Especial NAyA 2001 (version en linea del cdrom)

PINTURAS RUPESTRES, IMAGENS DO GÊNERO:  ORIENTAÇÕES  TEÓRICO-METODOLÓGICAS.

Luís Felipe Rios [1]

RESUMO

Esta comunicação se constitui em uma primeira notícia à comunidade científica mais ampla dos caminhos que temos percorrido por entre pinturas e grafismos dos Sertões do Nordeste brasileiro. Apresenta as  estratégias teórico-metodológicas que temos nos utilizado para que tais vestígios arqueológicos passem do estatuto de  "atestados mudos" da existência de grupos humanos em períodos que ultrapassam os 12 mil anos BP, para o estatuto de ‘registros informacionais’ que nos "fale" de como se organizavam os Sistemas de Gênero de grupos que hoje não mais existem.

INTRODUÇÃO

Nos Sertões do Nordeste brasileiro, desenvolveu-se uma arte rupestre pré-histórica das mais ricas e expressivas do mundo, demonstrando a capacidade adaptativa e, sobretudo, imaginativa de numerosos grupos humanos que povoaram a região desde épocas que remontam ao final do pleistoceno (Martin, 1997).

Esta comunicação se constitui em uma primeira notícia à comunidade científica mais ampla dos caminhos que temos percorrido por entre pinturas e grafismos, perante os mortos que se fazem presentes através dos fragmentos de cultura material os quais deixaram como herança e marca de suas presenças no passado Nordestino. 

Nossa tarefa no projeto de pesquisa "Antropologia Visual na Pré-História do Nordeste" é a de buscar estratégias teórico-metodológicas para que tais vestígios arqueológicos passem do estatuto de  "atestados mudos" da existência de grupos humanos em períodos que ultrapassam os 12 mil anos BP, para o estatuto de ‘registros informacionais’ que nos "fale" das relações socioculturais, mais especificamente, de como se organizavam os Sistemas de Gênero de grupos que hoje não mais existem.

No desenrolar deste artigo abordaremos três tópicos que, de forma compactada, permitirão ao leitor acompanhar a trajetória do nosso trabalho:

·   O primeiro tópico é dedicado a mostrar como temos pensado, de um ponto de vista teórico, os limites e possibilidades de uma abordagem antropológico-interpretativa dos vestígios arqueológicos.

·   No segundo tópico, buscamos localizar, frente às especificidade do objeto e às demandas dos objetivos que norteiam o nosso trabalho, os caminhos metodológicos adotados.

·   Finalmente, no último tópico, abordaremos como temos tratado as Pinturas Rupestres em relação ao recorte temático em jogo, qual seja, como os vestígios pré-históricos podem nos dizer sobre as relações entre homens e mulheres na pré-história e em que tal abordagem pode contribuir para o estudo dos Sistemas de Gênero. Ainda no âmbito deste tópico, apresentamos o arcabouço teórico específico -- Teoria de Gênero --; arcabouço a que nos afiliamos para apreender do universo em investigação, o que objetivamos investigar.

LIMITES E PERSPECTIVAS

Cabe ao antropólogo estudar as construções humanas (comportamentos, concepções, sistemas de crenças, valores, etc.) que estão envolvidas nos mais variados eventos sociais. Na maior parte dos trabalhos realizados no âmbito da Antropologia estas construções são apreendidas através dos padrões norteadores da ação, isso via as relações sociais. Seja as relações observadas pelo pesquisador na prática quotidiana de determinado grupo, seja as atualizadas nas performances discursivas e captadas em entrevistas.

Quando estamos estudando as pinturas pré-históricas, entretanto, nos deparamos com o produto das relações sociais, com fragmentos de uma cultura cristalizados em imagens. Nossa tarefa é, a partir destes fragmentos, reconstituir um universo de significados, para sempre perdido, pois que seus autores e atores não mais estão lá para nos dizer o sentido que atribuíam eles ao que constituíram. Para que o nosso trabalho ganhe consistência científica  cabe questionarmos sobre as possibilidades e limites de tal intento.

"Será, todavia, que as nossas 'coisas', os objetos arqueológicos, estão à altura de desempenhar o papel que esperamos delas? Constituirão elas fontes de dignidade e/ou natureza idêntica às 'palavras' que, tradicionalmente, alimentam a pesquisa histórica? ... Qual o estatuto e capacidade informativa de 'monumentos' e 'documentos'?" (Raposo, 1996: 18)

Tomemos como nossos tais indagações e, a partir delas, busquemos localizar e problematizar epistemologicamente o estatuto de nossa tarefa. O primeiro passo, na busca de respostas é fugir da falsa dicotomia entre bens materiais enquanto 'mudos' e 'estáticos' e documentos escritos enquanto 'explícitos' e 'dinâmicos'; para isso lembremos do proposto por MarcBloch (Apud. Raposo, 1996: 18), já nos anos 40: 

"Os textos escritos, ou os documentos arqueológicos, mesmos os mais claros na aparência e os mais condescendentes, só falam quando se sabe interrogá-los. Nunca, em ciência alguma, foi fecunda a observação passiva. Supondo, aliás, que seja possível."

Em outras palavras, nenhuma fonte de dados é totalmente 'explícita' e 'dinâmica', e o seu reverso também é verdadeiro. O objeto arqueológico, enquanto isolado é, sem dúvida, mudo; contudo a arqueologia/antropologia, se mune de métodos e teorias que permitem, ao recolocar um objeto em um 'contexto' empírico e teórico, que ele se 'expresse' enquanto fonte de informação. Neste sentido podemos localizar o objeto arqueológico enquanto texto de cultura material (Raposo, 1996).

Complementaremos nossa defesa em favor do valor  informativo do objeto arqueológico com uma última citação do Arqueólogo Português Luís Raposo (1996: 19):

"... a força de um ou outro tipo de fonte histórica não esteja no maior ou menor valor apriorístico  do seu testemunho, no colorido mais ou menos dinâmico do seu relato, na apresentação mais ou menos explicita das intenções dos seus autores, mas tão-só na coerência da sua integração num contexto que o historiador/arqueólogo reescreve e, idealmente, espera poder representar a melhor aproximação da realidade passada".

Reconhecido o valor informacional dos vestígios pre-históricos, constituído enquanto objeto arqueológico através de estratégias teórico-metodológicas, passemos a um outro nível de nossa problematização. Olhemos mais de perto o material empírico eleito como a principal fonte de dados, ou, de outro modo, os vestígios pré-históricos que queremos "desvelar". Consideremos as especificidades morfo-funcionais e as habilidades técnico-cognitivas envolvidas e/ou requeridas para a constituição destes artefatos: as pinturas rupestres.

Consideremos que o nosso material empírico básico serão imagens. Imagens que em um primeiro olhar parece nos remeter ao quotidiano dos grupos: cenas de caça, cenas de rituais, cenas onde homens e mulheres aparecem em relação.

"O mundo que aparece nas pinturas rupestres do Seridó é a vida cotidiana da pré-história, às vezes trágica e violenta, com figuras possuídas de grande agitação e outras que apresentam um mundo lúdico e brincalhão, documentado pelo movimento da dança e agilidade das figuras acrobáticas."(Martin, 1997)

Contudo, é importante pensar que no estudo deste tipo de artefato, onde os atores não estão presentes para nos dá o sentido que atribuíam para o que imprimiram na pedra, o cuidado com leituras etnocêntricas, baseadas nos referenciais sócio-culturais do pesquisador deve ser redobrado.

Nesta perspectiva, quando falamos que o que encontramos representado nos painéis de pedra do Piauí ou do Seridó, é o cotidiano de povos pré-históricos, precisamos nos desvencilhar da lógica evolucionista, que vê nos povos do passado o uso de uma forma de pensar simples; forma de pensamento que, como propôs Halverson (citado por Leakey, 1997) em relação a capacidade cognitiva dos artistas da Idade do Gelo das cavernas de Altamira, se expressaria no copiar fragmentos de seu meio ambiente.

Como sugere Leakey (1997), as pinturas e gravações da Idade do Gelo não são cenas naturalísticas do mundo, tão pouco apenas um simples reflexo da alimentação diária, ou do desejo por ela, atualizado em ritos mágicos. Diz ele: "Os pintores do Paleolítico Superior tinham cavalos e bisões em suas mentes, mas renas e ptármigas em seus estômagos (Leakey, 1997: ) ."

Como mostraram antropólogos, tais como Radcliffe Brown e Lévi Strauss (1987, 1970), pesquisando entre povos indígenas a eles contemporâneos, alguns animais são representados mais freqüentemente não por serem bons para comer, mas por serem bons para pensar. Desse modo, nos processos cognitivos envolvidos na apreensão, concepção e apresentação das imagens, o cotidiano ecológico e as relações sociais como vividas não seriam retratados "in natura". A Arte Rupestre nos apresenta, por entre traçados e curvas, animais e cenas envolvendo supostos seres humanos estabelecendo relações, os ideais dos grupos; um cotidiano pensado, imaginado, mediado pelas culturas.

CAMINHOS METODOLÓGICOS

Desse modo, considerando a relatividade das culturas, a nossa tarefa tem sido a de chegar a uma etnologia destas imagens. Etnologia tomada aqui como um passo para além da descrição do grupo em estudo - etnografia/historiografia -, já envolvendo uma análise da sua lógica de pensar.

Concebemos a etnologia uma etapa fundamental da abstração antropológica rumo ao que Levi-Strauss (1987, 1970) chamou método antropológico, que estaria fundamentado sobretudo na comparação, e que seria um caminho indispensável para se chegar as abstrações de caráter universalistas, em outras palavras, para se chegar às leis que regem os fenômenos sócio-culturais.

Trazer aqui o nome de Levi-Strauss, não deve significar que nos utilizaremos de seu referencial teórico-metodológico. Considerando o tipo de trabalho que estamos a realizar, onde a partir de alguns vestígios buscamos reconstituir parte do sentido que um determinado grupo dava aos artefatos que elaboraram, onde buscamos identificar as figurações que tenham a ver com o Sistema de Gênero dos grupos socioculturais investigados, e isso na ausência de um discurso que contextualize o seu pensar; nos sentimos impelidos a procurar pelo que há de compartilhado entre os diversos grupos humanos, afim de tentar encontrar o que do compartilhado se revela nos vestígios investigados.

Na verdade, estamos nos utilizamos de uma negociação entre metodologias constituídas a partir de perspectivas relativistas (que consideram as particularidades de cada grupo) e universalistas (que buscam as leis que regem os fenômenos sócio-culturais). Desse modo, afim de avançarmos na nossa compreensão e explicação do fenômeno em estudo, estamos buscando recursos metodológicos na comparação entre processos de criação artística, e como eles retratam as questões do âmbito do Gênero, de formas culturais hipoteticamente semelhantes.

O caminho metodológico que estamos a percorrer inicia-se desde os métodos e técnicas usados na coleta dos "registros gráficos" [2] (no nosso caso específico), passando pela recolocação dos mesmos em relação com os outros objetos arqueológicos do sítio. Numa primeira etapa buscamos reconstituir a forma de organização sócio-econômica, buscando reencontrá-las através de objetos que remetam aos recursos tecnológicos e a produção (víveres) e tendo como base teórica a abordagem da Ecologia Cultural.

Na revisão bibliográfica realizada, verificamos que são os chamados Ecologistas Culturais os que tem mais se preocupado em estabelecer parâmetros de comparação entre sociedades, afim de estudar os processos de mudança de formas econômico-culturais. Eles tomam como traços diacríticos, para estabelecerem os tipos de grupos sócio-culturais a tecnologia e/ou as formas de produção.

Muitos trabalhos no âmbito da arqueologia tem nesta abordagem referência para o trabalho de caracterizar os grupos pré-históricos. Lembremos que grande parte do material encontrado nos sítios dizem respeito a artefatos que são categorizados como tecnológicos e/ou resultante de uma dada forma de tecnologia, lembremos também dos sambaquis, formados pelo que sobra da alimentação e de outros lixos resultante do fazer quotidiano dos grupos, oferecendo dados para se falar do que os Materialistas e Ecólogos Culturais chamam infra-estrutura, que nestas perspectivas teóricas determinaria as demais instâncias da cultura. É justamente por abordar a tecnologia/economia e relacioná-la a organização social/cultural que a Ecologia Cultural encontra tanta penetração na arqueologia.

Também nós, estamos buscando apoio nesta referência para estabelecermos parâmetros comparativos, contudo é importante colocar algumas ressalvas. Embora nossa abordagem, se valha dos recursos e avanços na compreensão das culturas humanas em seus aspectos ecológicos-adaptativos conseguidos pela Ecologia Cultural em suas muitas ramificações; partimos de uma perspectiva teórica que propõe uma relação bem mais dialética entre super-estrutura e infra-estrutura.  Acreditamos que os sistemas simbólicos não são apenas reflexo do modo de produção. O jogo entre estas duas instâncias é bem mais complexo. 

Como propõe Godelier (Apud. Almeida, 1995) as construções simbólicas são tão reais socialmente como outros elementos do modo de produção. A especificidade dos Sistemas Simbólicos seria a de propor um conjunto de gestos, ritos e práticas simbólicas. Através delas as idéias passam do mundo do pensamento para o mundo do corpo, da natureza e, a um só tempo, se transformam em relações sociais. A crença concreta na eficácia das práticas simbólicas faz com que mostrar simbolicamente seja demonstrar, uma vez que é atuar e produzir efeitos que quotidianamente são verificáveis nos múltiplos signos visíveis.

Além disso, lembremos, também, que diferentes sociedades humanas, mesmo que vivendo em territórios ecologicamente semelhantes e possuindo modos assemelhados de produção econômica, desenvolvem diferentes culturas; não podemos pensar que na pré-história foi diferente.

Estas ressalvas permitirão ao leitor se situar em relação nosso dilema, qual seja, de um lado somos partidários de uma forma de pensar a Cultura enquanto um fenômeno humano que não pode ser explicado através de um reducionismo economicista-tecnológico; do outro os limites impostos pelo objeto nos impele a usar uma abordagem onde os aspectos daquela ordem são os enfatizados, que nos parece, hoje, um recurso inicial possível.

Desse modo, nosso caminho metodológico prevê que reconstituídas hipoteticamente as organizações sócio-econômica-culturais dos grupos em investigação, passemos a buscar nos traços deixados nos artefatos produzidos, as marcas do Sistema de Gênero. Em paralelo, comparar com etnografias de outros grupos portadores de organizações técnico-econômicas assemelhadas, afim de estabelecer inferências, as quais serão tomadas, não como conclusões, mas como hipóteses, constantemente lançadas ao campo empírico afim de verificar em que medida o conjunto dos vestígios encontrados podem sustentá-las ou refutá-las. 

GÊNERO : O ARCABOUÇO TEÓRICO

Nos tópicos anteriores buscamos apresentar as estratégias teórico-metodológicas para constituir os vestígios pré-históricos enquanto objetos arqueo-antropológicos. Vimos com Raposo (1997), que para um evento, fragmento, vestigio, ou outro dado qualquer da realidade, se constituir em quanto objeto científico se faz nescessário saber interroga-lo. Para interroga-lo necessitamos de um instrumental que problematize a realidade de forma que, no caso da antropologia, deixemos de vê-la como "naturais" e explicáveis pelas formulações do senso comum, e passemos a entendê-las enquanto construções sócio-culturais, que embora obedeça a uma lógica própria, ela nem sempre se encontra explícita no discurso/artefato observado. Este papel, digamos, "interrogatório" caberia, em grande parte, ao corpo teórico que o pesquisador adota enquanto referência. É ele quem nos auxilia a constituir perguntas e formular possíveis hipóteses/respostas, com base nas recorrências e abstrações integradas no corpo teórico que nos antecede e ao qual nos afiliamos. No nosso caso, parte das nossas interrogações nascerão na Teoria do Gênero [3] .

Uma primeira questão que se põe é a da importância e relevância de se abordar os vestígios arqueológicos do ponto de vista do Gênero. Pensar os vestígios arqueológicos numa perspectiva de Gênero pode permitir um deslocamento no androcentrismo que segundo Spector (1993) vem marcando os trabalhos e escritos arqueológicos. Revisando a bibliografia arqueológica Spector e Conkey identificaram uma série de estereótipos sobre os papeis e capacidades de homens e mulheres (Spector, 1993: 8):

"First, archeological writings typically give far more attention and importance to men and presumed male activities than to women and their presumed activities. Second, these writings portray women as dependent and tethered to domestic duties because of pregnancy, childbirth, and nursing, while men are characterized as independent and capable of making decisions in the division of labor throughout much of prehistory: men hunted and women gathered. This leads researchers to link certain tools to one Sex or the other - some projectile points with men, pottery with women, for example - regardless of the culture being investigated. Third, archeological writings frequently imply that the male-headed nuclear family organization has been a universal norm since human first emerged million years ago, not just in the modern Western world. ".

Segundo aquela autora, a projeção sem critica de tais estereótipos para os vestígios de homens e mulheres do passado, tem perpetuado e reforçado viesses culturais específicos, que tem visto o homem como relacionado ao "importante espaço público" e a mulher a "esfera secundária do mundo privado". Diz ela "Os escritos dos arqueólogos fazem os arranjos hierárquicos de gênero parecerem imutáveis, como se eles fossem características inatas tais como a postura ereta ou a capacidades de fabricar objetos" (1993:8). Além disso, tais escritos inferem significados político-valorativos às atividades que são relacionadas pelos pesquisadores como masculinas ou femininas. Tudo isso a despeito dos estudos antropológicos virem mostrando, desde Malinowiski (1993) e Margareth Mead entre outros, que estas idéias são errôneas. Papeis de gênero, relações e modos de vida, do mesmo modo que outros aspectos da cultura, variam espaço-temporalmente. (cf. também as críticas do Arqueólogo Inglês Timothy Taylor, 1997)

Além de possibilitar repensar as relações entre homens e mulheres na pré-história, uma abordagem dos vestígios pré-históricos a partir de uma perspectiva de Gênero, vem a se justificar ainda mais, quando estudos em diversas áreas tem mostrado que as elaborações ligadas ao Sistema de Gênero tem hoje um status importante para o entendimento da vida social, já que se inserem diretamente tanto na reprodução biológica da espécie, como na dos sistemas culturais (Rubin, 1998 ; Almeida, 1995 ; Segato, 1986 ; Taylor, 1997 ; et ali).

Estamos norteando nossa abordagem do Gênero, a partir do referencial teórico de G. Rubin (1992, 1998). Enfocando a relação gênero/sexualidade/reprodução; G. Rubin (1992) propôs que a oposição entre homens e mulheres, longe de ser uma "expressão natural" de diferenças naturais, seria a supressão de similaridades, de traços locais masculinos para as mulheres e femininos para os homens. A finalidade deste arranjo sócio-simbólico seria a de opor homens e mulheres e, ao mesmo tempo, criar uma dependência entre os gêneros.

Entretanto, Rubin (1992) reitera que tais categorizações não são emanações da mente, mas produtos históricos e variariam entre as culturas. Contudo, a resultante deste processo de promover uma excarcerbação das diferenças entre os seres sexuados através do uso das categorias de gênero, processo a princípio particular a cada cultura, seria a instauração da reciprocidade entre homens e mulheres, que, no seu bojo, garantiria a procriação.

Neste sentido, propõe aquela autora, em todas as sociedades a personalidades individuais e os atributos sexuais são "generizados", são forçados a adequar-se às categorizações de gênero. No processo de "generação" o componente homossexual, segundo ela inerente a todo o indivíduo, é suprimido, afim de garantir a continuidade do matrimônio. Deste modo, a heterossexualidade seria instituída junto com as identidades de gênero. Contudo, ela observa que em algumas sociedades pessoas homossexuais são integradas socialmente, desde que  traduzam em termos de gênero seus comportamentos e atitudes. Assim ficam ideologicamente garantidos a ordem social baseada na desigualdade e assimetria entre os gêneros.

Em síntese, o que Rubin (1992) denominou de Sistema de Sexo-Gênero seria o conjunto de arranjos pelos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em um produto da atividade humana e através dos quais as necessidades sexuais são satisfeitas. Neste sentido, o Gênero proporciona o aparato sócio-cultural não só para satisfazer as necessidades humanas mas também para transforma-las. Ele seria, então, um operador social e simbólico. Nesta perspectiva, o Sistema Gênero teria uma forte determinação na construção social do mundo ao incidir diretamente na esfera da reprodução biológica e social.

>No nosso trabalho de pesquisa, estamos tentando inferir, a partir dos vestígios arqueológicos disponíveis -- e aqui estamos considerando outros artefatos encontrados nos sítios como material lítico, mobiliário fúnebre, cestaria, etc. além dos registros gráficos -, como se estabeleciam as relações entre os Gêneros tomando como premissa teórica, que estas relações influenciam na produção, estando imbricados com os processos de reprodução do grupo (sociocultural e da espécie). O Gênero entraria, então, como um dos aspecto mantenedores da reciprocidade, ao deliberar normas para as relações entre os sexos. Estamos buscando, sobretudo, identificar como são figuradas estas relações na elaboração das pinturas rupestres, contudo sem dissocia-las do contexto que as permitem se expressar enquanto textos arqueológicos.

BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA, M. (1995) Senhores de Si: Uma Interpretação Antropológica da Masculinidade. Lisboa, Fim de Século.

CLARK, G. (1985) A Identidade do Homem, uma exploração arqueológica. Rio de janeiro,  Zahar Editores.

LÉVI-STRAUSS, C. ( 1986) O Totemismo Hoje. Lisboa, Ediçoes 70.

LÉVI-STRAUSS, C. (1970 ) O Pensamento Selvagem. São Paulo, Editora Nacional.

MALINOWSKI, B. (1993) A Vida Sexual dos Selvagens. Rio de Janeiro, Francisco Alves.

MARTIN, G. (1997) Pré-História do Nordeste do Brasil. Recife, Ed. Universitária.

PESSIS, A. (1986) Da Antropologia Visual à Antropologia Pré-Histórica. Clio -- Série Arqueológica, no. 3,  Recife, Editora Universitária, p. 153-161,.

PESSIS, A. (1992) Identidade e Classificação dos Registros Gráficos Pré-Históricos do Nordeste do Brasil. In: CLIO - Série Arqueológica, v.1, n.º 8 p. 35-68.

RAPOSO, L. & SILVA, A. (1996) A Linguagem das Coisas: Ensaios e Crônicas de Arqueologia. Mem-Martins,  Publicações Europa-América.

RAPOSO, L. As Palavras e as Coisas. In: RAPOSO, L. & SILVA, A. A Linguagem das Coisas: Ensaios e Crônicas de Arqueologia. Mem-Martins,  Publicações Europa-América.

RUBIN, G. (1992) O Tráfico de Mulheres: Notas Sobre a "Economia Política" do Sexo. Recife, SOS Corpo.

RUBIN, G. (1998) Thinking Sex: Notes for a Radical Theory of the Politics of Sexuality. In: NARDIR, P. &  SCHNEIDER,  B. (Org.) Social Perspectives in Lesbian and Gay Studies:  A Reader. London: Routledge.

SEGATO, R. (1986) Investigando a Natureza, Família, Sexo e Gênero no Xangô do Recife. Anuário Antropológico 85.Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, pp. 11-54.

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TAYLOR, T. (1997) A Pré-História do Sexo: Quatro milhões de anos de cultura sexual. Rio de Janeiro, Campus.

VIERTLER, R. (1982) Ecologia Cultural: Uma Antropologia da Mudança. São Paulo, Ática.

NOTAS

[1] Mestre em Antropologia, Doutorando em Saúde Coletiva no Instituto de Medicina Social - UERJ. Trabalho elaborado enquanto pesquisador/bolsista (DCR-CNPq) no Projeto Antropologia Visual na Pré-História do Nordeste (1998-1999). E-mail: fipo@ig.com.br .

[2] Para um aprofundamento sobre as técnicas de coleta e categorização em Tradições dos Registros Rupestres, vide Pessis (1986, 1992), Martin (1997) .

[3] Uma outra leva de interrogações, nascerão da própria teoria arqueológica em si. Neste âmbito a pergunta chave seria "Podem os vestígios arqueológicos nos oferecer informações sobre a realidade sócio-cultural dos povos que os produziram?" .  Buscamos localizar o leitor quanto a esta problemática, fundamental pois que antecede a qualquer questionamento posterior nos dois tópicos anteriores.


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