exigidas pelo trabalho nos diversos espaços de produção modernos [15] . Em que medida estes diferentes tempos permanecem e se articulam, hoje, no quotidiano da vida da comunidade a observar, que mudanças provocou e, por último, de que forma a memória colectiva e as memórias individuais as narram são questões da maior pertinência, que espero poder aclarar durante o trabalho de campo. Gostaria, porém, de arguir que o tempo rigorosamente medido por aparelhos mecânicos, organizador da vida dos indivíduos ao arrepio do tempo cíclico, constitui um dos elementos estruturantes da modernidade ocidental, em especial da vida nos espaços urbanos e do trabalho industrial e, portanto, uma das principais oposições entre as sociedades primitivas e as sociedades industriais. Esta mudança remonta, para a Europa, como mostra Le Goff (1979: 61-73), ao século XIV, e está ligada às novas condições do trabalho emergentes nos principais centros urbanos, por contraste com "o tempo de uma economia ainda dominada pelos ritmos agrários, sem pressas, sem preocupações de exactidão, sem inquietações de produtividade" (1979: 62). Sem deixar de concordar com Le Goff, julgo necessário matizar um pouco estes contrastes. Por um lado, existem premências e urgências nas sociedades agrícolas não-modernas impostas pelas ameaças atmosféricas - chuvas, neve, geadas e outras - que exigem dos indivíduos respostas apressadas. Por sua vez, não obstante o tempo cada vez mais apressado que sujeita os indivíduos nas sociedades industriais, não apenas no trabalho mas também no lazer (cf. Santos 1994: 98), todos nós conhecemos modos e práticas de resistência a estes usos do tempo, aos quais recorremos com frequência, muitas vezes quotidianamente.

3. Memória em contexto pós-colonial e etnografia

 

      Aqui chegados, é possível afirmar que não existe uma única mas antes uma pluralidade de memórias colectivas que concorrem entre si. Esta pluralidade de memórias colectivas diz-nos mais do que muitas vezes possamos augurar sobre a vida social observada, destapando aspectos como as tensões e as lutas entre os indivíduos pela permanente reconstrução do passado e pela sua requalificação social. Durante o meu trabalho de campo em Águeda, fui confrontado com diferentes memórias familiares que lutavam pela imposição da sua memória como a memória colectiva sobre a industrialização em Águeda. Sem deixar de fazer a crítica destas memórias divergentes, nomeadamente através da sua comparação com as fontes escritas disponíveis, relevei a importância social da memória, justamente porque os actores sociais viam na memória colectiva, entre outros aspectos, um importante instrumento classificatório da posição de cada um na estrutura social local (cf. Ribeiro 1996: 42ss). Quer isto dizer que, não raro, a mentira, o disfarce, os silêncios e as manipulações do passado são analítica e socialmente mais importantes do que os acontecimentos em si mesmo.    

      Na minha investigação pretendo eleger as histórias de vida como a principal fonte de informação e "primeira ‘versão’ da realidade" no que respeita ao passado e aos contextos sociais pré-colonial e colonial [16] (Poirier et al. 1995: 33). Neste sentido, considero que a objectivação da realidade social, entendida como o mundo das coisas, das pessoas e dos símbolos, é possível, nomeadamente através do trabalho antropológico. Ao contrário do defendido por diversos antropólogos pós-modernos, a etnografia está longe de ser uma ficção, um mero exercício literário. Como esclarece Layton (1997: 208-209), recordando que Geertz foi o primeiro a defender a ideia da etnografia como ficção, não podemos ignorar a existência real e não ficcional dos actores sociais observados. Independentemente daquilo que escrevermos sobre eles, e ao contrário das personagens dos romances literários, continuam a existir e a etnografia faz referências precisamente às suas existências [17] .

      As histórias de vida são um recurso fundamental para qualquer trabalho de terreno, no qual o uso da memória constitui uma vertente importante, porque, como salienta Poirier e al., elas estão ligadas a uma "lógica inconsciente da memória colectiva [...] querem fazer falar os ‘povos do silêncio’ através dos seus representantes mais humildes: do pastor da região de Limoges ao emigrado, do operário fabril ao camponês bambara ou ao pastor peul" (1995: 9‑10). De igual modo, Zonabend (1989) releva, assumindo uma clara preferência pelas metodologias qualitativas, que uma história de vida pode produzir mais informação e com superior coerência do que numerosas respostas a um questionário pré‑estabelecido [18] .

      A vigilância crítica destas narrativas deve começar pelo distanciamento do investigador em relação ao narrador. Este distanciamento permite reforçar a capacidade para fazer a crítica daquilo a que Bertaux designa, citado por Poirier e al. (1995: 25), a "ideologia autobiográfica", que se exprime na manipulação, muitas vezes inconsciente, por parte do narrador da sua própria existência, eliminando os aspectos menos convenientes e favoráveis e introduzindo e valorizando os elementos mais positivos, a vida que desejava ter tido e não teve. É necessário tomar em linha de conta que os indivíduos recorrem amiúde aos mecanismos de barreira e de bloqueamento (Poirier e al. 19895: 34), sempre que as suas vivências lhes pareçam intoleráveis, quer do ponto de vista psicológico, quer no plano mais alargado da sua inserção na vida social. Um exemplo, que é também uma estratégia de esquecimento, está patente na investigação de Zonabend (1989) sobre a vida quotidiana dos trabalhadores e dos residentes em redor das instalações nucleares de La Hague (Normandia). Os discursos (mas sobretudo os silêncios e os actos) ocultam um risco insuportável, uma realidade dramática a viver (possivelmente) num futuro mais ou menos próximo. Para muitos, não ver a central nuclear é sinónimo de protecção. No caso de esta ser avistada das residências, a solução passa pela construção de um muro, de uma qualquer barreira que a oculte. Em caso de impossibilidade de ocultação física, o vento é a barreira de dissimulação com a qual os habitantes justificam a sua imunidade face a um eventual acidente nuclear. Esta posição é sustentada pelo cruzamento das posições da central com as das habitações e com a orientação dominantes dos ventos nessa zona.

      O distanciamento é, no essencial, uma estratégia intelectual para fazer a crítica do que é dito pelos observados, na qual a etnobiografia tem um papel decisivo. Partindo da história de vida, a etnobiografia articula o narrador com o contexto social a que pertence, uma vez que ele não é um ser isolado, mas antes um actor social que vive numa dada sociedade. Com ela se faz a escuta activa dos informantes, a análise dos testemunhos, muitas vezes acompanhada por uma releitura destes com os seus autores, a pesquisa de informação acerca dos indivíduos citados ainda vivos e, por último, o confronto das diversas narrativas entre si e destas com as fontes documentais disponíveis (Poirier e al. 1995: 36‑39).

      Esta vigilância metodológica não se circunscreve às histórias de vida, devendo estar presente ao longo de todo o trabalho de campo etnográfico. O que implica, da parte do investigador, uma permanente atenção ao contexto social no qual vivem os actores sociais observados, tomando em consideração aspectos como a identidade e a posição social de cada um deles, e sujeitando as suas observações ao escrutínio da triangulação, estratégia de comparação de diferentes fontes de informação que tem, como observam Hammersley e Atkinson (1994: 216-217), afinidades com os procedimentos de navegação e orientação no mar.

      A confrontação dos diversos testemunhos e documentos não se esgota, porém, no que acima foi dito. Na verdade, o desenvolvimento da antropologia visual proporcionou novas ferramentas de observação etnográfica. Certamente aumentando as dificuldades da pesquisa - os historiadores de história contemporânea sabem bem o que isto significa, quase sempre vergados ao peso da superabundância de informação - a fotografia e o audiovisual constituem recursos cada vez mais frequentes na investigação antropológica. Não apenas como era habitual no passado, meros suportes ilustrativos do texto antropológico, mas como modos de descrição e interpretação dos contextos sociais observados, de grande utilidade no mapeamento da paisagem observada, no registo e análise dos artefactos e das técnicas de produção e dos mais diversos aspectos da vida dos indivíduos em sociedade (cf. Collier e Collier: 1986). Por outro lado, estes recursos podem funcionar, em contextos de exploração da memória, como catalisadores das recordações, permitindo, muitas vezes, trazer à existência acontecimentos, emoções e momentos da vida dos observados que estes julgavam definitivamente esquecidos. Como sustenta Piette (1992: 132), o contacto com a fotografia facilita a indução no observado‑informante de choques emocionais e o despertar na consciência de recordações olvidadas que podem contribuir para uma narrativa mais coerente e uma interpretação melhor sustentada do contexto investigado. No quadro da investigação, é minha intenção efectuar uma busca de fotografias desses tempos coloniais em arquivos públicos e em colecções privadas de antigos colonos portugueses, com o objectivo de copiar os exemplares mais significativos. Não tenho dúvidas da viva impressão que estas fotografias provocarão nos indivíduos a observar, em especial naqueles que tenham memória pessoal das pessoas, acontecimentos, paisagens e outros elementos nelas fixados. 

      Dotada, como vimos, de inegáveis recursos para a investigação social, a exploração da memória é também um instrumento essencial para o conhecimento e a compreensão das mudanças verificadas em qualquer contexto social. Aqui, quero sublinhar a minha divergência com Godelier. Este autor defende que "não é possível medir a mudança a não ser que se conheça [por observação directa] o estado anterior" (1992: 103). Apesar de reconhecer que as dificuldades são acrescidas nas sociedades sem escrita, a posição de Godelier, no limite, leva-nos à irredutível impossibilidade de acesso a todo o conhecimento histórico e antropológico acerca das sociedades, acontecimentos e mudanças verificadas ao longo da história da humanidade. Assim, parece-me tão válido analisar a mudança numa dada sociedade por observação directa como por mediação da memória dos observados. De uma forma ou de outra, é necessário, recorrendo à comparação e apoiados (e assumindo-os) nos nossos pressupostos teórico‑metodológicos, fazer a crítica do que é dito pelo observador‑participante ou pelos observados.

      Não é por ter lá estado, por ter vivido o estado anterior à mudança que as observações e conclusões do antropólogo ficam investidas de uma autoridade e legitimidade irrefragáveis, para lá de toda e qualquer dúvida. A discussão em torno do kula, observado, antes da mudança modernizadora, por Malinowski na Melanésia, é, a meu ver, um caso bem elucidativo. Mais interessado nos elementos bio-psicológicos, essenciais a qualquer explicação funcionalista (Harris 1979: 475), do que na análise das relações económicas, Malinowski viu no comércio feito pelos melanésios entre as diversas ilhas, algumas separadas por largas centenas de quilómetros, actos de trocas de colares vermelhos e braceletes de conchas motivados fundamentalmente por razões de prestígio e aspirações mágicas, minimizando o valor económico ligado ao transporte e troca de cocos e outros frutos, peixe, vegetais e artefactos diversos. Depois de Malinowski, não obstante a análise do kula ser mediada pelos seus escritos, foram muitos os antropólogos que o reinterpretaram. Ainda bem recentemente, Layton (1997: 30-33), embora não tenha, obviamente, presenciado os acontecimentos vividos e descritos por Malinowski, elaborou mais uma pertinente crítica às teses funcionalistas por este desenvolvidas.  

4. Considerações finais

      Fazendo o balanço de tudo o que foi dito, é de concluir que a prática antropológica em contexto pós-colonial exige uma utilização intensa e alargada das memórias individuais e colectivas, não obstante as inúmeras dificuldades que o seu uso coloca ao investigador. Umas e outras, em estreita e permanente articulação, constituem instrumentos preciosos para a leitura antropológica do terreno por parte do investigador.

      Embora a memória, no sentido estrito que lhe é dado pela biologia, seja uma propriedade do que é humano, inerente ao indivíduo, julgo ser admissível considerar, em termos sociais, a existência de memória(s) colectiva(s) partilhada(s) pelos indivíduos nos diversos espaços sociais onde se desenrola a vida social: a família, o trabalho, a comunidade, o Estado, etc. Tal como não é possível falar numa única memória individual, penso que também, como terá ficado demonstrado ao longo do texto, não é admissível conceber uma única memória colectiva, em especial em sociedades estatais, marcadas pelas mais diversas formas de desigualdade que condicionam a vida social e cunham os destinos desiguais dos indivíduos. Neste sentido, ensaiando uma analogia com a memória individual, que na sua dimensão biológica se pode dividir em três diferentes formas - imediata, de médio prazo e de longo prazo -, a memória colectiva parece ter também um modo semelhante de funcionamento, que se cumpre sempre num dado tempo e espaço. Se o modo como a memória usa e representa o tempo é variável, também o espaço nela penetra, condicionando-a e mudando-a. 

      A terminar, gostaria de referir que o trabalho antropológico está profundamente marcado pela memória, em permanente (re)construção, que o investigador possui em relação ao terreno. Para mim, o texto que agora se esgota testemunha o papel singular da memória do autor no modo como olha para os usos da memória. Ele é, em si mesmo, um exercício intelectual baseado na minha memória individual para cuja construção contribuíram as leituras predominantemente antropológicas empreendidas e as minhas experiências pessoais.


Notas

 

[1] Antropólogo, Departamento de Ciências da Educação, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (Pólo de Chaves), Rua Dr. Júlio Martins, 5400-342 CHAVES, telefone: 276 301260 - fax: 276 333 913 - e.mail: fbessa@utad.pt.

  Uma versão anterior e reduzida deste texto foi apresentada no congresso "Práticas e Terrenos da Antropologia em Portugal", organizado pela Associação Portuguesa de Antropologia (Lisboa, Novembro de 1999). Agradeço ao Prof. Doutor José Portela a leitura crítica das várias versões deste texto. Dela resultaram numerosos reparos e sugestões que me ajudaram a desfazer interrogações e a abrir novas pistas. Se é certo que só a mim me cabe a responsabilidade pelos erros e deficiências do texto, os seus eventuais méritos têm de ser partilhados.

[2] Bloch (1995) argumenta que a memória é, hoje, um tema da maior importância para a Antropologia, a Sociologia e a História. Os antropólogos, os sociólogos e os historiadores estão interessados nas representações sociais do passado e nos seus diferentes modos de transmissão, de geração em geração: oralidade, escrita, rituais e objectos culturais.

[3] De notar que não é minha intenção apresentar propostas concretas, "receitas" prontas a aplicar em programas de desenvolvimento, justamente porque, entre outros aspectos, me faltam os recursos institucionais. Mas não só, quero também sublinhar as minhas reservas em relação a muito do trabalho em antropologia aplicada efectuado nos mais diversos continentes. Apropriando-me do argumento de Maurice Bloch em entrevista à Anthropology Today (1988, vol. 4, nº 1: 19), estamos  perante um novo tipo de parasitismo dos pobres em que estes, pretensos beneficiários da ajuda, mais não são do que meros instrumentos para sustentar organizações, projectos e emprego nos países centrais. Este tema exige, de todos nós, em especial dos cientistas sociais, uma renovada vigilância. Excedendo largamente o âmbito do presente texto, é meu propósito, no espaço deste projecto de investigação, contribuir positivamente para uma crítica implicada sobre a antropologia aplicada, que é inseparável do processo de desconstrução da aparente neutralidade ideológica e da bondade dos países e organizações doadores.

[4] Procurando numa enciclopédia o significado da palavra esquecimento - acto ou efeito de esquecer, que por sua vez significa perder a lembrança de alguma coisa  - é possível considerar que ela sofre uma forte deformação quando aplicada ao futuro. Talvez mais apositamente, o que temos é uma recusa em imaginar o futuro.

[5] É hoje comummente aceite que foi Durkheim o primeiro a definir o conceito de consciência colectiva, que compreende os sentimentos, crenças e pulsões partilhadas pela maioria dos membros de uma mesma sociedade [1977 (1893)]. Na tradição teórica marxista, a expressão consciência surge habitualmente associada ao conceito de classe, exprimindo a pertença de um indivíduo, reiteradamente e conscientemente afirmada, a uma dada classe social. Considerada determinante para a luta de classes, Marx e Engels [1975 (1846)] articularam, no plano ideológico, a consciência de classe com a produção das ideias, considerando que o grau de consciência varia com a posição de classe do indivíduo.

[6] As memórias colectivas não se esgotam, porém, nesta função. Indissociável desta é a sua função de estruturação da identidade, coesão e diferença dos diversos grupos étnicos e sociais que compõem qualquer sociedade africana dotada de um Estado de tipo moderno. Neste contexto, a memória colectiva aparece como um discurso de alteridade, na qual a posse de uma história que os outros não partilham dá ao grupo a sua identidade (Zonabend 1980: 310).

[7] Articulando-se poder com memória, não posso deixar de referir a ideologia, que me parece penetrar quer o poder, quer a memória. Assim, a ideologia é um "poder subordinado, é uma forma transformada, quer dizer, irreconhecível, transfigurada e legitimada, das outras formas de poder" (Bourdieu 1989: 14-15). Manifesta‑se através da imposição de uma interpretação do contexto social conveniente aos interesses das classes dominantes, servindo "interesses particulares que tendem a apresentar como universais, comuns ao conjunto do grupo" (Bourdieu 1989: 10). Significa isto que a ideologia faz parecer natural aos olhos dos dominados o poder instituído (e a própria ideia de poder), contribuindo para o seu processo de legitimação e levando-os a agir, em termos de comportamentos e pensamentos, de acordo com os interesses que melhor servem as classes dominantes. Resta dizer que "o Poder não se origina nunca de uma decisão arbitrária no vértice, mas vive de mil formas de consenso miúdo ou ‘molecular’. São precisos milhares de pais, mulheres e filhos que se reconheçam na estrutura da família para que um poder possa reger-se pela ética da instituição familiar" (Eco 1986: 177).  

[8] Já que falamos de (ex)-colonizadores e (ex)-colonizados é pertinente elucidar o significado de colonialismo. Adopto a penetrante e sintética caracterização formulada por Santos (1999: 4-5): "o colonialismo é a percepção do outro como objecto, e consequentemente o não reconhecimento do outro como sujeito". 

[9] Permanece bem viva na minha memória pessoal a classificação feita pelo meu pai, antigo combatente no exército colonial português, dos guerrilheiros dos movimentos de libertação contra os quais lutou no enclave de Cabinda: turras, jargão curto, incisivo e de uso corrente entre os militares portugueses, substituto da palavra terroristas, cujo emprego ficava reservado para contextos mais formais.

[10] De notar que esta memória "oficial" foi substituída pós-Revolução de Abril. Recordo-me como os livros pelos quais eu aprendia na escola primária - frequentava a 2ª classe no ano de 1974 - se alteraram profundamente. A esta concorrência das memórias em diferentes tempos no mesmo espaço põe-se uma outra, a da concorrência no mesmo tempo em espaços diferentes. É o caso do papel desempenhado pelos americanos e soviéticos na derrota do nazismo, no tempo dos dois Estados alemães. Enquanto que para a maioria dos alemães ocidentais os primeiros são os responsáveis pela vitória sobre o nazismo, já para os alemães do leste os méritos da vitória pertencem aos soviéticos (Candau: 1996. 62).

[11] É minha intenção ir mais longe, articulando a memória com a escola e com a escrita. Como mostra Goody (1977: 42‑49), a escola, ao favorecer os exercícios de memória, transforma a cultura, incluindo os seus modos de transmissão.

[12] A leitura das corrosivas crónicas de Vasconcelos (1999) constitui um excelente exercício para uma primeira aproximação a estas mudanças, sobretudo no que se refere à duplicidade discursiva colocada a nu pelo autor.

[13] Uma das experiências mais bem conhecidas é a das aldeias comunais, acerca das quais Casal (1996) efectuou uma longa e profícua investigação.

[14] Estão bem presentes na minha memória os discursos enunciados por todos os actores sociais por mim contactados em Águeda que, de uma forma continuada, recorriam a esta dicotomia para organizarem as suas memórias (Ribeiro 1996).

[15] Veja-se a análise convincente de Portela (1998: 14-17) acerca do modo como as sociedades usaram e usam o tempo. Para além de elucidar as mudanças a que a própria noção está sujeita, em especial no tempo que vivemos, convoca a nossa atenção, questionando e delineando caminhos, para o tempo futuro. Nesta perspectiva, pôr os actores sociais a "falar e pensar o futuro" (1998: 16), é, em meu entender, uma tarefa indispensável.

[16] Adopto a expressão história, de uso generalizado na escrita em língua portuguesa nas ciências sociais, em lugar da expressão narrativa. Considero, porém, pertinente a subtil distinção que Bertaux (1997: 6 e 32-34) estabelece entre a "história de vida" e a "narrativa (récit) de vida". Segundo ele, esta última expressão é mais adequada, uma vez que se refere precisamente à narrativa que um determinado actor social pode fazer, quando inquirido por um investigador, da sua história de vida nesse momento da sua existência.

[17] Prosseguindo a crítica, Sobral (1999: 33-38) mostra-nos, citando Searle, que os factos e os objectos não são afectados pelas diferentes interpretações que possam ser produzidas sobre eles. Opondo-se às práticas antropológicas "pós‑modernas", centradas nos discursos e nas representações dos actores sociais e desinteressadas das estruturas sociais que os condicionam, Sobral (1999: 36) renova a defesa de uma abordagem realista, que conjugue, justamente, o estudo das estruturas objectivas exteriores aos indivíduos e aos grupos com o estudo das representações dos actores sociais.

[18] A autora assume o seu desinteresse pelos métodos quantitativos e pela representatividade dos dados recolhidos em favor do escrutínio da emoção, do irracional, do imaginário, aspectos da vida quotidiana que escapam, não raro, à observação dita objectiva (Zonabend 1989: 21). Sem denegar, obviamente, a validade desta estratégia investigativa, é necessário evitar os fundamentalismos metodológicos que, muitas vezes, nos atam. Para além de não fazer sentido qualquer discussão em torno da superioridade de uma técnica face a outra, o cruzamento entre diferentes técnicas de recolha de dados detém indiscutíveis méritos (Portela 1985: 158). Naturalmente, a investigação que me proponho realizar fará apelo a todos os métodos e técnicas considerados adequados e úteis à resolução dos problemas e à concretização dos objectivos definidos. Embora centrado na observação participante e outros métodos qualitativos como as histórias de vida, recorrerei, sempre que necessário, aos métodos quantitativos e à pesquisa documental.

Bibliografia

ALMEIDA, Miguel Vale de (1991), "Leitura de um livro de leitura: A sociedade contada às crianças e lembrada ao povo" in Seminário Terrenos Portugueses: Lugares de aqui (actas). Lisboa, Dom Quixote: 245-261.

AMIN, Samir (1999), O Eurocentrismo: Crítica de uma ideologia. Lisboa: Edições Dinossauro.

AUGÉ, Marc (1998), Les formes de l’oubli. Paris: Éditions Payot & Rivages.

BERTAUX, Daniel (1997), Les récits de vie. Paris: Éditions Nathan.

BLOCH, Maurice (1995), "Mémoire autobiographique et mémoire historique du passé éloigné". Enquête, nº 2: 59‑76.

BOURDIEU, Pierre (1989), O poder simbólico. Lisboa: Difel.

CASAL, Adolfo Yañez (1996), Antropologia e desenvolvimento: as aldeias comunais de Moçambique. Lisboa: Instituto de Investigação Científica e Tropical.

CAUDAU, Joel (1996), Anthropologie de la mémoire. Paris: Presses Universitaires de France.

COLLIER, John e COLLIER, Malcolm (1986), Visual anthropology: Photography as a research method. Albuquerque: University of New Mexico Press.

CONNERTON, Paul (1993), Como as sociedades recordam. Oeiras: Celta Editora.

DURKHEIM, Émile [1977 (1893)], A divisão do trabalho social. Lisboa: Editorial Presença

ECO, Umberto ( 1986), Viagem na irrealidade quotidiana. Lisboa: Difel.

GRILLO, R. D. (1997), "Discourses of development: the view from anthropology" in R. D. Grillo e R. L. Stirrat (ed.), Discourses of development: Anthropological perspectives. Oxford: Berg.

GODELIER, Maurice (1992), "«Espelho meu, espelho meu...» O papel da antropologia no passado e no futuro: uma avaliação provisória", Ler História, 23: 101-116.

GOODY, Jack (1997), "Mémoire et apprentissage dans les sociétés avec et sans écriture: la transmission du Bagre". L’Homme, XVII (I): 29-52.

HALBWACHS, Maurice (1997), La mémoire collective. Paris: Éditions Albin Michel.

HAMMERSLEY, Martyn e ATKINSON, Paul (1994), Etnografia: Métodos de investigación. Barcelona: Editorial Paidós.

HARRIS, Marvin (1979), El desarrollo de la teoría antropologíca: una história de las teorías de la Cultura. Madrid: Siglo XXI de España Editores.

HOMERO (s.d.), A Odisseia. Mem Martins, Edições Europa-América.

LAYTON, Robert (1997), An introduction to theory in Anthropology. Cambridge: Cambridge University Press.

LE GOFF, Jacques (1979), Para um novo conceito de Idade Média: Tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Lisboa, Editorial Estampa: 61-73)

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich [1975 (1846)], A ideologia alemã: Crítica da filosofia alemã mais recente na pessoa dos seus representantes Feuerbach, Bruno Bauer e Stirner, e do socialismo alemão na dos diferentes profetas. Lisboa: Editorial Presença.  

PIETTE, Albert (1992), "La photographie comme mode de connaissance anthropologique". Terrain 18: 129-136.

POIRIER, Jean, CLAPIER-VALLADON, Simone e RAYBAUT, Paul (1995), Histórias de vida: Teoria e Prática. Lisboa: Celta Editora.

PORTELA, José (1985), "Observação participante (reflexões sobre uma experiência)". Cadernos de Ciências Sociais, 3: 157-176.

PORTELA, José (1998), "Viver um tempo novo? Sim, in Loco". A Rede para o Desenvolvimento Local, Novembro (edição especial): 14-17.

PUJADAS, Juan J. (1994), "Memória colectiva y discontinuidad: la construcción social de las identidades culturales" in Ricardo Sanmartin (coord), Antropologia sin fronteras: Ensayos en honor a Carmelo Lisón. Madrid, Centro de Investigaciones Sociológicas: 617-633.

RIBEIRO, Fernando Bessa (1996), Memória industrial em Águeda: Fundamentação preliminar para um enquadramento museológico. Braga: Universidade do Minho. 

SANTOS, Boaventura de Sousa (1994), Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. Porto: Edições Afrontamento.

SANTOS, Boaventura de Sousa Santos (1999), "Os novos caminhos da teoria crítica" in www.ces.fe.uc.pt/coloquio/ Boaventura­_de_Sousa_Santos.html (6 de Maio de 1999).

SOBRAL, José Manuel (1999), Trajectos: O presente e o passado na vida de uma freguesia da Beira. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais.

SOUTA, Luís (1995), A escola da nossa saudade. Porto: Profedições.

VASCONCELOS, Leite de (1999), Pela boca morre o peixe (crónicas). Maputo: Associação dos Amigos de Leite de Vasconcelos.

ZONABEND, Françoise (1980), La mémoire longue: Temps et histoires au village. Paris: Presses Universitaires de France.

ZONABEND, Françoise (1989), La prequ’île au nucléaire. Paris: Éditions Odile Jacob.


Buscar en esta seccion :