O canto sedutor do coquista Chico Antônio: Memória, Política e Turismo Cultural
Gilmara Benevides
Mestrado em Antropologia Cultural UFPE
RESUMO
Francisco Antônio Moreira (1904-1993) nasceu em Cortes, distrito rural de Pedro Velho, município da região agreste do Estado do Rio Grande do Norte. A atuação do mediador cultural Antônio Bento de Araújo Lima (1902-1988), na época Deputado Estadual e crítico de arte, foi muito importante para a realização de um ‘evento histórico’: ele provocou o encontro do artista popular, o embolador de cocos Chico Antônio com o musicólogo Mário de Andrade (1893-1945) em janeiro de 1929. A partir deste encontro, Chico Antônio ficou conhecido como o coquista ‘descoberto’ por Mário de Andrade, que o cita em suas pesquisas nos livros ‘Os Cocos’, ‘Vida de Cantador’, ‘O Turista Aprendiz’ e ‘Danças Dramáticas’. Este trabalho é um resumo de considerações elaboradas para a escrita de dissertação homônima para o Mestrado em Antropologia Cultural, a partir do estudo de caso do evento cultural Encontro de Cultura, Artes e Humanidades, a Semana Chico Antônio, que aconteceu entre 26 e 29 de dezembro de 2002 analiso em campo as categorias teóricas memória social e práticas culturais focando meu interesse em três grupos distintos: a) os agentes culturais locais, b) os familiares de Chico Antônio e c) os críticos do evento. Procuro interpretar estas categorias tendendo a aproximar o ‘saber local’ representado pelos intelectuais regionais à ‘memória nacional’ o contexto histórico-cultural nacional. A especificidade desta prática social revela a visão de ‘cultura’ elaborada por um grupo local e suas práticas demonstram haver uma busca pela inserção através do turismo cultural regional. Enfim, pretendo com este trabalho analisar a relação entre cientistas sociais e seus interlocutores ‘nativos’, enquanto construção cultural democrática – utilizando-se assim de políticas públicas, em especial as políticas culturais, como formação de público cidadão, à responsabilidade social e a melhoria de vida dos habitantes locais sem que precisemos cair em tutelas ou paternalismos, mas atuando como intérpretes e agentes produtores de culturas.
1. Saber local, Memória nacional: sobre intelectuais, artistas populares e políticas de preservação do patrimônio artístico e cultural
O coquista Chico Antônio (1904-1993) trabalhava como agricultor no engenho Bom Jardim, propriedade da família do então Deputado Estadual e crítico de arte Antônio Bento de Araújo Lima (1902-1988). Em janeiro de 1929 ambos tinham idades aproximadas e um profundo interesse em comum: a música. A expressividade da cantoria de emboladas do coquista Chico Antônio interessavam ao mediador cultural local, mas suas vidas tomariam caminhos opostos que os separariam pouco depois da visita do musicólogo Mário de Andrade (1893-1945). Mário de Andrade pesquisava sobre as artes populares no nordeste do Brasil quando foi convidado para conhecer o embolador de cocos Chico Antônio. Este ‘evento histórico’ seria vivenciado no pátio do engenho, tendo como testemunhas as pessoas da vizinhança, enquanto o cantador e seus companheiros se reuniam em torno do botequim. Em entrevistas posteriores ao encontro, Chico Antônio se referiria a Antônio Bento como sendo o seu ‘compadre’ protetor e a Mário de Andrade como ‘um santo’ que estivera ali para modificar sua vida, oferecendo uma oportunidade para cantar em São Paulo.
"Quando nós chegamos na casa do Coroné, aí Dr. Mário veio e falou comigo: - Então, você que é o Chico Antônio? - Seu criado mesmo. Aí jantamos e tudo. Quando foi na hora, o pátio do engenho não teve canto. Não cabia ninguém. Aí Dr. Mário disse: - Chico, você não bota o ganzá nesse povo pobre em nenhum. Só bote no povo da casa, e eu e seu compadre Antônio, o nosso que está reservado" (ESTRADA NOVA, 1983:6).
O canto do coquista Chico Antônio despertou a curiosidade do musicólogo Mário de Andrade, porém foi a expressividade de sua dança que o fez elogiar o caráter ‘inovador’ na arte da cantoria de emboladas. Mário de Andrade, mesmo tendo perdido o contato com Chico Antônio em 1929 o perpetua em sua literatura – ele personificaria a musicalidade de Chico Antônio transformando em ‘ficção’ a visita do coquista a São Paulo em ‘Vida de Cantador’; a descrição de sua viagem etnográfica pelo nordeste e seu encontro com Chico Antônio estão em ‘O Turista Aprendiz’; os aspectos técnicos de sua pesquisa musical bem como o material coletado da cantoria de Chico Antônio estão em ‘Os cocos’; aspectos sociais e psicológicos do cantador são citados em ‘Danças Dramáticas’. Mesmo antes de encontrar-se com o coquista no engenho Bom Jardim, os escritos do modernista Mário de Andrade já apontavam na direção de uma preocupação com a criação de uma política de preservação do patrimônio artístico nacional, que seria desenvolvida a partir da década de 1930 e que lançou bases sólidas para a construção de um Anteprojeto para a criação do Serviço de Patrimônio Artístico e Nacional – IPHAN, do qual seria Diretor em 1936.
"E o homem, o cantador Francisco Antônio Moreira, o que fora feito dele? Mário de Andrade diz ter tido ótimas notícias 'logo depois da revolução de 30 (...) Depois disso parece não ter havido qualquer registro de suas andanças; o próprio Mário de Andrade, em 1944, não sabia mais dele: "... talvez ainda viva lá no Rio Grande do Norte" (ESCOREL, 1997:259).
Mário de Andrade aprimorou os estudos sobre o ‘folclórico’ apesar de tentar escapar à denominação de folclorista, talvez porque até a segunda metade do século XX os estudos sobre folclore levavam em consideração critérios que reforçavam um caráter coletivo, as pretensas origens, a busca pelo puro e anônimo da criação artística, imprimindo paradoxalmente um rótulo de ‘marginal’ às culturas populares pesquisadas e até defendidas. O folclore perderia lugar nos centros acadêmicos para os estudos antropológicos, mas continuaria ‘resistindo’ em espaços como associações, centros, grupos e fundações culturais que se voltam ao estudo das tradições: de cultura material, não material, mitologias, representações, ideologias expressas nas artes populares (VELHO, 2000:9).
O trabalho do folclorista potiguar Deífilo Gurgel serve como um exemplo da mudança de mentalidade do intelectual em torno do ‘folclórico’. A princípio fascinado pela beleza plástica dos grupos de dança em apresentações de rua, Deífilo Gurgel desenvolveu seu ‘gosto pelo folclore’ gradualmente, enquanto trabalhava como Diretor do Departamento de Cultura da Secretaria Municipal de Educação em Natal, na década de 1970. Por volta desta época, seu interesse se retraía sobre uma tímida iniciativa protecionista em relação aos grupos de dança e aos folguedos tradicionais. Nove anos depois, Deífilo Gurgel faria parte do quadro de funcionários da Fundação José Augusto, órgão Estadual de fomento à cultura regional, onde buscaria ampliar seus conhecimentos sobre artes populares. O trabalho desenvolvido pelo folclorista potiguar seguiria os passos das pesquisas feitas pelo musicólogo paulistano: foi através da literatura escrita por Mário de Andrade em ‘O Turista Aprendiz’, que Deífilo Gurgel ‘descobriu’ as pistas que o levariam até Chico Antônio cinqüenta anos depois de seu encontro com musicólogo.[1] Deífilo Gurgel viajara pela região agreste do Estado do Rio Grande do Norte em 1979 quando foi informado da existência do coquista Chico Antônio, o artista popular continuava com sua cultura de subsistência, trabalhando como agricultor e morando na localidade de Porteiras, zona rural do município de Pedro Velho, residindo com a esposa Dona Amélia e alguns familiares.
A partir de então, o pesquisador Deífilo Gurgel centrou suas ações na elaboração de projetos e planejamento de gastos e busca de fomento para pesquisas e criação de encontros e pesquisas. Situadas em âmbito regional, seus estudos repetem a projeção de um ‘saber local’ elaborado pelo intelectual interessado na memória e identidade locais no cenário histórico-cultural da ‘memória nacional’. Coerente com a perspectiva originária de proteção da expressão artística cultural, Deífilo Gurgel procurou amparar Chico Antônio através da concessão pública de uma pensão vitalícia, o que garantiu a compra de uma casa própria e sua mudança para o centro da cidade de Pedro Velho em 1982.
2.O artista popular na era da industrialização cultural ou ‘como Chico Antônio chegou à TV Globo’
Mário de Andrade vislumbrara no cinema “um importante meio de vulgarização da arte” e encontrara na fotografia um “instrumento ideal para o desenvolvimento de suas atividades” (CARNICEL, 1993:62). Chico Antônio foi fotografado pela primeira vez por Mário de Andrade, sendo retratado segurando o ganzá ao lado de Antônio Bento de Araújo Lima, a foto é o documento visual do encontro em janeiro de 1929. Em setembro de 1982, o cineasta Eduardo Escorel filmou um documentário sobre o cantador, chamado “Chico Antônio, herói com caráter” numa alusão ao livro homônimo do musicólogo paulistano. Diferentemente do livro, a intenção do cineasta carioca era a de captar o encontro entre o artista popular e seu compadre Antônio Bento através da tecnologia da gravação em vídeo – desde a década de 1930 o crítico de arte residia na cidade do Rio de Janeiro.
Mas voltemos um pouco no tempo para compreender os motivos por trás deste ‘reencontro virtual’, pois desde janeiro de 1929 Chico Antônio e Antônio Bento não mais se viram pessoalmente: era 1982 e a notícia da ‘redescoberta’ de Chico Antônio foi um dos assuntos da conversa informal em torno de uma mesa de bar na Avenida Atlântica, onde estavam presentes Aloísio Magalhães (1927-1982), Carlos Augusto Calil e Eduardo Escorel. Dez anos antes, Aloísio Magalhães ocupara diversos cargos na área cultural do governo federal, procurando introduzir uma política de valorização das referências culturais brasileiras partindo da necessidade de preservação da memória e dos bens culturais, conseguindo converter suas idéias em diretrizes políticas para obter recursos que viabilizariam projetos de resgate e preservação da memória nacional. A contribuição dada por Aloísio Magalhães colocou no cenário cultural brasileiro categorias opostas que convivem pluralidade da cultura brasileira como ‘nacional’ e ‘estrangeiro’; ‘nação’ e ‘região’; ‘passado’ e ‘futuro’; ‘tradição’ e ‘modernidade’; ‘popular’ e ‘erudito’; ‘história’ e ‘memória’; ‘unidade’ e ‘diversidade’ (FONSECA, 2002).
Pois em 1982 Aloísio Magalhães estava envolvido na Secretaria de Cultura do Ministério da Educação e Cultura e no mês de maio estivera com Deífilo Gurgel e Chico Antônio em Natal. Em consonância com as idéias do cineasta Eduardo Escorel, Aloísio Magalhães acreditava que seria necessário registrar em imagens ‘o grande cantador’, “já alquebrado nos seus oitenta anos de idade. Essa conversa sem compromisso mudaria de figura, criando uma obrigação, quando recebemos dias depois a notícia que Aloísio partira numa viagem sem retorno ” (ESCOREL, 1997:257). Em setembro, o cineasta chegaria à localidade de Porteiras acompanhando a equipe de pesquisadores encarregados pelo Projeto “Estrada Nova: Chico Antônio e Seu Meio”. O projeto utilizava métodos pioneiros como o uso de recursos audiovisuais e visava “contribuir para reforçar a identidade cultural do Município” fazendo avançar a política preconizada pelo Ministério da Educação, em busca da ampliação da ‘responsabilidade social’ (ESTRADA NOVA, 1983:2). Com o pouco tempo disponível para realizar seu próprio documentário, Eduardo Escorel conseguiria montar a homenagem ao coquista através de “Chico Antônio, herói com caráter.”
A voz do cantador seria também ´preservada´ na entrevista gravada para a série “Memória Viva”, produzida pelo jornalista Carlos Lyra, na época veiculada pela TV Universitária. Na mesma ocasião em que foi produzido o seu primeiro LP “Na Pancada do Ganzá”, onde canta com seu companheiro de emboladas, o respondedor Paulírio Sebastião da Silva. Foram depois convidados para uma apresentação em São Paulo, para o programa Som Brasil, da TV Globo, na manhã dominical de março de 1982. O coquista Chico Antônio deixou de cantar tão logo voltou da viagem para São Paulo, cessando a cantoria no início da década de 1980. Nove anos depois, em janeiro de 1989, o cantador estava morando na casa de um de seus sete filhos, Pedro Francisco Moreira, quando recebeu a visita do jornalista Amarildo Carnicel – que na época refazia o trajeto de Mário e Andrade em sua viagem etnográfica pelo nordeste do Brasil. As fotos feitas por Amarildo Carnicel revelam um Chico Antônio doente e silenciado, que morreria coincidentemente no mês de outubro de 1993 em plena semana de comemorações do centenário de nascimento do musicólogo paulistano Mário de Andrade, promovida pelas universidades federais dos Estados do Rio Grande do Norte e da Paraíba. Somente em fins da década de 90 surgiriam questões mais profundas em torno de ‘direitos autorais’ e de direitos de divulgação do nome, canto e imagem do coquista Chico Antônio publicamente.
3. Etnografando a Semana Chico Antônio: as políticas culturais e a preservação da memória e identidade locais através do turismo cultural
Escolhi analisar um evento cultural devido a critérios objetivos: minha experiência como estudante interessada em elaboração de projetos de cunho cultural, Produção e Marketing Cultural; mas foram os critérios subjetivos me levaram a recortar o problema e a criar possíveis respostas sobre as hipóteses levantadas durante o Mestrado em Antropologia Cultural pela UFPE. Além do mais, estudar a produção de um evento parecia uma forma viável de particularizar meus estudo sobre a construção social da memória, sendo uma oportunidade de aplicar a análise teórica de orientação geertziana, interpretativista, sobre fenômenos observados em campo como as práticas culturais locais num determinado período. Depois de visitar o município, procurei conviver com as pessoas entrevistadas durante a produção do evento cultural, o Encontro de Artes, Cultura e Humanidades que acontece anualmente no município de Pedro Velho[2] na região agreste do Estado do Rio Grande do Norte, a 90 Km da capital do Estado, a cidade de Natal. Sem fins lucrativos, o evento cultural foi elaborado e ainda é produzido pelo Grupo de Estudos e Pesquisas Chico Antônio, formado voluntariamente em 1997 por estudantes, funcionários públicos e demais interessados em pensar a identidade local a partir da memória do artista popular conterrâneo, o coquista Chico Antônio. O evento cultural etnografado teve a duração de quatro dias consecutivos, iniciados em 26 e encerrado no dia 29 de dezembro de 2002, ocasião em que pude exercitar o trabalho de observar e anotar dados e situações de conflito entre os a) os agentes culturais, os componentes do Grupo de Estudos e Pesquisas Chico Antônio, b) alguns familiares do coquista e c) críticos do evento.
De acordo com o discurso dos agentes culturais, o evento surgiu da motivação de seus criadores de ‘reacender’ a cultura local fazendo surgir do ‘esquecimento’ grupos folclóricos como o pastoril, o mamulengo e o boi de reis. A princípio foi montada uma exposição fotográfica e um recital de poesias de artistas moradores do município, ao passo que o Grupo crescia absorvia novas idéias como a criação de um evento cultural que pudesse fazer parte do calendário turístico estadual. O Encontro de Cultura, Artes e Humanidades passaria a ser chamado Semana Chico Antônio tão logo da associação do nome do artista local Chico Antônio ao cenário da ‘memória nacional’ representada pela literatura de Mário de Andrade.
É uma pequena minoria de críticos que se dispõe contra a permanência do evento, dificultando a atividade de captação de recursos junto aos pequenos comerciantes e órgão municipais como a prefeitura, que apóia o evento público favorecendo-o em sua infra-estrutura. Ao contrário da atuação sócio-cultural dos participantes do Grupo de Estudos e Pesquisas Chico Antônio, seus críticos são anônimos e pensam de forma quase homogênea ao resumir a natureza do evento a duas questões: a) por quê homenagear Chico Antônio? b) quem está ganhando dinheiro ‘em cima do nome’ de Chico Antônio?
A figura do artista popular Chico Antônio está envolta em preconceitos que são deflagrados nas críticas de cunho moral, que ressaltam sua pouca instrução escolar, a prática de uma expressão musical ‘ultrapassada’ como o coco de embolada, e o reduz à figura perturbadora de um ‘velho cachaceiro’. Seus principais defensores são pessoas da terceira idade, muitos desenvolvem trabalho na agricultura, não são escolarizados e associam a bebedeira geralmente à função do artista como ‘animador’ do público:
"Pra onde ele ia cantar, eu ia também, gostava muito de ir olhar. Ele cantava demais!"
"É, aqui ele na cidade alguém fala mal dele, eu acho que está enciumado com as honras que dão a ele, né? Com ciúmes porque ele nunca desacatou ninguém, nunca brigou, não tinha nada que desabonasse a conduta moral dele... Ele tomava umas pingas, porque muita gente toma, mas essa estória de dizer que ele vivia caído nas calçadas bêbado, não acontecia isso não! Pelo menos eu conheci ele muitos anos, desde menino que eu conheço ele, eu menino e ele já homem..."
Por sua vez, as críticas levantadas por alguns familiares de Chico Antônio têm um caráter especificamente ético, diretamente ligadas ao evento cultural Semana Chico Antônio e à responsabilidade social. A questão “quem está ganhando dinheiro ‘em cima do nome’ de Chico Antônio” fez aumentar o conflito entre os três segmentos caracterizados a partir da pesquisa em campo, e fizeram dos agentes culturais alvo preferencial da acusação de ‘exploração’ da memória do cantador Chico Antônio e de estarem sendo favorecidos financeiramente. O Grupo começou a se dispersar devido a divergências entre os componentes e atualmente conta com aproximadamente três participantes efetivos e dois eventuais. O argumento utilizado para que não mais haja evento cultural é significativo: um dos filhos de Chico Antônio, idoso e doente mental, mora de forma precária na mesma casa em que Chico Antônio fora visitado pelo pesquisador Deífilo Gurgel em 1979. Isto quer dizer: o evento não está favorecendo a quem mais precisa, senão a outras pessoas... Mas afinal quem são estas pessoas? “Quem está ganhando dinheiro ‘em cima do nome’ de Chico Antônio”?
A crise se agravou em 2002, quando o Projeto enviado para o Ministério da Cultura pedindo recursos para o evento foi reprovado, apesar de tudo, o evento foi produzido precariamente. Durante e depois da semana do evento cultural percebi como agiam seus críticos, analisando negativamente o trabalho desenvolvido voluntariamente pelos agentes culturais, a voz do ‘senso comum’ repetia em coro que aquelas pessoas estavam ficando ‘ricas’ com o dinheiro que viera de Brasília para o evento. Mas o dinheiro não fora liberado, e como explicar que ainda assim o Grupo pagara ‘à vista’ a todos os artistas populares que ali se apresentaram? A mim pareceria óbvio que acreditassem que o dinheiro fora arrecadado: a) pelo patrocínio dos pequenos comerciantes locais, b) por alguns políticos, talvez de forma ‘espontânea’, c) por pessoas simpáticas à causa e, finalmente, d) pela venda de camisetas produzidas para serem comercializadas durante o evento.
Meu papel ali não era o de ‘dar respostas’, por isso me contive e naquele momento eu apenas observei os fatos para tirar minhas conclusões posteriormente. Segui as palavras de Clifford Geertz:
"o etnógrafo não percebe - principalmente não é capaz de perceber - aquilo que seus informantes percebem. O que ele percebe, e mesmo assim com bastante insegurança, é o 'com que', ou 'por meio de quê', ou 'através de quê (ou seja lá qual for a expressão) os outros percebem" (GEERTZ, 2001:89).
Mesmo que neste caso específico, o evento cultural Semana Chico Antônio, os agentes culturais locais pareçam estar fazendo sua parte e agindo corretamente enquanto sociedade civil organizada, as críticas apontam para falhas que poderiam ser debeladas. Nas palavras de uma ex-integrante do grupo podemos perceber que inexiste uma orientação técnica adequada: “olha, sabe qual é o defeito que eu vejo na equipe? Me incluindo, claro... É que este já é o sexto encontro e nós... A gente continua sendo muito amador, ta entendendo?” Parece não haver sinal de política cultural favorável ao desenvolvimento social de pequenas sociedades situadas na periferia do Brasil, cuja diversidade e riqueza fazem com que se tornem “a grande alavanca de sustentação dos mais variados grupos sociais e comunitários, garantindo a manutenção desse tecido social, que mesmo depauperado segue firme e coeso” (BRANT, 2002:18). À memória e identidades locais caberá um papel secundário em torno das políticas culturais que em muito poderiam ajudar a desenvolver um projeto respeitando os agentes culturais locais, formando-os adequadamente? Em relação ao poder público:
"...é possível até mesmo dar um passo fundamental, que é ter um sentido de política pública; uma política pública que parta do ponto de vista e dos valores desses grupos a que chamamos de populares, mas que abra espaço para que esses grupos - sem os violentar, sem os tutelar - tenham oportunidades de fazer determinadas escolhas e de se relacionar de modo mais amplo (...) criar condições para que esses grupos e indivíduos - indivíduos produtores e indivíduos artistas - possam, de algum modo, ter a oportunidade de escolher o que querem fazer. Para isso, entretanto é preciso dar condições mínimas de trabalho e acesso à informação e a circulação" (VELHO, 2000:10).
Acredito que o papel do cientista social está intimamente relacionado com a interpretação destas realidades locais, que representadas em suas práticas culturais estão imbuídos os seus valores, seu ethos, sua visão de ‘cultura’. Ao interagir, buscamos juntos uma lógica por trás do sistema cultural para além de um mero estudo, mas por uma ‘responsabilidade social’, solidariedade social, ampliando as condições favoráveis à expressão artística e da melhoria de vida destas pessoas.
Referências bibliográficas
ANDRADE, Mário de. 1983. Vida de cantador. São Paulo / Brasília: Duas Cidades.
BAYARDO, Rubens. Antropología, Identidad y políticas culturales. Texto retirado do site http://www.equiponaya.com.ar/articulos/ident.01.html lido em jul 2002.
BRANT, Leonardo. 2002. Mercado cultural: panorama crítico com dados e pesquisas e guia prático para gestão e venda de projetos. 3. ed. São Paulo: Escrituras.
CARNICEL, Amarildo. 1993. O fotógrafo Mário de Andrade. Campinas: Ed. UNICAMP.
ESCOREL, Eduardo. 1997. O canto da sedução. In: Múltiplo Mário: ensaios. João Pessoa, Natal: UFPB-UFRN, p. 257-269.
ESTRADA NOVA: PROJETO CHICO ANTÔNIO E SEU MEIO. 1983. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Folclore – FUNARTE.
FONSECA, Wellington. Resgate de Aloísio Magalhães. Texto retirado do site http://www.unb.br/acs/acsweb/noticiasdaunb/resgate.htm lido em nov 2002.
GEERTZ, Clifford. 2001. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. 4. ed. Petrópolis: Vozes.
VELHO, Gilberto. 2000. Identidades nacionais e cultura popular: o diálogo entre a antropologia e o folclore. Rio de Janeiro: FUNARTE.
[1] O encontro entre Mário de Andrade e Chico Antônio é comparado ao encontro de duas esferas da sociedade distintas, duas classes sociais opostas, dois universos culturais que se encontram na ‘missão’ de tornar híbrida a cultura brasileira através da consagração do ‘saber local’ inserido numa ‘memória nacional’: “um encontro carregado de emoção entre um mestre erudito e um mestre popular. Um, sulista, outro, nordestino ambos de estatura elevada, muito acima da média de seus conterrâneos. Todos dois com a capacidade de despertar paixões” (ESCOREL, 1997:258).
[2] O município de Pedro Velho foi reconstruído depois do transbordamento do rio Curimataú no ano de 1890, a princípio com o nome de Vila Nova de Cuitezeiras, devido às tendência políticas republicanas locais depois da morte do político Pedro Velho o município passou a adotar o novo nome como forma de homenagem ao ex-governador do Estado do Rio Grande do Norte em 1907. Tramita na Câmara dos Vereadores local um projeto de lei de mudança de nome, aceito pela maioria dos munícipes, a mudança de nome da cidade. Se houver plebiscito em 2004, os votantes poderão optar entre ‘Cuitezeiras’ e ‘Vila Nova de Cuitezeiras’, tornando assim ao topônimo originário.
Buscar en esta seccion :