RELIGIÃO E AFIRMAÇÃO ÉTNICA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: NOTAS SOBRE A CONVERSÃO NO CAMPO RELIGOSO BRASILEIRO

AISLAN VIEIRA DE MELO*

RESUMO:

Na atualidade, a sociedade brasileira passa por um “reencantamento do mundo”, onde as religiões ditas mágicas, do “aqui e agora”, ganham os adeptos que sentiram-se órfãos pelo esvaziamento axiológico do catolicismo tradicional. Nesse contexto, vemos que o candomblé, um dos símbolos de referência imediata da negritude brasileira, cresce como se acompanhasse a emergência da identidade afrodescendente e o ganho espaço-social que esses indivíduos vem ocupando na sociedade inclusiva. O presente artigo trata do campo religioso brasileiro em articulação com a emergência da afirmação étnica dos negros no Brasil. Pressupomos que a emergência da identidade afrodescendente traz consigo, num processo concomitante, seus símbolos de representatividade, que ganham espaço na sociedade nacional, dentre eles o candomblé.  

PALAVRAS-CHAVE: afrodescendentes, religião afrodescendente, escravos, candomblé

INTRODUÇÃO

Neste início de milênio vemos as identidades étnicas emergirem e buscarem seu espaço neste mundo que é racional, fragmentário, ... ,enfim, moderno. Como exemplo podemos citar as recentes guerras étnicas do Leste Europeu que resultaram em mudanças no contexto geográfico global. Afora esses movimentos que chegam a ter impactos externos, há, concomitantemente, movimentos internos de auto-afirmação, tais como os que ocorrem por toda a América Latina.

No Brasil, em particular, os movimentos auto-afirmativos tiveram evidência na década de ‘60’: reflexo de um movimento muito mais amplo iniciado nos Estados Unidos e na Europa que espalhou-se pelo Ocidente questionando as verdades da cultura Ocidental, “o conhecimento universitário tradicional, a superioridade dos padrões burgueses, dos valores estéticos europeus”; valorizando, pois, a cultura do Outro, essa juventude desiludida com sua própria cultura voltava-se para a busca das culturas tradicionais, sobretudo do Oriente, onde em esquecidos valores e escondidas formas de expressões buscou-se novos sentidos nas velhas subjetividades (PRANDI, 2000)[1]. Assim, o exótico tornava-se gradualmente cada vez mais semelhante e menos longínquo.

Para a população negra brasileira, desde então, cresce o sentimento de orgulho por suas raízes, quer estejam na “Mãe África”, ou mesmo nos Estados Unidos (SANSONE, 2000)[2]. Atualmente é comum - embora não seja consenso é significativo - encontrar alguém de pele escura, ou não tão assim, que se auto-defina como negro ou afrodescendente. Vemos, também, o capitalismo perceber a emergência dos novos consumidores e rapidamente incorporá-los em sua lista de clientes: têm-se produtos especializados de beleza, têm-se revistas, etc. Mesmo que o preconceito racial persista a população negra está crescendo, e aqueles que se auto-afirmam como tal estão aparecendo e saindo de trás do moreno, categoria que se situa entre o diferente e o igual.

Segundo Prandi (2000), a pluralidade cultural das etnias africanas contribuiu em muito para a formação da cultura nacional fornecendo um vastíssimo elenco de itens que abrangem desde a língua, a culinária, a música e arte diversas, até valores sociais, representações míticas e concepções religiosas, embora sua sobrevivência dependesse da capacidade de absorção pela “cultura branca”. “Mas fora do campo religioso nenhuma das instituições culturais africanas logrou sobreviver”. E, foi com a religião que apesar de impregnada de aspecto diversos, os africanos manteriam e sua cultura que representava simbolicamente sua sociedade e sua vida de outrora.

Com efeito, entendemos, assim como Prandi, que a reconstrução da religião africana – em especial o candomblé – apesar das inevitáveis adaptações recriou no Brasil uma África simbólica que se tornou, pelo menos durante um século, a mais completa referência cultural para o negro brasileiro. Mesmo que o negro de hoje opte por outros símbolos de negritude (cabelo e música – samba, pagode, rap -, são alguns exemplos) em detrimento da esfera religiosa é importante ressaltar que para a população nacional religiosa negritude e candomblé[3], principalmente, estão fortemente ligados.

Nesse sentido, este artigo pretende refletir sobre o espaço ocupado pelo candomblé nesse contexto de insurgência da identidade afrodescendente no Brasil. Pressupomos, enquanto no âmbito das identidades, que por ser um dos símbolos representativos da negritude brasileira, o espaço que vem ocupando e a força e legitimidade que vem conquistando no campo religioso nacional parece refletir o espaço cada vez maior que a população afrodescendente vem ocupando na sociedade inclusiva, num processo de “despreconceitualização” da religião. Com efeito, esse processo influencia diretamente o campo religioso, cujo “reencantamento do mundo” – no sentido de que a os indivíduos voltam-se em busca do encontro com o sagrado - que abarca a sociedade brasileira, pelo menos nos últimos vinte anos pra cá, vem abrindo espaço para as religiões ditas mágicas, do “aqui e agora”, representadas pelas Igrejas neopentecostais e também pelas religiões afrodescendentes – candomblé e umbanda; neste contexto de luta por adeptos e clientes que muitos denominam mercado religioso, o candomblé parece inserir-se como concorrente simétrico[4].    

Para tanto, dividiremos nossa reflexão em duas partes bem distintas e uma terceira direcionada a análise: na primeira tentaremos explicitar, de maneira sucinta, a presença do afrodescendente e de suas características culturais no contexto brasileiro, para em seguida passarmos para a apresentação do campo religioso brasileiro atual, seus conflitos e suas conversões. Numa terceira parte passaremos à análise dos pressupostos apresentados, isto é, como última reflexão tentaremos concatenar as idéias apresentadas anteriormente. 

 

OS NEGROS NO BRASIL

Estimativas afirmam que pelo menos 10 milhões de africanos foram trazidos às Américas no período da colonização[5]. Desses, cerca de 3.600.000 tiveram como destino o Brasil. Dentre as várias etnias estariam aqueles que se convencionou chamar de nagôs, ou seja, aquelas etnias que usavam o idioma yorùbá, tais como os òyó, kétu, ijesà, etc.

A história dos africanos é mal conhecida no Brasil. Segundo Matory (1999), deve-se atentar para o fato de que

a África que vive nas Américas negras não deve ser medida em termos da sobrevivência mais ou menos pura de um ‘alhures’ primordial. A África que vive nas Américas é uma mobilização estratégica de um repertório cultural circum-Atlântico de quinhentos anos. Em suma, muito do que é chamado de ‘memória’ cultural ou coletiva na diáspora africana, e em toda nação, ocorre em contextos de poder, negociação e recriação.(grifo do autor)

O autor ainda afirma que deve-se reavaliar as pesquisas realizadas a partir da “invenção da tradição” – representadas pelas publicações após o livro A Invenção da Tradição, de Hobsbawn e Ranger em 1983 - que avaliam a diáspora africana “de-cima-para-baixo”, desconsiderando o consentimento e a contribuição das várias classes envolvidas na produção da “tradição”. Nesse sentido, diz: “O que me parece evidente no caso da identidade yorùbá é a agency - intencionalidade e ação estratégica bem-sucedida - dos oprimidos e sua sabedoria cosmopolita".

            Segundo Sansone (2000), no contexto brasileiro os negros tiveram curtos espaços de tempo para redefinirem, constantemente, “o que seriam suas culturas e como elas se manifestariam (ou como deveriam se manifestar)”. Essas produções deveriam “significar algo e ser inteligíveis para os próprios negros – que no início provinham geralmente de origens diversas – bem como, embora de outra forma, para os brancos”. Assim como Matory (1999), afirma que já havia uma inclinação para a formação de uma cultura negra ainda na África dantes do comércio de escravos e esta tendência teria inspirado a criação de uma cultura negra nas Américas. Neste sentido, “por definição, a criação de novas culturas centradas na experiência de um africano no Novo Mundo, em vez de relacionar-se à nação, era um fenômeno transnacional”.

É fato que no Brasil, trazidos como escravos, foram separados de seus parentes e agrupados, muitas vezes, com inimigos tradicionais; assim tiveram que reinventar as suas formas de vivência cultural expressadas não somente, mas, sobretudo, pela religiosidade. Com efeito, a religião africana esteve durante séculos, no Brasil, em contato com a religião católica (predominante), assim como com as religiões indígenas e mais tarde com o kardecismo; ela impregnou-se, portanto, de traços sincréticos, resultado de um longo processo de seleção, negociação e reinterpretação de elementos de origens diversas.

No Brasil, a Igreja católica gozou durante séculos de uma situação de exclusividade e as demais religiões foram reduzidas à marginalidade, sendo perseguidas como heresias, paganismo ou superstições. Subordinada, porém, ao Estado pelo regime do padroado e contando com um número reduzido de padres, ela concentrou sua atuação nos centros urbanos, mas não pôde controlar a religiosidade das populações do interior. Com isto, o catolicismo brasileiro distanciou-se do catolicismo oficial e desenvolveu suas devoções particulares. Bastide[6] chamou de catolicismo doméstico esta religião das grandes famílias coloniais. Teriam surgido deste modo no Brasil duas formas de catolicismo: uma forma popular do culto, a da maioria, e a forma oficial do catolicismo romano, assim como duas hierarquias religiosas: a do clero secular e das confrarias de leigos, e a das ordens religiosas, em particular dos jesuítas.

Foi essencialmente com o catolicismo popular, ou doméstico, que os escravos negros estiveram em contato e do qual absorveram aos poucos valores e significados. Sabemos, desde Nina Rodrigues, que “batizados em massa, mal evangelizados, esconderam seus deuses atrás das imagens dos santos católicos”. Assim, Iemanjá disfarçou-se sob os traços de Nossa Senhora, Iansã sob os de Santa Bárbara, etc. Os cultos africanos teriam primeiro se misturado entre si, e depois com as religiões dos “brancos”.

Dessa diáspora que não representa perda, mas transposição de fronteiras (CANEVACCI; 1996)[7] resultou o sincretismo. Entendemos que o sincretismo seja um processo que “diz respeito àqueles trânsitos entre elementos culturais nativos e alheios que levam a modificações, justaposições e reinterpretações” onde, “os símbolos são vistos como estendidos sob profundas instâncias de de-simbolização determinados por tendências culturais múltiplas que fragmentam e remastigam todo o código”(p.32). No que tange a religião, em meio a essa antropofagia, formaram-se os inúmeros modos de relacionar-se com o sagrado que existem hoje no Brasil; inclusive as religiões afro-brasileiras. O candomblé parece destacar-se dentre as religiões afro-brasileiras por representar uma “pureza cultural”, um pedacinho da África no Brasil.

Em geral, o candomblé que hoje conhecemos diversifica-se em várias tendências chamadas nações, representadas pelas divindades (orixás, voduns, inquices), cânticos, oferendas, objetos e tabus - variando conforme a divindade - além, da pronúncia africana característica de cada região. Todos esses aspectos permitem diagnosticar a (s) nação (s) predominante (s). Podemos definí-lo como “uma manifestação religiosa resultante da reelaboração das várias visões de mundo e ethos provenientes das múltiplas etnias africanas”, além dos ethos e das visões de mundo de europeus e índios. Na formação do candomblé ketu[8], os povos "jeje, em Salvador, teriam adotado a hierarquia sacerdotal, os ritos e a mitologia dos nagô"[9], mas com algumas contribuições absorvidas do catolicismo; entretanto, sob a hegemonia do sistema religioso dos nagô.

Mas, com o fim da escravidão, no fim do século XIX, a importância da etnia perdeu importância para o negro brasileiro que almejava integrar-se na sociedade inclusiva não mais como africanos, mas brasileiros, como mulatos. Fato importante foi que para as relações da sociedade nacional (testamentos, escrituras, relações oficiais), a origem étnica também deixou de ser relevante, e a multiplicidade africana se foi em favor do negro. Nesse sentido, suas origens ficaram esquecidas porque tornavam-se entraves para sua aceitação (PRANDI, 2000). As raízes étnicas   foram preservadas na forma de candomblé no Brasil, santeria em Cuba e vodus no Haiti, cada grupo religioso compreendendo variantes rituais autodesignadas com pelos nomes de antigas etnias africanas. Assim, na Bahia, temos os candomblés nagôs ou iorubás: ketu ou queto, ijexá e efã; os bantos: angola, congo e cabinda; os ewe-fons: jejes ou jejes-mahins. Em Pernambuco, os xangôs de nação nagô-egbá e os de nação angola. No Maranhão, o tambor-de-mina das nações mina-jeje e mina-nagô No Rio Grande do Sul o batuque oió-ijexá, também chamado de batuque de nação (Ibid, p.59).

Excetuando, de certa forma, a religiosidade tudo agora faz parte da cultura negra ou africana e não mais kètu, ijesà, monjolo, angola, jeje, cabinda, mina, òyó.... Essa tendência ao afastamento das raízes e do passado, que atravancava a entrada na sociedade inclusiva, fez com que aqueles aspectos culturais produtos de um processo sincrético simétrico – no sentido em que se respeitou, em certa medida, as vontades das partes envolvidas – sofressem agora um sincretismo assimétrico, uma vez foram que embranquecidos para serem aceitos, já que seus “responsáveis” não tiveram muito interesse em se auto-identificarem com eles.

Entretanto, não perdurou muito o preconceito com os caracteres negro-africanos. Na metade do século XX houve uma verdadeira reafricanização desses elementos num processo de incorporação à identidade nacional, brasileira. A possibilidade de se pensar a contribuição do negro para formação da cultura e da identidade nacionais foi pensada por Gilberto Freyre que ainda na década de ‘30’ buscou refletir, num paralelo à sociedade norte-americana, a contribuição e importância do negro para a formação da cultura e identidade nacionais. Durante a primeira metade do século ainda, período em que os aspectos africanos estavam sob o impacto do processo de embranquecimento, elementos como a capoeira e o carnaval (segundo Sansone, décadas de ’20 e ‘40’, respectivamente, mais tarde o rebolado, além de outros) seriam dotados de uma genuína identidade nacional.

E somente na década de ‘50’ é que se efetivaria o processo de reafricanização dos elementos negro-africanos. Muitos deles, inclusive, cairiam mais tarde ns graças do modo de produção capitalista. Segundo Sansone (2000), além “da chamada reafricanização da cultura afro-brasileira”, também concorreu, simultaneamente, para “os processos de mercantilização, incorporação de certas mercadorias negras à auto-imagem nacional e comercialização a desetigmatização de várias expressões culturais tidas como típicas dos negros na Bahia urbana, o que lhes permitiu tornarem-se parte da imagem pública do Estado da Bahia”.

            Assim, o negro já culturalmente incorporado à sociedade inclusiva tratou de se auto-afirmar e se impor perante o resto da população, buscando cada vez mais o espaço que lhe é de direito. A ajuda do capitalismo foi importante, porém não decisória na aceitação de sua cultura, que agora perpassa qualquer uma das esferas que constituem a sociedade nacional: na cosmologia, no comportamento, nas artes, etc. Sugiro que a aceitação e a interpenetração da cultura negro-africana em toda a cultura nacional deve-se mais pelo fato de que toda identidade étnica necessita de alguns símbolos de representação diacríticos, que constituem símbolos referenciais de inclusão ou exclusão, sejam eles do âmbito do comportamento, das representações míticas, dos costumes, etc.

A RELIGIOSIDADE NO BRASIL

Ao menos para o contexto brasileiro constata-se que as previsões dos sociólogos do início do século não se cumpriram e o “desencantamento do mundo” de fato não aconteceu, mas ao contrário parece haver um “reencantamento do mundo”; como se enquanto a sociedade nacional pretendesse ser moderna e profana, seus indivíduos nadassem na contracorrente e recorressem aos apelos sobrenaturais; como se o comportamento fundado na razão não alcançasse a todos os lugares e o religioso ainda sobrevivesse pelos quatro cantos (PRANDI, 1996). É isso que de fato vemos quando olhamos para os lados e percebemos que o sagrado está em toda parte, e vemos que            

Esse homem e essa mulher que dão as costas ao projeto não-religioso que formou esta sociedade que não precisa de deus, recuperaram o milagre, o contato com o outro mundo, a possibilidade de buscar a ajuda diretamente dos seres (humanos ou não) dotados da capacidade não-humana de interferência nas fontes materiais e não-materiais de aflição, construíram de novo os velhos ídolos, reaprenderam as antigas rezas e os já quase esquecidos encantamentos, ergueram templos sem-fim, converteram multidões, refizeram códigos de éticas e preceitos morais religiosos, desafiaram os tempos e até mesmo se propuseram à guerra.(Ibid, 24)

No Brasil o catolicismo que situava-se hegemônico e em grande medida inquestionável, pelo menos nos últimos vinte ou trinta anos, cedeu muito espaço para as explicações seculares do mundo, caracterizando um esvaziamento axiológico. Esse processo de secularização do catolicismo produziu em seus fiéis um sentimento de desamparo e fragilidade perante os acontecimentos cotidianos, além da perda de sentido. Esse momento foi crucial para a penetração e expansão de outras denominações religiosas como as evangélicas (Presbiteriana, Batista, Luterana), as pentecostais tradicionais (Assembléia de Deus e Congregação Cristã), as neopentecostais (Universal do Reino de Deus, Igreja da Graça) e as afro-brasileiras (os vários candomblés e a Umbanda e suas variações); refúgios onde os “órfãos” iriam buscar abrigo.     

Segundo Prandi (1996), no Brasil que já não é um país de hegemonia religiosa, cerca de um terço da população adulta (26%) já viveu uma experiência de conversão religiosa. Os critérios utilizados como paradigma para conversão variam, porém, não ultrapassam a esfera do indivíduo; o que quer dizer que “desde que a religião perdeu para o conhecimento laico-científico a prerrogativa de explicar e justificar a vida, nos seus mais variados aspectos, ela passou a interessar apenas em razão de seu alcance individual” (p.260). Ao ser colocada de lado pela sociedade, que pretende-se laica e racional, “a religião foi passando pouco a pouco para o território do indivíduo”.          

            Agora que o indivíduo já não está preso à religião de nascimento, ele se torna livre para escolher os serviços religiosos com os quais vai poder contar na “hora do aperto”; assim a própria concepção de conversão religiosa se modifica e toma outro sentido. Se antes mudar de religião significava uma verdadeira ruptura com toda uma história de vida, seus valores, concepções, etc., agora a conversão apenas se refere a benesse que o indivíduo pode obter ao adotar outra religião, como se o fiel fosse a uma prateleira e consumisse aquilo que acalma seus anseios. A religião tornou-se uma mercadoria que vale o quanto for sua eficiência perante os problemas cotidianos da vida cotidiana. Nesse sentido, o avivamento do sagrado, a recuperação da relação com o sobrenatural, se dá por via daquelas que se convencionou chamar de religiões de consumo, aquelas ditas mágicas ou do “aqui e agora”: as neopentecostais e as afro-brasileiras.

As religiões de consumo caracterizam-se pela grande facilidade pela qual o indivíduo pode utilizá-la e trocá-la, uma após outra, sem que isso venha acarretar conflitos de visões de mundo. Outra característica fundamental dessas tendências religiosas é que elas são religiões em que se paga.

Se o catolicismo deixa, em grande medida, o fiel livre de seus compromissos financeiros para com a igreja, as religiões de consumo exigem o pagamento pelo seu bens de serviço: nas afrobrasileiras “os deuses necessitam alimentar-se”; nas tendências pentecostais que não vêem com bons olhos a pobreza, é preciso que se pague para que o indivíduo conheça a “Palavra” e consiga no além alcançar uma vida de abundância paz ao lado do “Senhor”; nas neopentecostais essa concepção sobre a pobreza se potencializa e se transfigura num “aqui e agora”, onde a pobreza é vista como “obra do inimigo” e, portanto, indigno do filho de Deus. Enquanto nas afrobrasileiras o dinheiro é “dado de comer” aos deuses e nas pentecostais é dado à Igreja para que “Ide e pregai”, nas neopentecostais claramente é “dando que se recebe”.

O paradoxo está em que essas religiões propagam-se e possuem grande aceitação entre as camadas menos favorecidas materialmente da sociedade e também entre os de escolaridade mais baixa. Prandi (1996) através de dados do Data Folha[10] de 1995 realiza conclusões interessantes. Analisando os dados, podemos perceber que o catolicismo está perdendo seus fiéis e que estes estão procurando em igual proporção as igrejas pentecostais e neopentecostais, além das afrobrasileiras. Outro dado é que um em cada dez dos conversos tem pouco tempo de câmbio religioso, entre 1 e 3 anos de conversão. A tendência que mais aponta a recente experiência religiosa são as pentecostais e neopentecostais, seguida pelas evangélicas e mais atrás ainda vem as afrobrasileiras. De acordo com o autor, isso mostra como “o processo de conversão é mais acelerado, isto é, atrai cada vez mais gente, entre as denominações evangélicas capitaneadas pelo pentecostalismo” (p. 263).

REFLEXÕES FINAIS

Nesse contexto que sugere um “reencantamento do mundo” onde insurgem as religiões do “aqui e agora”, verifica-se grande demanda pelo candomblé. Se, somente na metade da década de ‘50’ o candomblé consegui livrar-se das perseguições policiais e preconceituosas, e veio firmar-se como religião não sendo mais classificada como seita, magia, etc., chegando nos dias atuais ser praticada nos grandes centros em casas esbeltas, chamadas terreiros, e parece lutar sem preconceitos com as denominações religiosas cristãs, devemos concordar que algo mudou sociedade brasileira.

Vários fatos concorreram para que isso se efetivasse. Sugiro que se o processo capitalista de produção fez com que a cultura africana fosse aceita pela cultura nacional - chegando ao ponto de em muitas ocasiões não conseguirmos distinguir o que é do “Brasil branco”e o que é do “Brasil negro” - se como fazer essa diferenciação fosse possível - antes, como afirmamos acima, o capitalismo se aproveitou dos símbolos culturais de referência étnica utilizado pelos afrodescendentes para retirar alguma vantagem, o que de fato ocorreu. Talvez, se o capitalismo não tivesse potencializado esses caracteres teríamos histórias diferentes das que temos hoje em dia.  

A identificação étnica que seguiu seu caminho e hoje alcança forte impacto na população brasileira como um todo, impulsionou, após a enorme pasteurização do início do século passado, a reafricanização que vem ocorrendo desde a década de ‘50’. Esse processo de reafricanização abarca o candomblé como parte de um movimento estratégico na luta, com as demais formas religiosas que compõem o campo religioso brasileiro, pela arregimentação dos adeptos e de prováveis clientes que possam sustentar a Casa. Esse processo de reafricanização do candomblé, que há muito deixou de ser uma religião étnica para ser uma religião de todos (PRANDI, 2000), parece dotar novamente a religião de um caráter étnico. Porém, não como dantes, ou seja, a etnicidade pretendida pela reafricanização não diz respeito mais aos seus adeptos[11], e sim à própria religião: o caráter étnico é agora comprovado pelos rituais, pelas músicas, pelas folhas, pelos aspectos trazidos de determinada parte da África. Enfim, a reafricanização vem legitimar as Casas que lhe acolheu e proporcionar mais um elemento para o fiel escolher dentro de seu leque de escolhas, agora ele pode optar por uma religião “tradicional”, “pura”, “assim como se pratica” do outro lado do Atlântico.

Mas o fato é que se o candomblé vem recebendo na mesma proporção que as tendências pentecostais e neopentecostais, sobretudo, os conversos, deve-se à uma “despreconceitualização-aceitação” da religião por parte da população religiosa. As tendências cristãs têm o discurso das religiões afro-brasileiras como oposto, como uma religião do mal, servidora do “inimigo”, mas não percebem que ao dissimularem essa idéia acabam legitimando-a como religião, com poder de explicar o mundo, de dar amparo, proteção ao desabrigado; parece que o fiel não absorve o discurso da “religião do inimigo” e concebe apenas as possibilidades de vantagens por ele proporcionado.

Não excluindo as interpretações de foro religioso e pensando sobre a evidência da negritude e seus símbolos de referência que ganham, com a ajuda do capitalismo, interessa-nos evidenciar que nessa sociedade da idéia de homem e mulher como iguais, desprovida de preconceitos e discriminações, onde os novos religiosos reinstalaram a idéia do outro como oposto, o candomblé cresce. E, se dentro do leque de opções que o fiel tem nesse mercado religioso, ele opta pelo candomblé significa que enquanto a população afrodescendente vem ocupando o espaço que lhe é devido na sociedade inclusiva, mesmo que estejamos distante ainda da idéia de igualdade, traz consigo, num movimento concomitante, muitos de seus símbolos dentre os quais a religião afrodescendente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E NOTAS

* Mestrando em Ciências Sociais do PPGCS da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista-UNESP/Marília

 [1]PRANDI, Reginaldo. De africano a afro-brasileiro: etnia, identidade, religião. Revista USP, São Paulo, nº 46, pp. 52-65, junho-agosto 2000.

2 SANSONE, Lívio. “Os objetos da identidade negra: o consumo mercantilizado, globalização e a criação de culturas no Brasil”. Mana 6(1), Rio de Janeiro, abril de 2000

3 Evidenciamos o candomblé, mas deve-se entender todas as religiões afrodescendentes com exceção da Umbanda e suas derivações, pois estas representam, aos olhos dos religiosos, um religião genuinamente brasileira, enquanto aquelas carregam uma grande representatividade simbólica de uma África “genuína”.

4 Claude Lépine em 1976 constatou 1426 terreiros de candomblé em 1984 na cidade de São Paulo, uma equipe do Centro de Estudo de Religião recenseou 2500.

5 MATORY, J.L. "Jeje: repensando nações e transnacionalismo", In Mana, v.5 n.1, 1999.

6 BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. São Paulo, Pioneira, 1960.

7 CANEVACCI, Massimo. Sincretismos: uma exploração das hibridações. São Paulo; Nobel, 1996. p, 32

8 Essa tendência caracteriza-se por representar o ethos religioso dos yorùbá. Os povos nagôs chegaram ao Brasil quando o país já estava num processo de urbanização, por isso tiveram maiores condições de preservar seus costumes. Diante dessas condições, o sistema religioso kétu goza do privilégio, tanto entre as nações do candomblé quanto entre os estudiosos, de representar um ideal de pureza ritual

9 Lépine, Claude. Comtribuição ao estudos dos esteriótipos psicológicos do candomblé Kétu de Salvador,FFLCH/USP, São Paulo, 1979 (Tese de Doutorado), p. 41

10 Emprese privada de pesquisas

11 Antes a etnicidade referia-se aos adeptos, pou seja, os ketus inseriam-se no candomblé kétu, os povos angola procuravam os candomblés de angola, e assim por diante




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