Turismo cultural e sustentabilidade: exemplo da região do sul do estado da Bahia, Brasil.

Maria de Lourdes Netto Simões*

Resumo
A problemática cultural na sociedade contemporânea é marcada pelo incremento da atividade turística, na qual se faz necessário analisar o consumo como um aspecto das estratégias das políticas culturais. Pensar cultura provoca pensar identidades culturais locais e formas de preservá-las ou, mesmo, resgatá-las. A gestão de políticas culturais, além de preservação do patrimônio, deve prever a sustentabilidade da comunidade do local turístico.


Nos dias atuais, os acontecimentos são acelerados e as distâncias encurtadas, através das imagens televisivas, da navegação eletrônica, do trânsito de pessoas, rompendo limites e fronteiras de tempo e espaço. Tais transformações interferem nas formas de interpretação da sociedade, incapazes de acompanhar as mudanças, tantas em extensão, profundidade e, sobretudo, velocidade. Assim, o mundo é reconfigurado. A concepção de uma nova totalidade abrangente toma forma e, por essa interpretação, o foco cultural abrange as várias faces do homem enquanto cidadão (econômica, política, social, etc), instalando uma nova cultura.

Nesse contexto, é notória a idéia hoje veiculada da necessidade de ações ágeis e criativas para que ocorra a inserção de uma cultura no mundo transnacional. Mas se tudo isso acontece por força da informatização e da globalização, também, as culturas locais são revalorizadas, no mesmo movimento. As diferenças culturais (étnicas, regionais, de nação, etc), antes não consideradas, agora se impõem. Reconfigurado, o mundo torna-se, por um lado, global; por outro, local.

A evidência da problemática cultural na sociedade contemporânea exige a atenção a outros fatores, inclusive o fato de essa sociedade global ser marcada pelo incremento da atividade turística. Nessa consideração, faz-se necessário, como quer Friedman, analisar "o consumo como um aspecto de estratégias culturais mais amplas de autodefinição e de automação" (1999, 330). A globalização, apesar de promover fluxos de informação, impactos no tratamento e concepção do tempo do trabalho, nas formas do ócio, faz emergir a questão do lazer. O turismo instala-se como eixo articulador dessa intersecção. Atendendo aos fluxos e ao lazer, a atividade turística vem se configurando cada vez mais como uma atividade que, por um lado, oferece oportunidades de empregos e é vendida como mercadoria; por outro, suscita as diferenças culturais.

Considerando a intenção do trânsito interdisciplinar e da perspectiva multicultural, para essas considerações, ressalto a postura orientadora de tal proposição. A idéia é de um olhar deslocado do centro para a margem e, nesse específico caso (como ficou sinalizado no parágrafo anterior), do global para o local. Seguindo o raciocínio de Boaventura de Sousa Santos, "em vez da invenção de um lugar totalmente outro, [...] uma deslocação radical dentro de um mesmo lugar, o nosso." (1995, 325).

Nessa ótica, é mister a proposição de alternativas de prática social, entendendo, para isso, ser fundamental a prática argumentativa, no interior das comunidades interpretativas. Rejeitando a idéia de uma única forma de conhecimento válido, o pensamento de conhecimentos discursivos dialogantes. Se esse novo olhar valoriza o argumento, a interdisciplinaridade se estabelece, obviamente, na medida desse diálogo intercultural.

Nesse raciocínio, entendo Cultura no seu sentido largo, que não esbarra na visão clássica (herança de tradições e costumes), mas se alimenta também das vivências; melhor dizendo, o entendimento que acrescenta as vivências à herança. Assim é que, pensar cultura provoca pensar a identidade cultural, composta de múltiplas camadas e moldada pela intersecção de múltiplas influências (Hall, 2001). Quanto ao Turismo, interessa-me abordá-lo enquanto estudo de trânsitos culturais e o turista enquanto o elemento humano que se desloca e que tem um determinado comportamento em relação às culturas locais (Hannerz, 1999). A minha atenção se voltará para o turista mais crítico, aquele que tem em consideração as distintas culturas; denominado por Ulf Hannerz (1999, 254) de cosmopolita. Quero com isso evidenciar que me interessa aquele turista que reúne condições de ser elo na cadeia de transmissão sobre as qualidades da sociedade/lugar visitado; que interpreta e respeita a cultura local.

Tendo em conta essas considerações, destaco o Nordeste do Brasil e o seu potencial turístico, marcado por uma cultura singular. Vale mesmo afirmar a vocação turística da Região e a ênfase e os investimentos que vem se fazendo nesta área. Nesse contexto, ocupo-me da Região Sul do Estado da Bahia, de excepcionais peculiaridades no panorama sócio-cultural brasileiro. Tais observações se justificam, quando levo em conta a sua singularidade contextual de região situada no berço do Brasil (Costa do Descobrimento e Costa do Cacau), encravada no coração da Mata Atlântica, num litoral de excepcional beleza. Uma região na qual o sol, o mar, a ecologia constituem-se em atração incontestável para o turismo do tipo home plus (Hannerz: 1999, 251), mas que, além disso, oferece aspectos culturais únicos de interesse para o turista cosmopolita. Nesse singular panorama cultural (propício para as reflexões sobre a cultura produzida na articulação de diferenças culturais), cabe acrescentar e ressaltar a sua rica e inquestionável literatura - povoada por escritores como Jorge Amado, Adonias Filho, dentre muitos outros.

O foco de interesse dessas considerações situa-se no horizonte do presente, no entanto buscando o passado como elemento imprescindível à sua interpretação, postura essa indicativa da "consciência das posições do sujeito - de raça, gênero, geração, local institucional, localidade geopolítica [...] que habitam qualquer pretensão à identidade no mundo moderno" (Bhabha: 1998, 20). O forte e significativo componente cultural que marca a compreensão da cultura dessa Região é, assim, imprescindível para a percepção histórico-cultural do seu presente, não só no que diz respeito à sua singularidade nacional de berço do Brasil (considerada a articulação das culturas indígena, branca e negra), como à importância da nação brasileira enquanto expressão em Língua Portuguesa. Portanto, a excepcionalidade cultural dessa Região sul baiana faz com que se constitua em manancial relevante para as discussões identitárias locais (Simões: 1998, 119), e a potencializa como expressão cultural de atração turística nacional e internacional.

As possíveis estratégias provocadoras de sustentabilidade implicam no desenvolvimento de políticas valorizadoras de ações culturais. Ações podem ser desencadeadas a partir de articulações realizadas de fora para dentro e de ações locais. No primeiro caso, um exemplo é a realização, fora da Região, de trabalhos culturais de divulgação. Para isso, deverão ser celebrados convênios, parcerias e intercâmbios em instituições culturais de países de expressão em Língua Portuguesa e outros países de possuam cátedras de cultura brasileira nas suas universidades e nos seus centros culturais. A intensificação desses procedimentos poderá contribuir para gerar um turismo cultural sustentável, na medida em que projetos de intercâmbio, por exemplo, promovam a intensidade do fluxo de turistas à região berço do Brasil, turistas esses interessados na história, na literatura, na Mata Atlântica remanescente.

Por outro lado, ações locais desencadearão programas para a recepção desses turistas, acionando segmentos sociais, através da promoção de formas de sustentabilidade, relacionadas a comércio de artesanato, a visitação de museus e sítios históricos, a formas de divulgação das representações culturais locais, seja através do teatro, da literatura, da arte visual, etc. Afora estratégias mais simples (a comercialização de livros, telas, esculturas, dentre outros), empreendimentos mais ousados - por parte do poder público e investidores privados - poderão ser garantidores da sustentabilidade do turismo. A expressão artística local tem, já, justificado investimentos em editoras, livrarias, teatro e cinemas. A riqueza natural e a excepcionalidade do litoral têm suscitado propostas de ecoturismo cultural, através de fazendas modelos, de programas de intercâmbio cultural, de parceria entre a comunidade local e poder público, de formas de valorização do litoral, sua fauna e sua flora.

A ousadia é que faz grandes idéias tornarem-se realidade. A vontade política, o olhar lúcido e comprometido com o bem estar social, também. Mas é necessário que isso esteja aliado à idéia de um desenvolvimento comprometido com a cultura local. Assim, é possível um turismo cultural garantidor da preservação do patrimônio cultural e natural. Somente dessa forma, a sustentabilidade não se restringirá a aspectos econômicos, mas também atentará para o respeito aos cidadãos e às comunidades locais.


Referências Bibliográficas:

BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
FRIEDMAN, Jonathan. Ser no mundo: globalização e localização. In: Feathrstone (org).
Cultura Global. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1999. p.329-348.
HANNERZ, Ulf. Cosmopolitas e locais na cultura global. In: In: Feathrstone (org).
1999. p.251-266.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice - O social e o político na pós-modernidade.
2.ed. São Paulo: Cortez, 1996.
SIMÕES, M. Lourdes Netto. A Literatura da Região Cacaueira Baiana: questões identitárias. In:
Revista do Centro de Estudos Portugueses Hélio Simões. Ilhéus:Editus, 1998. p.119-
127.

Em setembro de 2001
Maria de Lourdes Netto Simões

* Titular na Universidade Estadual de Santa Cruz. Professora do Mestrado em Cultura & Turismo.


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