Patrimônio Cultural Urbano: de quem? Para o quê?.[1]
Carlos Tranquilli Pellegrino[2]
Da origem romana patrimonium, passando pela invenção do patrimônio nacional até a noção contemporânea, expandida e pulverizada em diferentes esferas patrimoniais, o conceito de patrimônio adquiriu diferentes significados. Em sentido amplo, podemos considerar que os bens patrimoniais são materialidades e práticas culturais que, ao serem contempladas e despertarem a reflexão, destacam-se no tecido urbano e no conjunto das manifestações populares por mediarem distintos fatos históricos memoráveis, personagens ilustres ou por representarem heranças técnicas, estéticas e culturais de temporalidades passadas. O sentido geral de patrimônio se compõe tendo como princípio estrutural os distintos tipos de elementos que presentificam o passado e encarnam um sentido de continuidade devido às suas particularidades. Bens provenientes de diferentes temporalidades carregam os traços culturais de seu tempo e os referenciam como passado presente. Transpondo este princípio para o urbano temos o ‘deixar’, ou melhor, a permanência de bens materiais ou imateriais compondo um espaço em suas múltiplas paisagens. São em sua esfera imaterial, manifestações das culturas populares, festejos tradicionais, rituais, técnicas produtivas, cantos, contos, lendas. Em sua esfera material, um grupo diversificado de monumentos e seus entornos, conjuntos arquitetônicos e sítios urbanos históricos, Igrejas, Palácios, Conventos, Solares, Casas Grandes, Sobrados, Engenhos, Sedes de Fazendas...
Há poucas décadas verifica-se uma transição significativa na forma de compreender o patrimônio. Ramon Gutierrez (1992), argumentando sobre as particularidades e os propósitos implícitos no direito ao patrimônio construído, traça algumas considerações sobre o impacto verificado no campo patrimonial pela abertura que propicia a passagem da noção de patrimônio histórico para patrimônio cultural. Essa delineia uma ruptura com uma visão histórica reducionista respaldada por uma ‘historiografia oficial’ que converte em patrimônio bens de origem aristocrática, religiosa, bélica ou estatal. Nessa nova concepção de patrimônio há a inclusão do cultural e das “dimensões testemunhais do cotidiano e os feitos intangíveis”. Superam-se as legislações que reconheciam os bens por sua antiguidade e são transcendidas as fronteiras que limitavam o ingresso ao status de patrimônio às edificações oficiais e igrejas. E, ao mesmo tempo, as obras arquitetônicas deixam de ser vistas como objetos isolados e tornam-se relevantes os conjuntos urbanos e territoriais e também a contextualização tanto física como social e cultural destes.
Observando o patrimônio de um outro ângulo vemos que a adoção de diferentes enfoques resulta em divergências nas formas de entender, definir o significado e os processos de inserção no patrimônio dos bens materiais e imateriais que os deveriam compor. São representações com graus de influência e reflexo em variados estágios do processo de construção social dos patrimônios. Sobre a inserção de um objeto na instituição social e simbólica patrimônio afirma-se que é necessário um processo seletivo, pois sem esta restrição não haveria dinheiro suficiente para cuidar dos bens culturais, argumento utilizado para restringir o conceito a coisas realmente especiais.(LE BLANC, 1993) E com um outro ponto de vista David Lowenthal (1998), ressalta a dificuldade existente em se explicitar um sentido preciso para o patrimônio, a falsidade em que se converteu o termo e como essa fabricação compulsiva de heranças contribui para o excesso de patrimônio que verificamos hoje. Para Lowenthal o “patrimônio objetiva converter resíduos históricos em testemunhas que atestem nossas virtudes ancestrais”, sendo que essa instituição patrimônio pode ser entendida como um processo de fabricação e apresentação de histórias e lugares históricos sem ser história ou a partir da construção de histórias.
No que tange a escala os bens podem representar as esferas locais, regionais, nacionais e mundiais. Quando há trinta anos o patrimônio se mundializa, agrupando universalismo e pluralismo cultural sob a mesma idéia, ocorre uma mudança no imaginário, em algumas esferas e campos de atuação delineando uma nova e incipiente busca intencional de marcos culturais e atrativos mundiais. Por pertencerem ao passado comum dos diferentes povos e Estados convertem-se em bens potenciais para celebrar e simbolizar esta união global. Assim no âmbito das ações desenvolvidas no plano do patrimônio cultural mundial os limites espaciais, jurídicos e societais implicam na coexistência de povos e ritos pré-coloniais e heranças coloniais com bens pertencentes a países que promoveram tais colonizações.
No jogo que constitui a formação dos acervos perceber, reconhecer e valorizar são fases envolvidas na formação do capital simbólico atribuído às propriedades que constituem os bens patrimoniais. As representações e os significados que os sujeitos dialeticamente constroem e interpretam contribuem para o fortalecimento das diferenças que estes expressam. Estes jogos ao tocarem relações de poder podem constituir espaços de dominação simbólica. Diferentes sujeitos e grupos sociais estabelecem laços de identificação com os bens que melhor os representem. Isto implica o reconhecimento da pluralidade dos elementos que constituem um patrimônio e uma reflexão sobre os movimentos das memórias e identidades culturais, considerando o patrimônio em seu processo de constante constituição e os conflitos e as resistências expressas por sujeitos que não reconhecem nem legitimam determinados bens como representantes de seu passado. Nesta perspectiva o patrimônio reflete também o dissenso e as dissonâncias e pode instaurar um espaço de crítica e reflexão.
Uma síntese crítica dos parágrafos anteriores pode nos sugerir entradas para se pensar o patrimônio como um objeto de investimento do presente e não apenas adoração do passado, e para além, para se refletir sobre os processos de criação de patrimônios convenientes às estruturas de poder constituídas, às instituições em vias de consolidação e ao mercado que os reverte em investimento e bem de consumo cultural e turístico. Fato este que nos remete desde a origem da instituição patrimônio e seu uso pelo aparato de Estado para legitimar sua soberania sobre o território a partir da arregimentação de bens de alto valor simbólico até os dias atuais em que lugares são revitalizados, disputam para receberem o título de patrimônio mundial e são convertidos em vitrines para o flâneur contemporâneo deambular.
A patrimonialização dos espaços das cidades
As cidades, em decorrência do surgimento em diferentes períodos de processos que contribuíram para suas formações, compreendem vestígios de várias temporalidades. Essas reminiscências de tempos antigos se acumulam em processos lentos de seleção e de destruição de elementos ou estruturas urbanas. Essas paisagens urbanas contemporâneas são o resultado da apropriação e da cristalização, enquanto ambiente construído, de técnicas e usos sócio-econômicos do solo que tem origens em tempos históricos distintos e que coexistem com fazeres profissionais e lugares constituídos no presente e/ou com planos que anunciam tempos ainda porvir. Podem trazer marcas culturais e monumentos do período colonial, e/ou os traços deixados pelo desenvolvimento industrial e a modernização dos tecidos urbanos que resultaram em alterações distintas nos usos do território. Há nelas o que Nestor Garcia Canclini (1997) chama de uma heterogeneidade multitemporal, ou seja, podem ser identificados traços heterogêneos e híbridos resultantes da coexistência de construções e formas de organizar o espaço que são potencializados pelos processos migratórios. Nelas todos os vestígios do passado são elementos potenciais para a conversão em bens patrimoniais.
Para estabelecer as relações entre o que é designado patrimônio e os espaços das cidades é necessário antes colocar algumas questões sobre a própria natureza do espaço. Esse espaço forma-se na confluência dos objetos que são produzidos por diferentes ações, ao longo do tempo, e essas ações partem de necessidades, desejos ou projetos específicos e contextualizados à conjuntura social, política e econômica e aos recursos técnicos conhecidos na época. Aqui recorrerei à reflexão de Milton Santos (1996), quando este afirma que para o tratamento analítico dos espaços devemos considerá-los como um arranjo complexo e dinâmico de sistemas de objetos e sistemas de ações. Ações e objetos articulam-se em dois sistemas que interagem constantemente e transformam o espaço.
O sistema de objetos comporta “toda a herança da história natural e todo resultado das ações humanas que se objetivou.” (SANTOS, 1996: 56) Pode-se inserir neste sistema um campo vasto de materialidades que foram produzidas pelo homem em diferentes períodos históricos e com diferentes funções. São materialidades que assumem múltiplas formas, ao corporificarem idéias e ações distintas, que possibilitam a satisfação de diferentes necessidades. Sendo assim, neste sistema de objetos está incluído o que há num arco que compreende da caneta de pena ao computador e do Pathernon à Vila das Mulheres Pedreiras. Este arco, na contemporaneidade, representa inúmeros objetos entrelaçados, temporal e espacialmente, e desdobra-se numa teia de valores com diferentes nuanças simbólicas e potencialidades econômicas ao materializarem-se em ambientes culturais distintos que os tornam mais ou menos patrimonializáveis.
Entre esta miríade de objetos e os múltiplos valores que suscitam há o sistema de ações. Como diz Milton Santos, as ações resultam de necessidades materiais, imateriais, econômicas, sociais, culturais, morais e afetivas e levam a funções, que de uma forma ou de outra vão desembocar nos objetos. (SANTOS, 1996, 67) No campo patrimonial podemos distinguir ações simbólicas e instrumentais. No plano simbólico temos uma rede de conceitos, noções e categorias analíticas, normas e leis, mais ou menos articulados, configurando uma formação discursiva que fundamenta, questiona e orienta diferentes formas e/ou técnicas instrumentais de atuação prática. Já no campo das ações instrumentais há o rebatimento e a socialização deste ideário que através da confluência de sujeitos oriundos da sociedade civil e de representantes de esferas estatais geram um rol de intervenções que determinam a permanência e as possíveis transformações dos monumentos e/ou sítios históricos específicos que constituem o patrimônio urbano.
O interesse por determinado objeto desencadeia uma série de ações sociais articuladas que interferem em sua materialidade e dilatam o significado de sua existência. Uma seqüência de atos específica e tecnicamente fundamentada desvela, ao menos para um grupo seleto, valores latentes daquele objeto que justificam sua pertença a uma rede simbólica que corporifica momentos do passado e cristaliza entes como representantes, ao nível imaginário, de um patrimônio suportado pela memória e a identidade coletiva. Os múltiplos bens que compõem a cidade, catalogados como patrimônio, estão sujeitos às intervenções e agressões ambientais e humanas que podem degradá-los, conservá-los, restaurá-los, transformá-los ou aniquilá-los. Para a permanência do caráter desses bens, reconhecendo a natureza altamente diversificada destes, são necessárias ações instrumentais e simbólicas a fim de neutralizar ou minimizar o impacto das forças adversas que incidem e comprometem a continuidade desses bens e tecidos urbanos. Em síntese, esta rede de interações e sua materialização nas cidades constituem o universo do patrimônio e se consolidam na medida em que criam traços culturais pertinentes e necessários para a permanência e reconstrução constante deste ideário.
Entre a cidade antiga e a cidade futura há uma alteração nas necessidades da população que geram pressões e deslocam o campo das permanências para próximo das mudanças, estas mudanças tanto podem ser observadas nos processos sociais como também nos bens materiais. Dos espaços da cidade que são convertidos em patrimônio espera-se a permanência de traços que remetam ao passado. Porém, a dinâmica das cidades contemporânea suscita pressões nem sempre existentes à época de consolidação das estruturas urbanas que agora são bens patrimoniais. Reconhecendo que é necessária esta permanência, mas que as pressões exercidas sobre as estruturas urbanas decorrem em parte da tensão entre a fluidez dos processos sociais e da lógica de acumulação do capital e seus reflexos no espaço urbano; é pertinente refletir sobre uma questão formulada por David Harvey (2000) nos seguintes termos “como planejar a construção da próxima camada do palimpsesto urbano de forma a satisfazer os desejos e as necessidades do futuro sem violentar muito as camadas anteriores.”
Patrimônios e revitalizações: revitalizar para quem? Para o quê?
A construção de imagens atrativas que possam produzir vantagens competitivas é buscada por muitas cidades contemporâneas. Forma-se um consenso em torno de que a economia local deve adaptar-se às forças externas do mercado e que as políticas públicas devem facilitar estas mudanças, que as ações devem ressaltar as vantagens comparativas construindo imagens de bons locais para os negócios e que devem ser valorizadas a coalizão das forças públicas e privadas para guiar e promover o desenvolvimento econômico local. Essa busca leva a elaboração de planos estratégicos nos quais mesclam-se formas de elevar alto estima da população, construção de uma imagem vendável do local, promoção de territórios de oportunidades, exploração das potencialidades locais como negócios, maximização das infra-estruturas pela dinamização e revitalização urbanas, promoção de eventos efêmeros de grande apelo comercial. Nesse contexto o desenvolvimento urbano aproxima cultura e economia, patrimônio e turismo. Ou nas palavras de Otília Arantes “rentabilidade e patrimônio arquitetônico-cultural se dão as mãos, nesse processo de revalorização urbana” (ARANTES, 2000)
As formas hegemônicas de se raspar as camadas anteriores do palimpsesto urbano, ou seja, as revitalizações dos centros históricos tão em voga produzem o que podemos chamar de uma continuidade aparente. Estão mais próximas de uma superação dialética que deixam após grandes mudanças uma negação das áreas degradadas e sua conversão em centros antigos com uma vida social nova. Analisando essas revitalizações em seu conjunto veremos que as materialidades foram recompostas seguindo princípios estéticos variados e que muitas vezes a dinâmica social da localidade foi profundamente alterada com a retirada de esferas sociais indesejáveis.[3] Há nestas revitalizações de bens patrimoniais uma tensão entre uma permanência material estilizada e uma profunda ruptura social. Vejamos algumas questões que esta forma de conceber e dinamizar o patrimônio pode engendrar.
Há que se questionar o próprio significado do que vem a ser o patrimônio nos dias de hoje. A construção do patrimônio, como vimos, gera a necessidade de criarem-se mecanismos para a preservação destes bens e está, em sua origem atrelada à permanência de indícios que preservem elementos constituintes da memória coletiva. A dinâmica social mudou de forma significativa e os interesses que justificam a preservação de determinados bens estão cada vez mais atrelados aos interesses econômicos relacionados ao universo do turismo. Na presentificação destes espaços que constituem o patrimônio estabelecem-se as pontes entre a sociedade de consumo e os mercadores de memória. Os espaços urbanos, principalmente em seus núcleos antigos, repletos de memória são convertidos em paisagens urbanas estilizadas, sendo o uso turístico dos mesmos estimulado. Essa conversão dos espaços de memória, muitas vezes degradados, em territórios de oportunidades por seu potencial latente se dá em complexos processos de valorização induzidos por políticas de revitalização.
Ao menos duas conseqüências desta forma de conceber o uso do patrimônio devem ser ressaltadas, por um lado, que quase sempre as políticas de preservação que se orientam neste sentido estimulam a gentrificação e a segregação sócio-espacial que geram mais esquecimento do que memória e, por outro, se essa potencialidade do patrimônio, ao consolidar sua hegemonia, passar de forma de uso a critério de escolha dos locais e justificativa única das políticas de preservação do patrimônio o que vai acontecer com os vestígios urbanos que corporificam memórias indesejáveis para os grupos que detém um poder econômico e político.
Estes pontos nos levam a refletir sobre os usos destinados ao patrimônio e aos sujeitos e seus possíveis papéis nos processos de proteção de sítios urbanos históricos. O aparente consenso permissivo que emana do patrimônio sob a ótica ‘do conjunto de bens que representa o passado e constitui a memória coletiva nacional’ (Constituição Brasileira, 1988), revela as contradições que o produziram e sugere um outro suporte para o estudo dos jogos e desníveis de poder que dão forma ao espaço urbano. A contraposição destas aos arranjos institucionais e às vicissitudes das revitalizações de áreas degradadas criam possibilidades de avaliação sistemática das políticas de proteção e revitalização do patrimônio urbano. Já o confronto destas instâncias observadas no campo temático do patrimônio urbano, através da justaposição à dinâmica social e urbana das cidades, com o papel desempenhado por diferentes agentes co-responsáveis por programas específicos de revitalização, pode ressaltar lacunas e ingerências na formulação e condução destas políticas. Isso nos leva a considerar as políticas de proteção e revitalização de áreas urbanas para além das intervenções físicas em materialidades degradadas, incluindo nestas reflexões as resistências, as tensões e os conflitos que se estabelecem entre os sujeitos envolvidos nos processos e mobilizações sociais desencadeadas por tais revitalizações.
Mas a dimensão política não se faz só com ações ou intenções orientadas para a preservação do bem, efetuam-se atuações, representações, que convergem nas teatralizações do patrimônio, nos usos da paisagem urbana enquanto palco e/ou cenário projetando, em revitalizações estilizadas, uma marca das coalizões políticas e de seus feitos. Tomando um outro rumo e considerando o ambiente urbano o de muitos sítios históricos de cidades latino-americanas como o conjunto indissociável dos objetos materiais e dos fluxos e interações sociais que dimensão tomam estes problemas se justapormos a estes a violência, miséria, exclusão, segregação sócio-espacial, desemprego? Buscam-se respostas que procurem cruzar essas duas faces do problema da maioria de nossos sítios históricos ou estas misturas são indesejáveis. Quais os cruzamentos possíveis hoje da política de preservação com outras políticas? Será mais útil à sociedade requalificar, retirar os degradados, contratar seguranças e vender cartões postais? Para equacionar estes desafios, implícitos na dinamização das materialidades dentro de uma perspectiva de emancipação social, deve-se contrapor criativamente as temáticas difusas levantadas pelos questionamentos formadores do imaginário do patrimônio com formas e mecanismos possíveis de serem aplicados para operacionalizar tais conceitos, tendo em vista o engajamento e a motivação dos diferentes sujeitos envolvidos nos processos que geram a transformação ou a permanência das estruturas urbanas materiais. Neste sentido as alterações nas estruturas urbanas, resultantes das transformações dialéticas de produção sócio-histórica do espaço, impõem freqüentemente novos desafios às formas de se conceber políticas de proteção do patrimônio urbano.
As dificuldades encontradas na construção de diretrizes e planos para a proteção e reabilitação destes elementos formadores do patrimônio construído tornam-se mais complexas com o aumento das variáveis que devem ser consideradas quando efetuar-se o enquadramento conjuntural desses bens nos planos social, econômico e político. Com este enquadramento vê-se que o patrimônio, em suas estruturas urbanas históricas, submete-se a pressões, muitas vezes em sentido contrário ou difusas. São tensões geradas pelo confronto de interesses e pulsões fundadas em valores distintos atribuídos por diferentes sujeitos a componentes da paisagem urbana. Mas o apaziguamento de conflitos buscado em muitas revitalizações desconsidera estas tensões deslocando-as em busca de cooperações em momentos estratégicos e convenientes. Mais do que estabelecer leis e normas são desafios postos às políticas de preservação do patrimônio a instituição de mecanismos legítimos viabilizando a participação, criando condições e meios que mobilizem os diferentes sujeitos sociais, e a contemplação de bens culturais significativos para as diferentes esferas da sociedade civil.
Para concluir essa trajetória que percorre da origem privada do termo patrimônio, sua expansão para um depósito de memórias e marcos de nações, seu uso pulverizado contemporâneo como propulsor do desenvolvimento local prioritariamente voltado para o mercado do turismo cultural delinearei um outro sentido possível para o patrimônio. Um sentido que aproxima utopia e realidade. Aqui a ponte que facilita tal articulação é a idéia de epistemologia das ausências proposta por Boaventura de Souza Santos (2000) no âmbito de uma epistemologia da visão. As práticas de conhecimento e as praticas sociais não simplesmente reduzem a realidade ao que existe, buscam incluir realidades suprimidas, silenciadas ou marginalizadas. Transpostas aos elementos constituintes dos patrimônios e de seus possíveis usos uma perspectiva curiosa busca ângulos para desestabilizar hierarquias estabelecidas e propor leituras e resgates dos documentos de cultura, também como documentos da barbárie, como elos de sutura e tensão. Os agentes ausentes dos processos contemporâneos de reconversão simbólica e funcional de fragmentos do passado em revitalizações estilizadas para o consumo visual encontram frestas para propostas de intervenção voltadas para construção de redes locais de economia solidária. A legitimidade de tal projeto constrói-se na participação ampla e na resignificação do patrimônio à luz dos direitos econômicos, sociais e culturais. Constituem intervenções tanto utópicas como realistas, o que as diferenciam são a existência ou não de subjetividades engajadas em negociações e projetos pautados em tais valores e em ações visando à reconstrução criativa do patrimônio como bem coletivo. E nessa busca é imprescindível perguntar sempre em que termos são construídos, legitimados e apropriados socialmente o patrimônio cultural das cidades.
Referências Bibliográficas
ARANTES, Otília. (2000) Uma Estratégia Fatal. A Cultura na Gestão das Cidades. In: ARANTES Otília. Et. Alli. A Cidade do Pensamento Único. Petrópolis: Vozes.
BARTHÉLEMY, Jean. The Architectural and Townscape Heritage as a Factor Influencing Trends in Development. (1998) Stockholm, Power of Culture Conference, 30/3 – 2/4, 1998.
GARCIA CANCLINI, Nestor. (1997) Culturas Urbanas de Fin de Siglo: la mirada antropológica. RICS, n 153.
GUTIÉRREZ, Ramón. Direito ao Patrimônio Construído. (1992) In: O Direito à Memória. Patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: Secretaria municipal de Cultura/DPH.
HARVEY, David. Possible Urban Futures. (2000) Megacities Lecture 4.
LE BLANC, François Is Everything Heritage? (1993) ICOMOS Canada Bulletin, Vol.2, No.2.
LOWENTHAL, David. The Heritage Crusade and the Spoils of History. (1998) Cambridge: Cambridge University Press.
SANTOS, Boaventura. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000. (Para um Novo Senso Comum, v.1)
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: Técnica e tempo. Razão e emoção. (1996) São Paulo: Hucitec.
[1] Texto apresentado no 3º Congreso Virtual de Antropología y Arqueología, ciberespacio, octubre de 2002.
[2] Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano, Universidade Federal de Pernambuco-Brasil. c_pellegrino@hotmail.com
[3] Como exemplo podemos citar os casos do Pelourinho em Salvador, do Recife Antigo, de Barcelona, das Docas em Londres, em São Paulo as ações do Movimento Viva São Paulo e da região da Estação da Luz, dentre outros.
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