Perspectivas del Turismo Cultural II
La gestión del turismo y sus problemáticas desde visiones sociales

ESBOÇO DE UM PERSONAGEM FUGAZ. O turista sob o olhar dos moradores da Cidade de Goiás – Patrimônio da Humanidade[1]

                                                                                                        Sara Araújo Poletto[2]

A preservação de uma Cidade Histórica mediante o reconhecimento de um tombamento mundial guarda inúmeras particularidades e gera conflitos. A partir da intensificação da atividade turística, cresce a necessidade interna de uma afirmação identitária, que é alcançada num constante reconhecimento da diferença. Ao receber o título de “Patrimônio da Humanidade”, a Cidade de Goiás começou a contar com um fluxo maior e constante de turistas vindos de várias partes de país e do mundo. Além das tradicionais festividades religiosas da Semana Santa, somaram-se ao calendário novos eventos, como é o caso do Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (FICA) e a Semana de Artes de Goiás.

Realizando uma breve contextualização histórica da Cidade, foi possível conhecer algumas particularidades e localizar o início da formação de um poderio familiar oligárquico. Hoje, mesmo se configurando diferentemente, uma “legitimidade genealógica” garante a continuidade de uma “dominação tradicional” (WEBER, 2000), caracterizada pelo controle e participação política e social que determinadas famílias ou personagens específicos têm. É muito forte a capacidade adaptativa desses grupos e personagens, que transitam entre a modernidade e a tradicionalidade, permanecendo no cenário político, mas buscando uma inserção nos novos campos de expressão de poder, que lhes garantem a reestruturação e vigor no tempo. Personagens específicos e muito conhecidos são, com freqüência, também os proprietários de pousadas, hotéis, restaurantes, além de estarem relacionados com a coordenação de museus, igrejas e a preparação e organização de festas tradicionais.

A fala proferida por essas "testemunhas autorizadas" - que são uma espécie de "guardiões da memória oficial" (WOORTMANN, 1998) - é o que se pode chamar de "discurso da rua", nos termos de DaMatta (1997a), pois são discursos de segmentos dominantes que "tendem a tomar o código da rua e assim produzem uma fala totalizada, fundada em mecanismos impessoais [...] onde as leis - e jamais entidades morais como pessoas - são os pontos focais e dominantes"(op.cit., p.49). Essa fala, já que baseada em leis, se apresenta, então como o discurso “oficial”, que pode ser trazido também no sentido de uma “memória enquadrada” nos termos de Pollak (1989), e ser representativa do habitus local (BOURDIEU, 2001), na medida que esse é “o sistema de esquemas interiorizados que permitem engendrar todos os pensamentos, percepções e as ações características de uma cultura [...]” (op.cit., p.349).  

É devido, entre outras, às relações de poder “reveladas” ou reforçadas dentro da cidade nesse primeiro ano após o recebimento do título de Patrimônio da Humanidade – período no qual desenvolvi o trabalho de campo -, que o reconhecimento da diversidade e a análise do contato com o outro se tornaram ainda mais complexas. As noções de espaço e tempo começam a ser repensadas, já que ambos são compreendidos e utilizados diferentemente por quem reside ali e por quem vem de fora. As pousadas, que eram vistas como uma extensão das residências, hoje começam a ser profissionalizadas e o turista, tratado com um maior distanciamento. Uma apropriação especifica da idéia de patrimônio (LIMA FILHO, 1998)[3] levanta questões sobre a propriedade privada, a recepção a quem chega de fora, e a valorização e preservação do que é local, que acaba sendo utilizado como veículo também de manutenção do poder. 

1. Pensando o espaço – os domínios públicos e privados

"[...] não se pode misturar o espaço da rua com o da casa
 sem criar  alguma grave confusão ou até mesmo conflito”

Roberto DaMatta

O tombamento tende a marcar um predomínio do que é social e coletivo. A idéia de propriedade individual e privada, na qual o dono – mesmo contando com “códigos de posturas” – teria toda liberdade de ação sobre seu bem, perde a força. O domínio sobre o imóvel, quando se fala em patrimônio não se configura mais assim. A teoria da propriedade, inicialmente trabalhada por Jonh Locke, analisava os princípios fundamentais do direito dos indivíduos sobre ela[4]. Ali, reforçava o direito da propriedade individual e privada de um bem, sobre a qual o individuo teria “total” liberdade de ação, inclusive no que diz respeito à sua destruição ou abandono. Essas condições centrais não permitiam uma exigência da prática de preservação por parte do poder público, já que o patrimônio cultural estava fora do “cerne” do direito, representado pelo contrato.

Apenas no final do século XIX - com a primeira Constituição Republicana brasileira, discutida e aprovada pelo Congresso Constituinte nos anos de 1889 a 1891 - tem-se a superação desse modelo e o surgimento do novo contrato, no qual, além dos direitos, o proprietário tem deveres e obrigações claramente especificadas. A partir desse momento passou a existir a possibilidade de intervenção por parte do Estado em casos de ações consideradas abusivas sobre um bem – definidas através de leis como a do tombamento -, e legislações capazes de proteger direitos imateriais, como era o caso dos “direitos sobre a propriedade intelectual” – marcas e patentes. Mas é somente com a Constituição de 1988 que confirma-se a modificação da idéia de propriedade privada e individual e são introduzidas as novas noções com as quais contamos atualmente.

O encontro desses dois ambientes - a casa e a rua - gera ambivalências, principalmente num local em que o discurso oficial ou “da rua” aparece muito mais contrastivo por ser um “código mundial”.

A prática de preservação de um bem tombado prevê obediência a regras específicas, determinadas e controladas pelos órgãos responsáveis.[5] O tombamento pode ser referente apenas a uma fachada ou ao imóvel como um todo. Nesse caso, como lembra Tamaso (1998), “o fato é que se o tombamento não retira do proprietário a posse do imóvel, retira ao menos simbolicamente o domínio sobre seu bem” (op. cit., p.81).

O "Patrimônio da Humanidade" é um bem "mundial", coletivo; o que já contradiz a lógica da propriedade privada. Além disso, temos outros pontos que reforçam essas contradições, como o fato de que o imóvel não deve ser modificado ou reformado sem autorização das autoridades responsáveis, assim como não pode ser vendido, salvo na presença de um contrato que garanta sua preservação e no qual seja conhecida e aceita a proibição de demolição e modificações determinadas. Contradições como essas são ainda mais reforçadas por conseqüência do quadro em que estão inseridas.

"Como um herdeiro da tradição 'patrimonialista', que freqüentemente transformava a esfera pública em domínios da esfera privada, aceita o instituto do tombamento num imóvel privado, uma vez que este, ao menos simbolicamente, faz o inverso, ao transformar o imóvel privado em bem representativo da coletividade, de bem comum e público?" (TAMASO, 1998, p.78).

Esse questionamento de Izabela Tamaso, concebido para o contexto de Espírito Santo do Pinhal - SP, cabe adequadamente à realidade vivida na Cidade de Goiás. Alguns moradores se mostram arredios em relação à “coletivização” de “seus bens”. Ao falar sobre a importância do centro histórico – em entrevista que compõe o dossiê de candidatura da cidade ao título, realizada pelo IPHAN (2000a) – uma moradora se expõe:

"Acho que se não fosse isso [centro histórico] Goiás já tinha acabado. Só que eu não concordo que eles interfiram com o dono da casa. Na fachada tudo bem, pois se o IPHAN não tivesse interferido não tava aí lutando pelo patrimônio da humanidade." (Evandira da Glória, p.11)

Em vários depoimentos pude perceber uma certa relação de insegurança e até de incômodo no que diz respeito à falta de autonomia diante do imóvel e, muitas vezes, da impossibilidade de agir por não ter condições financeiras necessárias para realizar a reforma ou restauração adequada.[6] Ao mesmo tempo, esses imóveis - que têm um caráter coletivo, por serem “da humanidade” - acabam por se tornar pouco privativos, visto que são, além de residências, “obras de arte” e a “materialização de lembranças históricas” que  a humanidade supostamente divide.

"Outro dia - eu tava até almoçando - bateu na porta e eu vim cá e era uma senhora e ela disse: 'Minha senhora, eu gostei de todas as casas aqui mas gostei tanto da sua, to com vontade de tirar uma fotografia de dentro da sua casa'. Ai ela entrou e tirou uma foto aí sentada na cadeira. Outro dia atendi uma pessoa de Anápolis. Um dia eu sai pra jogar água aqui fora - como foi com você - aí estava ela e uma outra moça sentada aqui, aí é claro que eu cumprimentei, né? Ta sentada na porta da minha casa, né? E aí eu nem joguei água lá fora; lavei aqui dentro e  cumprimentei elas; aí elas começaram a fazer perguntas e eu comecei a responder". (moradora, 55, centro histórico)

"No FICA teve um dia que eu tive que fechar a porta daqui da frente porque não teve jeito mesmo. O povo entrava aqui, sentava e nem ligava. Tinha muitos pedindo pra ir no banheiro -  aí eu não importo  - mas muitos toda hora, aí ninguém dá conta, né? Fica tudo muito sujo e eu tinha visita aqui em casa. Aí eu fechei mesmo!" ( moradora, 60, centro histórico)

Mesmo que os moradores não tenham obrigação de abrir suas casas ou permitir a entrada de turistas mais curiosos ou interessados em conhecer “a casa onde viveu ou nasceu” determinada pessoa ou tirar fotos de recordação daquela arquitetura da cidade, eles se encontram em situações pelo menos delicadas, já que passam por elas várias vezes durante o ano. As fachadas com pinturas novas chamam a atenção do turista que vem para visitar esse lugar que aparentemente – por ser da “humanidade” – é tratado como uma espécie de “museu vivo”, onde não só a arquitetura, mas também os seres humanos podem ser observados como “peças” ou personagens de uma “história passada”.

2. Caracterizando o outro

"O reconhecimento dos outros não é simplesmente um
caminho possível para o conhecimento de si mesmo:
é o único”
Todorov

O encontro com a alteridade chama atenção principalmente no que causa maior estranhamento, e é justamente sobre esses aspectos que mais se discute. Por esse motivo, acredito na importância de apresentar uma espécie de caracterização esquemática sobre os turistas, já que eles são classificados diferentemente pelos moradores. As relações que causam desavenças ou questionamentos à maneira de viver e às crenças tradicionais, são debatidas com mais intensidade. Embora exista o reconhecimento de grupos diferenciados de turistas e até o desejo por algum deles, a experiência mediante as entrevistas realizadas durante o trabalho de campo, acabou por mostrar que a relação com o outro na Cidade de Goiás tem como expressão mais forte o conflito.

Quando se referem ao turista, os moradores identificam duas categorias, a saber, o “turista cultural” e o “turista farofeiro” ou apenas “farofeiro”. Essas classificações foram utilizadas por quase todos os moradores entrevistados, podendo ser vistas então como categorias já internalizadas e não parte de um vocabulário – como eu acreditava anteriormente – exclusivo do discurso oficial e das pessoas que o representavam. No entanto, as especificações mais claras das distinções entre um e outro foram enfatizadas quase que exclusivamente por moradores que habitam o centro histórico. Acredito que isso se deva à maior proximidade e constância dos encontros com os dois tipos de turistas.[7]

Segundo a OMT (Organização Mundial do Turismo), o turismo cultural “seria caracterizado pela procura por estudos, culturas, artes cênicas, festivais, monumentos, sítios históricos ou arqueológicos, manifestações folclóricas ou peregrinações” (BARRETTO, 2000, p.20). A procura por esse tipo de turismo cresce na Europa, mas não no restante do mundo, onde

"grande parte dos turistas é do tipo institucionalizado, de massa ou buscadores de prazer. [...] Dirigem-se em grupos numerosos a destinos que por uma ou outra razão, tenham se tornado populares. [...] Os turistas de massa e os buscadores de prazer são os que ocasicionam os maiores impactos no ambiente e na cultura, embora sejam os que menos contato têm com a população local" (op.cit.,p.24)

Acredito que os turistas intitulados pelos moradores de “farofeiros” se enquadram nesse último “grupo” apresentado. Essa terminologia, que tem um sentido pejorativo, é mantida inclusive pelos moradores envolvidos com a atividade.[8] Já a categoria “turista cultural”, utilizada pelos profissionais da área e pelo IPHAN pode ser vista como uma categoria exógena, que foi incorporada pelos moradores.

O "turista cultural" é apresentado na cidade como querido e, inclusive, desejado pelos moradores, mas ainda raro na cidade. Eles são apresentados como pessoas interessadas em conhecer as particularidades locais e se inteirarem das teias de significados locais para compartilhá-las. O fazem através das visitas aos museus, das conversas com os moradores sobre a história local, da participação nas procissões e missas nas datas religiosas comemorativas, além de buscar conhecer o patrimônio ecológico da Cidade de Goiás.[9] São eles também que movimentam o novo “comércio”, já que se alimentam nos restaurantes, durante o dia e à noite, experimentando os diferentes quitutes regionais[10], além de dispensarem tempo para apreciar e comprar os artesanatos produzidos pelos diferentes artistas da cidade. O “turista cultural” é visto como um interlocutor, que valoriza o status das famílias locais, também o patrimônio arquitetônico.[11]   

"Tem festa de carnaval que vem muita gente que não é o perfil de turista que a gente gostaria de ter. Eu acho que seria muito bom, mas não sei se a gente chega lá um dia, que viesse pra Goiás esse turista calmo, que vem à pesquisa. É esse que vem à procura das religiões, das tradições, das festas religiosas - o turista cultural. Nós queremos o turista de terceira idade, que é esse pessoal que vêm e gasta dinheiro". (moradora, 55, centro histórico)

"O turismo em Goiás, de um certo tempo pra cá houve uma pequena melhora em qualidade. Quer dizer, pelo menos já em maior numero. Têm vindo mais do turista cultural - as pessoas que se interessam pela cultura do lugar, pessoas que vem para conhecer o lugar." (morador, 65, centro histórico)

O desejo por esse turista leva alguns moradores a questionarem e temerem a maneira sobre a qual está sendo desenvolvido o turismo na cidade, visto que ele, ao contrário de atrair, afastaria essas pessoas interessadas em conhecer os valores culturais locais.

  “Têm os turistas que vêm de longe, principalmente de São Paulo, e que chega aqui – e às vezes acontece isso – e não volta mais, porque veio para assistir uma manifestação religiosa, cultural do jeito que tem em Goiás - que é um dos únicos lugares que ainda preserva - e chega aqui e encontra baderna, confusão, bebedeiras, barulho, som alto. Aí nunca mais volta, uai.”(morador, 65, centro histórico)

As referências ao “turista cultural” acabam por desencadear lembranças relacionadas aos problemas gerados pela presença do segundo “grupo” que, entre outras coisas, é apresentado como o responsável pelo afastamento do primeiro. O “turista farofeiro” é quem traz a "baderna, confusão, bebedeiras, barulho, som alto". São citados como grupos formados, em sua maioria, por jovens, que buscam festejar em vez de conhecer o patrimônio histórico, cultural e artístico local. Costumam procurar a movimentação tal qual a de suas cidades, promovendo “festas” nas ruas utilizando o som de carros particulares que acabam ficando ligados boa parte da noite, enquanto consomem bebidas alcoólicas e drogas ilícitas.[12]

O "farofeiro" é lembrado como aquele que acampa nas áreas da cidade, hoje mais controladas e demarcadas. Por vezes são também os que lotam as pensões e pousadas da cidade, mas seus gastos não são voltados para visitas aos museus, igrejas, palácios e nem seu interesse voltado para as manifestações culturais. Como o leitor pôde observar em testemunhos já destacados, os moradores ressaltam o desinteresse desses pelas procissões, marcado pela apatia, bem como de um desrespeito aos lugares sagrados por parte desse grupo.

A experiência de contato com os “farofeiros” mostra mudanças substanciais no que diz respeito à sua caracterização no tempo. Hoje, o grupo não é caracterizado - como antes -  apenas por pessoas que não têm muito dinheiro ou simplesmente buscam um lugar alternativo e espaço de permissividade.

"A droga rolava assim, e até hoje! Infelizmente esse problema é muito sério em Goiás, mas naquele tempo - 1974/75 - era incontrolável. A gente passava na frente da [Igreja da] Boa Morte e o pessoal estava fumando ostensivamente. A porta da Catedral era dormitório, até atos sexuais o pessoal fazia em público. Foi muito terrível esse momento. Eles jogavam latas de cerveja na cabeça do pessoal que ia em procissão.[...] Quem chegava e não tinha lugar pra ficar, ficava lá no pátio do colégio Estadual. Entrava e não tinha esse negócio de pedir licença ou onde podia acampar. Sabe a praça do chafariz? Enchia de barraquinha e sem infra-estrutura nenhuma, o pessoal passava a noite lá. Era muita gente, e pediam comida nas casas. A casa de família se enchia de amigos e a rua, do pessoal que não tinha conhecidos e eles iam pedindo nas casas as coisas. Era horrível![...] Não respeitavam. Hoje eles respeitam porque no próprio programa [da Semana Santa] existem contravenções penais [...] e aí as pessoas sabem o que pode e o que não pode fazer.”  (moradora, 70, centro histórico).[13]

Fazem parte dos "turistas farofeiros", hoje, também pessoas que têm melhor condição financeira e assim, podem vir de carro para a cidade, ficar hospedados nas pousadas e até alimentar-se nos melhores e mais caros restaurantes da cidade.[14] O que os caracteriza como grupo não é mais sua condição social em si – à qual anteriormente eram relacionados –, mas sim, as atitudes em comum diante do que é local.[15] Se antes os "farofeiros" se encontravam acampados nas áreas públicas da cidade, hoje eles também podem chegar de carro e estar hospedados em boas pousadas, mas acabam se juntando nos bares, se "misturando" nas praças centrais.

  Através das festas, esses turistas causam uma “sujeira” simbólica, quando não respeitam os significados compartilhados pelos moradores locais ou não procuram compreendê-los pelo menos através de sua curiosidade. Por outro lado, produzem uma “sujeira” empírica, que é observada pelos maus cheiros, lixos acumulados pelas ruas da cidade e através dos sons altos que invadem as residências – privado – e os espaços de religiosidade. Diante desses fatores, mesmo reconhecendo a existência e presença de um outro tipo de turista, o “cultural” – que busca conhecer e respeitar as particularidades locais -, a experiência de contato da população com  ele fica submerso exatamente pela  intensidade do contato com o “farofeiro”. Assim, os moradores tenderam por enfatizar a relação com a alteridade, de uma maneira geral, como conflituosa, marcada principalmente pela presença desse último “grupo” - os “farofeiros”.   

O aumento do fluxo de turistas na cidade gerou um sentimento de “sufoco”, de “invasão” e de perda do controle sobre a propriedade privada e mesmo de acesso às áreas comuns da cidade. Diante desses fatores, os moradores apresentaram sua relação com o outro  como essencialmente ambígua. A referência de contato e caracterização dele é feita pelos moradores, quase que exclusivamente no que diz respeito aos farofeiros, justamente porque a periodicidade e o impacto desse encontro é bem maior. Assim, mesmo reconhecendo a existência de um “turista cultural”, que permanece idealizado, vê-se a formação de uma “identidade contrastiva” - nos termos de Oliveira (1976) –, já que traçada mediante a oposição e os conflitos - mesmo que camuflados -, com as atitudes dos “farofeiros”.

Diante da alteridade aparece a necessidade de se afirmar como diferentes, como portadores de uma identidade específica, que garanta sua singularidade em relação a quem vem de fora. Nesse sentido, as crises se tornaram “reveladoras” (SAHLINS, 1999) de um “jogo” de poder calcado na legitimidade genealógica e tradicional, caracterizadora do habitus (Bourdieu, 2001) local e mantida por uma “comunidade de memória” (LIMA FILHO, 1998).

 Fazendo uma aproximação com o trabalho de Nobert Elias (2000), eu poderia dizer que foi observada nesse estudo uma relação entre estabelecidos e outsiders. Esse "paradigma empírico" - para utilizar as palavras do autor - corta transversalmente o trabalho. Claramente, o caso da Cidade de Goiás não é o mesmo de Winston Parva[16], pois os atritos não são resultado da chegada de novos moradores[17], mas sim, da presença constante e a cada dia mais densa de turistas, que são os “de fora”. A realidade analisada por Elias (2000) compartilha com a Cidade de Goiás a “peça central dessa figuração”, que é “um equilíbrio instável de poder, com as tensões que lhe são inerentes” (op.cit., p.23). A preparação da cidade para receber os turistas e as novas “exigências” para pousadas e restaurantes conseguirem se manter são alguns dos fatores que contribuem para questionamentos dos costumes locais.

"O grupo de antigos residentes, famílias cujos membros se conheciam havia mais de uma geração, estabelecera para si um estilo de vida comum e um conjunto de normas. Eles observavam que certos padrões e se orgulhavam disso. Por conseguinte, o afluxo de recém-chegados [...] era sentido como uma ameaça [...]".(ELIAS,, op.cit., p.25)

Na Cidade de Goiás, o desenvolvimento do turismo pôde levantar algumas possibilidades. De um lado, quem conseguiu se envolver com a atividade turística tem esperança de um dia poder tirar sua renda exclusivamente dela. Por outro, principalmente os moradores não envolvidos diretamente - que geralmente vivem fora do Centro Histórico - se debatem com o aumento expressivo de preços – que agora tem como base a renda de turistas -, com o aumento da violência e um maior abandono de seus bairros. Como a maior parte dos funcionários das pousadas, restaurantes ou lojas é da periferia, esse contraste é mais fortemente percebido por eles.

Se os moradores da periferia sentem os impactos assim, os que vivem no Centro Histórico estão seguros, mas se vêem no contato direto com a “sujeira” (DOUGLAS, 1976) expressa no questionamento às normas e costumes locais, na “invasão” constante de sua privacidade – seja física ou simbolicamente. Alguns moradores reforçam isso dizendo que, por vezes, sentem necessidade de fechar suas portas, mas mesmo assim, continuam ouvindo “aquele som altíssimo dos carros ou dos aparelhos que eles colocam na praça, e fica no nosso ouvido o dia e a noite inteira”(moradora, 55, centro histórico).[18]

"As tensões e conflitos de grupos inerentes a essa forma de relação podem manter-se latentes [...] ou aparecer abertamente, sob  forma de conflitos contínuos. [...] quando os grupos de outsiders são necessários de algum modo aos grupos estabelecidos, quando tem alguma função para estes, o vinculo duplo começa a funcionar mais abertamente e o faz de maneira crescente quando a desigualdade da dependência, sem desaparecer, diminui" (ELIAS, 2000, p.33). 

A expectativa de um retorno financeiro proporcionado pela movimentação turística na cidade gera uma relação de interdependência que garante a uma relativa latência ou camuflagem dos conflitos entre os estabelecidos e os outsiders, ou seja, entre os moradores e os turistas. Alguns moradores costumam afastar-se da cidade ou do Centro Histórico em datas de grande movimentação para evitar esse contato mais direto, que poderia ser responsável pelo conflito aberto.

  O afastamento buscado por esses moradores expressa a ligação de dependência com o turismo. Essa, no entanto, não apaga a experiência de contato com o “novo”, com o “diferente” que, como pôde ser observado, cria uma sensação de insegurança, que é representada e identificada pela “sujeira”, como trabalhada por Douglas (1976).

"Nossa idéia de sujeira é composta de duas coisas, cuidado com a higiene e respeito por convenções [e] [...] também expressam sistemas simbólicos.[...] Resumindo, nosso comportamento de poluição é a reação que condena qualquer objeto ou idéia capaz de confundir ou contradizer classificações ideais” (op.cit., p.19; 50).

A sujeira, a poluição produzida, causada pelo turista é, ao mesmo tempo empírica, ecológica e simbólica; ela traz um desconforto físico, mas também desestrutura a ordem uma vez que desrespeita crenças, regras e convenções. A busca pela limpeza é uma busca pela restituição da ordem; “a sujeira ofende a ordem. Eliminá-la  não é um movimento negativo, mas um esforço positivo para organizar o ambiente” (DOUGLAS,1976, p.12).

 O que é “novo”,continua a autora, gera a sensação de incerteza, imprevisibilidade. Esses são os fatores que, segundo Giddens (2002), fazem com que o indivíduo se torne “ontologicamente inseguro”. Na busca por “encontrar-se a si mesmo” - que é o sentido e a razão para se afirmar como portador de uma identidade especifica -, o contato e reconhecimento do outro é de extrema importância, já que é “somente exagerando a diferença, [...] que um semblante de ordem é criado” (DOUGLAS, op.cit, p.15).

 O esforço dispensado para se restabelecer a ordem, organizando, então, o ambiente, aproxima os personagens ali localizados. Giddens (2002), Douglas (1976) e Elias (2000) também constataram que as tensões existentes entre grupos dentro da cidade acabaram diminuindo ou ficando “camuflados” frente a uma relação com os “de fora”.

"O fato de as 'famílias antigas' se conhecerem e terem sólidos vínculos entre si, no entanto não significa necessariamente que elas se estimem. É apenas em relação aos intrusos que elas tendem a se unir. Entre si. Podem competir e quase invariavelmente o fazem, de maneira branda ou acirrada, conforme as circunstancias, e, muitas vezes, por tradição, podem antipatizar profundamente umas com as outras, ou até odiar-se" (ELIASs, op.cit, p.172).

Os desentendimentos internos, embora percebidos nas contradições, ficavam ofuscados ao se caracterizar o outro, pois esse era apresentado como o principal foco “causador” e responsável pela desordem presente. Talvez novos estudos possam constatar a existência de outsiders dentro da própria cidade, como é o caso dos moradores da periferia, que a cada dia se sentem mais afastados do Centro Histórico da “Cidade Patrimônio da Humanidade”. Problemas inesperados podem se tornar “crises reveladoras” (SAHLINS, 1999), - como foi exemplo a enchente ocorrida no final de janeiro de 2002 – visto que começam a gerar questionamentos internos sobre a lógica de poder local, podendo, assim, impulsionar a nova relação entre estabelecidos e outsiders.

"O pessoal do poder passava e escolhia as casas que tinham que ser arrumadas e as que não tinham: 'essa sim, essa não, essa sim, essa não'!" [período após a enchente]  (moradora, 50, perifeira)

Esse distanciamento com a periferia é fortemente simbólico, mas a diferenciação física e espacial também o delimitam bem. Os contrastes entre novo e velho, limpo e sujo, bonito e  feio, já começam a levantar um sentimento de não pertencer ao lugar como antes, de estar sendo “abandonado e excluído”, nas palavras dos próprios moradores. . A oposição – antigo versus moderno - inicialmente marcada em contraste com a nova capital (Goiânia), é transferida para dentro da própria cidade, que agora tem um Centro Histórico fortemente diferenciado de seus arredores e que pode ser visto como uma espécie de nova cidade, independente.  

A supervalorização das construções do Centro Histórico é expressa no processo de revitalização. No entanto, a restauração dos prédios, as novas pinturas, o cuidado com a iluminação – de fiação subterrânea - e com o policiamento, não são vistos no restante da cidade, em que encontramos casas sem colorido – embora, talvez, mais parecidas com o estilo colonial -, altos postes com fios para eletricidade e telefonia, lixo pelas ruas.

O afastamento do Centro Histórico com os outros bairros da cidade, por assim dizer, provoca contradições internas que, certamente, estarão mais evidentes em pouco tempo. Diante do que foi analisado nesse trabalho, os jovens também podem ser vistos como  questionadores da lógica interna, marcada por uma moral tradicional. A maioria deles vive fora do Centro Histórico e, ao se juntarem com os turistas em algumas atividades, questionam a postura local. Como também foi observado por Elias (2000), nesse caso um certo tipo de punição é imputada a eles, que têm seu status rebaixado por estarem se “contagiando da sujeira que vem de fora” (DOUGLAS, 1976). Mesmo que sejam rapidamente perdoados, são questionados pelas atitudes de aproximação com os “farofeiros”.

"Os outsiders [...] são vistos - coletiva e individualmente - como anômicos. O contato mais íntimo com eles, portanto, é sentido como desagradável. Eles põem em risco as defesas profundamente arraigadas do grupo estabelecido [...]. Como os outsiders  são tidos como anômicos, o contato íntimo com eles faz pairar sobre os membros do grupo estabelecido a ameaça de uma 'infecção anômica': esses membros podem ficar sob a suspeita de estarem rompendo as normas e tabus de seu grupo; a rigor estariam rompendo essas normas pela simples associação com membros do grupo outsider." (ELIAS, op.cit, p.26)

O turista "de massa", ou o "farofeiro", é caracterizado por estudos da área, como alguém que usufrui um espaço - que por algum motivo se tornou "popular" - sem ter o interesse sobre seu valor histórico ou mesmo simbólico.[19] Nesse sentido, não é raro que eles – como grupo - sejam considerados como “indignos de confiança, indisciplinados e desordeiros” (op.cit, p.27) também em outros lugares.

3. A construção da cidade como cenário

"Uma cidade histórica constitui em si um monumento, mas
ao mesmo tempo é um tecido vivo”
Françoise Choay

As modificações que envolveram a revitalização do Centro Histórico da cidade – e isso vale reforçar - acabaram por gerar uma espécie de artificialidade, de instrumentalização das coisas e dos moradores frente ao turista. Foi por esse motivo que me apropriei da expressão “cidade cenográfica”, trabalhada por Barbosa (2001). As cores vivas utilizadas nas casas, igrejas e museus como suposta reprodução de uma época colonial, provocam uma sensação de se estar num “museu vivo”. O valor dispensado à estética afasta os significados simbólicos referentes a cada construção ou rua da cidade e assim, cada igreja, cada casa, cada museu e cada morador são vistos como mais uma “peça” a completar o “cenário”.

Como mostra Barbosa (2001), as cidades são “preparadas” para o turismo, mais do que realmente para uma preservação cultural histórica. Através de um projeto intitulado  “Vamos Pintar Goiás”, o Centro Histórico da cidade ganhou uma “nova cara” – ou talvez até uma “outra cara” -, envolta por um banho de cores vivas que, como lembra o autor, contrasta fortemente com as pinturas realizadas no período colonial, no qual tem-se o predomínio do branco – cal – e do cinza.[20] Em meio ao processo de preparação da cidade para recepcionar o turista, é atendido um

"forte apelo visual, onde o amarelo se junta ao azul turquesa e ao cor-de-rosa ou vermelho. A partir desse momento tem-se o predomínio do pictórico, o território antigo empresta seu nome e sua fachada, agora de roupa nova, ao lugar turístico. [...] O espaço do turismo e do lazer são espaços visuais presos ao mundo das imagens que impõem a redução e o simulacro." (BARBOSA, 2001, p. 83 - 84)

Essa releitura estética das fachadas se diferencia não só do que poderia ser chamado de Colonial, mas também dos padrões tradicionais nacionais do século XIX e da população local. Observa-se uma imposição estética externa que pretende dar “novo ar” para a cidade em prol de um retorno turístico alcançado, entre outras coisas, através do jogo de cores que encanta por se diferenciar das grandes cidades ou centros urbanos. Ali se estabelece fortemente o simulacro, que se sobrepõe a um interesse de reconstrução e valorização histórica, na medida em que

"subverte o real, introduzindo um corte entre essência e aparência; entre verdadeiro e falso; entre real e [irreal]. A imagem do simulacro não é nem a sombra do objeto nem o objeto propriamente dito." (DELEUSE, 1975, apud PEREIRA DE SÁ, 1997)

É esse processo de “revitalização” que acaba por gerar a sensação de se estar num “museu vivo”, num palco, numa cidade cenográfica, que apresenta um certo tom de artificialidade e distanciamento por misturar concepções de épocas tão diferentes em um mesmo local. Parece-me que o “banho de cores” gera uma situação ambígua. Ao mesmo tempo que ressalta as fachadas dos prédios, acaba por camuflar o que tem por trás delas. Os significados, as crenças, os mitos e os saberes envoltos em cada um, ficam escondidos pelas camadas de pintura. Isso é o que leva alguns turistas a traçar uma relação com objetos e peças de “exposição” e não com objetos e prédios preenchidos de valores simbólicos.

"A reprodução da imagem do monumento é a reprodução do seu elemento físico, não de seu elemento simbólico e representacional" (FORTUNA, 1997, p.137)

 A preparação e apresentação da cidade cenográfica provoca um distanciamento cada vez maior entre os moradores, suas “visitas” e os “turistas”, pois os últimos não reconhecem os monumentos e objetos como formas representativas de uma cultura local, de uma lógica interna que é preenchida por valores e significados específicos. Fortuna (1997) afirma que através de seus estudos sobre o turismo cultural em cidades históricas, foi possível constatar que há uma fraca “incorporação da mensagem histórica das ruínas e dos monumentos visitados”. Isso reflete em um descompromisso com o espaço visitado, tanto estética, como simbolicamente. Criticamente, Fortuna (1997) afirma que

"Muitos deles estariam mesmo dispostos a ver alterado o arranjo ambiental e toda estética circundante daqueles exemplares do patrimônio, em favor de seu conforto pessoal." (op.cit., p.137)

O que se tem numa situação como essa é, segundo Barbosa (2001), a criação de um “não-lugar”, pois passa a ser visto por muitos turistas como um espaço aparentemente vazio ou afastado das “teias de significados”.

"O não-lugar é o espaço dos outros sem a presença dos outros, o espaço constituído em espetáculo, o próprio espetáculo já apreendido nas palavras e nos estereótipos que comentam de antemão na linguagem convencionada do folclore, do pitoresco ou da erudição." (AUGE, apud BARBOSA, 2001, p.64)    

O "turista de massa" ou "farofeiro" enxerga a cidade visitada como um lugar de permissividade, no qual não há regras que eles devam respeitar ou precisem cumprir efetivamente.[21] O que se vê na Cidade de Goiás, diria DaMatta (1997b), é um processo de “inversão”, no qual os turistas se utilizam de “máscaras”, que garantem sua proteção e “livre arbítrio”, assim como em “vários períodos da história européia, [...] a inversão das roupas (e dos sexos) protegia seus agentes  de responsabilidades jurídicas” (DAVIS, apud DAMATTA, op.cit., p.50). Poder-se-ia dizer que, a todo momento, eles estariam amparados por uma lógica festiva e, mais especificamente, carnavalesca, que é responsável pela justificativa de suas ações.

É esse “status” que permite ao “de fora” poder agir à sua maneira, trazendo o que ele considera necessário para completar seu quadro de diversões. É por isso que em quase todas as pequenas e grandes cidades turísticas, encontramos cenas bem parecidas: carros com sons altos e diversificados que parecem estar concorrendo a um lugar de destaque no meio das ruas, que geralmente ficam tomadas - principalmente por jovens – que  não querem ou nem conseguem se acomodar nos bares e restaurantes da cidade. 

A atividade turística parece ficar idêntica em todos os lugares, não existindo uma vontade de experimentar o diferente. Em busca de uma (re)afirmação identitária – traçada através de contrastes com os diferentes códigos - os moradores reforçam ou criam rótulos com o intuito de se aproximarem de um passado idealizado, que fazendo parte da memória oficial, garante a continuidade do poder tradicional. Dessa maneira, diz Douglas (1997), “a experiência conservadora é incorporada”, possibilitando maior confiança aos indivíduos. A idealização de um passado sem violência, sujeira, barulho, roubos ou outros problemas se adequa a uma imagem salvaguardada para as fachadas das residências e outros prédios históricos, que devem ser mantidos “novos”, como se “sempre tivesse sido assim”.

Junto desses rótulos aparece o que Todorov (1995) chama de “emblemas para uma sociedade elitizada”. Através da releitura e utilização específica dos patrimônios, os membros da “comunidade de memória” (LIMA FILHO, 1998), enxergam a criação e incorporação de emblemas na memória oficial, como um instrumento capaz de garantir a continuidade da sua  legitimidade genealógica. 

Determinadas imagens, como é o caso dos Farricocos, apresentam a cidade para o mundo. Por outro lado, eles também passam a ser instrumentalizados  e a perder o significado que lhes cabe tradicional e historicamente. Os personagens que um dia assustavam, eram vistos com temor e como carrascos por representarem os soldados romanos em busca de Jesus, se transformaram nos “heróis” da festa. Vê-se, ao mesmo tempo, uma manifestação ritual, representativa de um ato de fé dos moradores e suas “visitas”, e um espetáculo exótico para os “de fora”, de modo geral.

Na última Semana Santa - 2003 -, quando estive na cidade para observar e participar da Procissão do Fogaréu, presenciei o que poderia realmente chamar de um espetáculo teatral, onde o simulacro mais uma vez se reforça. Nesse dia – “Quarta-feira de Trevas” - as ruas da cidade se transformam em palco e arquibancadas ao mesmo tempo. A diferença desse ano foi que, em vez de contar com o silêncio tradicional dessa procissão - que tem apenas os surdos, exemplificando  fortes passadas – ouvia-se centenas de pessoas gritando, assoviando e aplaudindo a passagem dos “soldados” que buscavam Jesus. As tochas de fogo carregadas pelos farricocos – antes as únicas que acompanhavam a procissão – foram seguidas por outras, distribuídas para os moradores e turistas, e também por flashes vindos de todas as partes.

 Todos estavam participando de um espetáculo. As pessoas riam e saltavam com felicidade por estarem participando daquele momento como atores. Como disse Giovannini Jr. (1998), que presenciou algo semelhante na Semana Santa de Tiradentes (MG), “consagrou-se assim, o sentido puramente cultural e artístico do turista, o espetáculo de fé transformou-se em espetáculo comum, lugar de diversão e descontração” (op.cit., p.7).

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[1] Esse ensaio foi elaborado com base na dissertação de mestrado defendida pela autora em junho de 2003 no Departamento de Antropologia Social da Universidade de Brasília.

[2] Mestre em Antropologia Social pela Universidade de Brasília.

[3] A idéia de patrimônio reconhecida aqui, está calcada nos estudos de Lima Filho (1998), que propõe uma relação direta com a noção de identidade. Outros trabalhos também podem ser buscados: Tamaso (1998) e Marisa Veloso M. Santos (1992) – O tecido do tempo: a idéia de patrimônio cultural no Brasil 1920/1970.

[4] Essas teorizações podem ser encontradas no Segundo Tratado sobre o Governo Civil, escrito pelo autor.

[5] Na Cidade de Goiás, falamos especificamente do IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – que é o responsável por coordenar toda área de tombamento, restauração e preservação do patrimônio na cidade.

[6] As pessoas que não têm condições financeiras podem pedir apoio ao IPHAN para a reforma ou restauração do imóvel. No entanto os pedidos, ao que parece, ultrapassam a cota de verbas destinadas e isso leva, em alguns casos, a uma longa “fila de esperas”, principalmente quando se fala de bens tombados localizados fora do Centro histórico, já que esses têm menor visibilidade, segundo moradores informaram. Aqui já é possível conferir um dos pontos contrastivos entre centro e periferia, que serão discutidos com especial atenção logo a frente.

[7] Preferi não apresentar os goianienses como um grupo específico de turistas, porque eles são classificados de uma maneira mais enfática como “visitas”, ou seja, como pessoas que dividem os códigos simbólicos com os moradores locais.

[8] O "farofeiro" é, segundo o dicionário Aurélio, 1. "Indivíduo que mora longe da praia e a freqüenta levando o seu farnel."; 2. fanfarrão, ou seja, aquele que blasona de valente, poderoso, sem o ser. O fanfarrão tem ainda outras características: pabola (mentiroso); pimpão (vaidoso, engalanado); vaniloqüente (que fala à toa, em vão, ou diz palavras sem sentido ou inúteis); jactante (arrogante); chibante (brigão, orgulhoso, valentão), entre outros.

[9] Os moradores não falam especificamente em um “eco-turista”, mas de uma certa maneira, o incluem nessa categorização de “cultural”. A atividade ainda é muito incipiente no município e, talvez por isso, os moradores não façam referências correntes a ela. Também por essa razão, optei por não aprofundar uma discussão nesse sentido, no entanto, não se pode ignorar que, aos poucos o eco-turismo vem sendo crescentemente praticado por grupos específicos e começa a ter divulgação e organização em algumas pousadas. Possivelmente, em médio prazo os moradores terão um contato mais próximo com a atividade e seus praticantes, podendo, assim, traçar perfis específicos.

[10] Faço referência principalmente ao arroz com pequi e ao empadão goiano.

[11]Segundo os moradores, esse "turista cultural" - que visita a cidade hoje e é esperado, desejado - é uma pessoa com mais de 50 anos. Mesmo que eles não sejam definidos pela idade, essa tendência é vista como positiva dentro da cidade, principalmente pelos moradores do Centro Histórico. A busca por um turismo de terceira idade, pode ser pensado como o desejo de encontro com um grupo que divide valores.

[12] Faço referência principalmente à maconha, que é utilizada com mais freqüência, naturalidade e sem muita preocupação em receber alguma punição.  

[13] Nesse depoimento a moradora faz referência a alguns problemas com o turismo antes do recebimento do título de Patrimônio da Humanidade. Confirma-se, aqui, que realmente existe a idealização de um passado pré-título, já que ele é  tão reforçado pelos moradores em outros depoimentos como um período de tranqüilidade, segurança, limpeza etc.

[14] Muitos moradores falaram que jovens com bastante dinheiro costumavam também se juntar nas praças porque "os gostos dos jovens são todos iguais". Esses primeiros são reconhecidos como playboy's, e hoje costumam "comandar" as festas já que seus carros são equipados com aparelhagem de som mais potentes.

[15] O respeito diante da cidade hoje, por exemplo, é resultado – segundo a moradora - de regras estabelecidas em lei, o que permite algum controle.

[16] Winston Parva foi o nome fictício dado para a cidade do interior da Inglaterra, na qual foi desenvolvido esse estudo de Elias e Scotson.

[17]  Os moradores informaram que a chegada de novas pessoas na Cidade de Goiás - que poderiam se interessar em fixar residência ali, para se dedicar à atividade turística – não é muito significativa. Por esse motivo, não aprofundei a questão.

[18] Vejo a importância de reforçar que não apresento os moradores como vítimas de um processo inevitável e que “vem de cima”. Eles são agentes que participam desse movimento da modernidade, que é em si repleto de ambigüidades e implica em inúmeros e constantes conflitos responsáveis pela formulação contínua das identidades. Foram esses conflitos que procurei analisar aqui.

[19] Sobre turismo ver Barbosa (2001); Barretto (2001); FUNARI e PINSKY(orgs.). Turismo e patrimônio cultural. São Paulo:Contexto, 2002;  SERRANO, BRUHNS e LUCHIARI (orgs.). Olhares contemporâneos sobre o turismo. S.P:Papirus, 2001.

[20] Segundo Barbosa (2001), pode-se observar em algumas cidades, como Diamantina e Parati, uma grande diferença no sentido da preservação, já que não há esse “apelo visual” e sim uma preocupação voltada para a valorização histórica de um determinado período.

[21] Cito dois trabalhos que discutem esse posicionamento. FUNARI e PINSKY. Turismo e patrimônio cultural. São Paulo: Contexto, 2002; FLEISCHER, David Ivan Rezende. São Tomé da Letras: uma etnografia de ver para crer. Brasília: UnB, 2003 (Dissertação de Mestrado).


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