A aplicação do modelo ritual na análise antropológica.

Autor: Jonatas Dornelles - mestrando em antropologia social - Universidade Federal do Rio Grande do Sul/Brasil.

Contato: jonatasdornelles@terra.com.br http://www.megabaitche.hpg.com.br/jonatas/jonatas.html

Elaborado em: Porto Alegre, agosto de 2002.

O início da formação do pensamento antropológico está marcado pelo estudo dos rituais. Temos, classicamente, uma preocupação dos pesquisadores em investigar os cerimoniais humanos. Eles estão envoltos, diria, em uma aura que mistura curiosidade e surpresa por parte de quem observa. Para quem participa prevalece a naturalização do evento, mesmo ele sendo não-cotidiano. Essa é uma das principais características de um ritual. A sua realização ocorre em um tempo diferente do normal. Muitas vezes o espaço de sua realização também é diferente. A naturalização do ritual está nele ser absorvido pelos indivíduos. Mesmo ele sendo um “momento diferente”, ele é incorporado à vida social e praticado sem uma racionalidade aparente.

Nessa paradoxal relação entre naturalização e excepcionalidade, o ritual se coloca no lugar daquilo que, em última instância, pode ser denominado: linguagem. Como qualquer sistema de comunicação, existe um conjunto de signos que são incorporados pelos indivíduos possibilitando uma descodificação quase que automática. O ritual e o conjunto de símbolos que são acionados comunicam socialmente e fornecem sentido à realidade.

Cabe ao pesquisador social tentar “descobrir” o que está sendo transmitido. Assim como, a forma pela qual a informação é transmitida, em que momento, para quem, o que significa, o impacto social, e assim por diante. Para Peirano o ritual é um momento estereotipado e já recortado pelos nativos. Mas esse é apenas um dos caminhos da análise. No outro caminho, e os exemplos são variados, o recorte é feito pelo pesquisador. Nesse caso, o ritual, além de servir para a sociedade, serve ao pesquisador. O ritual assume o status de categoria de análise da vida social. A sua eficácia está em fornecer um modelo pelo qual o pesquisador irá observar a realidade.

Talvez nos cerimoniais mais "tradicionais" haja uma consciência do nativo de que aquilo em que ele participa é um ritual. Nesses casos podemos falar em recorte nativo da realidade. O início dos estudos antropológicos sobre rituais partiu dessa situação. Os autores clássicos procuraram sistematizar o "fenômeno ritual". O resultado foi a elaboração de modelos os quais geralmente os rituais seguiam. Fazendo uma análise epistemológica, observamos uma aplicação dos modelos sobre a realidade. É um movimento de refluxo. A realidade nos fornece elementos para teorizar, e a teoria nos fornece elementos para expandir a análise da realidade.

Nesse contexto, a utilização do “modelo ritual” torna-se extremamente eficaz contemporaneamente. A partir das características específicas da estrutura dos rituais podemos observar onde eles estão sendo acionados, de que maneira estão sendo utilizados e o que transmitem. Na análise antropológica o modelo ritual tem sido constantemente utilizado. Mais especificamente, veremos como aplicar os conceitos de rito em uma análise antropológica da política. Isso é possível graças ao fato de que na política os rituais cumprem o papel de tornar visível o invisível. Imersos em um campo carregado de elementos simbólicos, os políticos realizam eventos e cerimoniais que podem ser interpretados como se fossem rituais.

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Para Mariza Peirano a análise dos rituais em antropologia fornece várias possibilidades. Primeiramente, ela fornece um certo treinamento ao pesquisador para a análise social dos eventos ordinários. Por serem formalizados e esteriotipados, os rituais são eventos especiais, já “recortados” pelos nativos que põem em relevo o que é usual na sua sociedade. Além disso, se diferenciam dos eventos ordinários por possuírem uma estrutura e sentido coletivos. O pesquisador, “treinado” na análise de rituais, poderá facilmente identificar a estrutura e o significado dos demais eventos sociais. Entretanto a análise sempre deve ser, segundo a autora, relativa.

"Rituais, eventos especiais, eventos comunicativos ou eventos críticos são demarcados em termos etnográficos e sua definição só pode ser relativa - nunca absoluta ou a priori; ao pesquisador cabe apenas a sensibilidade de detectar o que são, e quais são, os eventos especiais para os nativos (sejam “nativos” políticos, o cidadão comum, até cientistas sociais)”. (Peirano, 2002:8-9)

Outra perspectiva da análise ritual está nela sempre relacionar ação social e comunicação. Nesse processo é possível observar de que maneira os indivíduos classificam o mundo e constróem representativamente a realidade em que vivem. “Nesse contexto, ritos continuam sendo a contrapartida das representações, mas muitas vezes analiticamente superiores pela dimensão imponderável, aspecto fundamental da vida em sociedade (Peirano, 2002:10).

Epistemologicamente, autora está “demonstrando a tese de que a pesquisa etnografica é o meio pelo qual a teoria antropológica se desenvolve e se sofistica quando desafia os conceitos estabelecidos pelo senso comum no confronto entre a teoria que o pesquisador leva para o campo e a observação entre os nativos que estuda” (Peirano, 1995:43).

Dawsey (1997) estuda os cortadores de cana do interior paulista. Nesse trabalho o autor mostra o quanto a transformação do indivíduo em “cortador de cana” opera no sentido de um ritual. Essa transformação é denominada pelos próprios operários envolvidos como “cair na cana”. Ela assume a forma de um ritual por vários fatores. Primeiramente por ser recortado pelos próprios nativos. É "uma estória sobre eles que eles contam a si mesmos" (Geertz, 1978:316). Os cortadores de cana interpretam a sua inserção na agroindústria como um deslocamento de tempo e espaço. Essa interpretação assume a forma de dramatização e nesse processo os trabalhadores se representam.

O "cair na cana" é representativo tanto para os trabalhadores diretamente envolvidos - aqueles que se tornam cortadores de cana - como para os que nunca cortaram cana. Esse evento torna-se um marco que delimita o tempo vivido pelos agricultores. Ele aciona um tempo presente - escasso - diferente do passado - farto. Além do deslocamento temporal, está presente um deslocamento espacial que resulta em um processo pelo qual o indivíduo depara-se com a alteridade. No deslocamento geográfico e temporal da pessoa essas variáveis deixam de ser naturais e ela começa a se ver como "outra".

Entretanto, a pessoa vive diversos tempos e espaços concomitantemente. Dawsey, retomando Da Matta e Gennep, fala que o “cair na cana” se coloca como ritual de passagem na sociedade estudada. O que existe é uma imagem de operário cortador de cana e não uma identidade. Isso é devido ao fato que o indivíduo está em um espaço e tempos diferentes, mas momentaneamente. Essa característica fundamental do “cair na cana”, de período de deslocamento, o coloca como sendo um período liminar.

No drama "cair na cana" estudado por Dawsey podemos observar as etapas do modelo de ritual proposto por Gennep. Existe uma condição social de miséria que impulsiona os indivíduos ao trabalho na agroindústria. Estão presentes também as fases de distanciamento e aproximação. Elas são marcadas pelo próprio deslocamento geográfico no caminhão. Existe um comportamento característico do "bóia-fria" quando se desloca no caminhão para a lavoura e um outro quando retorna. O momento de trabalho na lavoura pode ser comparado à fase efetivamente limar. Dawsey fala que nessa fase estão presentes uma série de outros ritos.

A característica fundamental desses ritos está neles significarem a incorporação do indivíduo da sua situação de “bóia-fria”. Enquanto estão fora desse domínio as pessoas têm um discurso quase estigmatizado sobre o “cair na cana”. O comportamento presente nos ritos na lavoura demonstra uma naturalização com a situação de operário cortador de cana. Entre outras coisas, Dawsey cita que os operários “competem” para ver quem corta mais cana e estigmatizam os que cortam menos. Ocorre uma inversão de valores.

Muller (2000) estuda o ritual xamanístico de iniciação realizado pelos Asuriní do Xingu. Ela o analisa dentro de um sistema amplo de performances culturais. Nesse sentido, o rito está localizado em um processo de socialização onde são acionados diversos meios de comunicação, tais como música, dança, artes visuais, representação cênica e aspectos lingüísticos (narrativa mítica ou outras expressões verbais). A autora, citando Turner, coloca que no rito a cultura não somente se expressa, mas também dialoga sobre sua condição. Não é uma comunicação unidirecional, mas sim reflexiva.

Para Muller o momento do ritual serve para reelaborar os valores e tradições culturais em um presente com vista a um futuro. Nesse processo, a sociedade se coloca historicamente. A autora cita a importância do ritual como unidade de observação e experiência concreta. Ele possui tempo de ocorrência, atores, linguagem, espaço de atuação e ainda, é possível ser observado por quem não participa dele. A performance expressiva do ritual reflete a sociedade e a comenta  como se fosse um metacomentário. 

No caso específico do ritual xamanístico de iniciação realizado pelos Asuriní do Xingu, a autora evidencia a transmissão de conhecimento e a reprodução da cultura. Ele evidencia um processo de transformação e continuidade culturais. Também um processo de produção de sentido que expressa a experiência vivida. Basicamente, Muller está considerando os rituais como “estruturas de experiência que integram aspectos cognitivos, afetivos e volitivos” (Muller, 2000:189).

Para Kertzer o modelo analítico dos rituais serve para estudar a sociedade contemporânea. Em especial ele serve para estudar a vida política. Kertzer utiliza como exemplo o fato da transformação do PCI (Partido Comunista Italiano) em PDS (Partido Democrático da Esquerda) como um ritual. Para o autor, o ritual deve ser compreendido “como um comportamento simbólico, socialmente padronizado e repetitivo” com a finalidade de definir, difundir e revitalizar os símbolos (Kertzer, 2001:17).

A teoria de Kertzer nos faz sugerir que os rituais na política têm uma função estática e uma dinâmica. A função estática está na manutenção do status quo. Através desse processo os “donos do poder” são legitimados e o sistema político é reforçado, propagado. Como elemento dinâmico, os rituais servem para dar conta dos movimentos de mudança política. Kertzer cita quatro características do ritual para ser compreendido na política: “o poder de representar grupos políticos; de fornecer legitimidade; de construir solidariedade; e de modelar as percepções da realidade política das pessoas” (Kertzer, 2001:18).

O autor parte do pressuposto que os partidos existem a partir de representações simbólicas. Eles são compreendidos pelos indivíduos na associação com símbolos. Dessa forma, o ritual desempenha grande importância, pois “os ritos são fundamentais para o processo de associação de indivíduos com entidades simbólicas, como partidos, religiões ou nações” (Kertzer, 2001:18). Durante o ritual político os indivíduos são colocados diante dos mitos fundadores do partido. Também é possível demarcar as fronteiras entre o grupo de dentro e de fora, os partidários e os outros. Fazem parte dessa esfera os rituais que envolvem cantos do partido, bandeiras, distinção entre os históricos fundadores e “inimigos” políticos. Utilizados nesse sentido, e com essa série de símbolos, os rituais cumprem a função de representar o partido.

Outra função dos rituais está neles proporcionarem legitimidade e mistificação. Eles legitimam os seus patrocinadores e participantes. A performance ritual opera de forma que, “ao manipular e reivindicar a posse dos símbolos sagrados, os donos do poder manifestam seus poderes especiais e legitimam suas reivindicações de autoridade. Ao mesmo tempo, formas rituais – de inauguração a procissões imperiais – estruturam o contato entre os donos do poder e as massas” (Kertzer, 2001:19). Tamanha a força que o ritual tem como legitimador do poder, que ele pode ser utilizado como “palco” de briga pelo poder, ou então como elemento de disputa entre os sucessores do poder.

Uma terceira função presente nos rituais na política está neles proporcionarem solidariedade e ambigüidade. Kertzer está se referindo, por exemplo, aos comícios organizados pelos partidos. Eles proporcionam união solidária e identificação entre os seus participantes: simpatizantes e militantes. Entretanto, o sentido desse ritual para os participantes pode variar. Enquanto alguns vêem o evento como uma forma de combater o capitalismo, outros o aproximam a uma forma de entretenimento (Kertzer, 2001:20). Na opinião do autor, o mais simples e poderoso exemplo de dispositivo ritual está no emprego da expressão “companheiro” feito pelos comunistas. A expressão é utilizada em vários momentos: desde a comunicação em menor escala feita por militantes, até aos discursos políticos de palanque destinado à multidões.

Um quarto e último elemento presente nos rituais políticos, segundo Kertzer, está na sua construção de realidade política. Dessa maneira, os “rituais enfatizam certos eventos e interpretações e ocultam outros, levando-nos a focalizar nossa atenção em algumas coisas e a ignorar outras” (Kertzer, 2001:22). Ainda nessa perspectiva Kertzer cita: “na batalha por símbolos, o ritual é uma arma potente. O objetivo é fixar os símbolos e estabelecer a definição simbólica da realidade e, fazendo isso, equiparar seu próprio grupo político com o bem e o outro com o mal” (Kertzer, 2001:23).

Para Kertzer os rituais são um poderoso instrumento de influência no processo político. Em períodos de transição política ele é melhor percebido, no entanto pode ser acionado a qualquer instante. O autor cita que a tradição liberal tende a identificar os rituais na política como fenômenos “irracionais”, de multidão. Na tradição intelectual marxista ele é visto como um elemento envolvido na criação de uma falsa consciência. De qualquer forma, a opinião de Kertzer é de que o ritual na política:

"Proporciona um meio de tornar palpável aquilo que, de outro modo, não pode ser visto. Fornece um mecanismo potente para produzir legitimidade e solidariedade e ajuda-nos a construir a realidade política do que, de outro modo, apareceria como o caos". (Kertzer, 2001:35)

As considerações do autor nos proporcionam um importante esquema de análise dos rituais na política. Dessa forma, eles devem ser analisados a partir de cinco variáveis. A primeira variável se refere ao momento da ocorrência do ritual. Ele pode estar sendo acionado em um momento de transição política, ou então, em um momento de consolidação política. A segunda variável se refere à associação com símbolos. A partir dela é possível discernir os elementos que estão operando na associação simbólica na política. A terceira variável possibilita verificar quais são os valores propagados com o intuito da produção de legitimidade e mistificação. A quarta variável se refere aos rituais na política como produtores de solidariedade. Nessa perspectiva é possível observar quais são os elementos criados e acionados para produzir e reforçar a coesão social entre os indivíduos. Enfim, temos a quinta variável que está relacionada com a produção da realidade política. A sua amplitude resulta de um pouco de cada uma das demais variáveis. Segundo ela podemos perceber de que maneira a sociedade está sendo compreendida politicamente (por partidos políticos, por exemplo) e, logicamente, divulgada e apresentada para os indivíduos.

Chaves estudou a Marcha Nacional dos Sem-terra como um ritual político. Esse estudo nos serve como mais um modelo para análise de rituais na vida política.

"A eficácia da Marcha Nacional pode ser melhor compreendida se tomada como uma ação coletiva expressiva, cuja importância teve por suposto a capacidade de comunicar os fundamentos ideológicos e os propósitos políticos do MST e, ao evocar referências simbólicas consagradas, angariar-lhe a conformidade e solidariedade da sociedade mais abrangente. Delimitada no tempo e no espaço, a Marcha demarcou uma esfera específica no curso da vida social, podendo ser considerada um ritual de longa duração. Como ritual, é possível toma-la como uma forma privilegiada de interpretação dos agentes que a promoveram e do público que conferiu legitimidade à ação social posta em curso." (2002:135)

A autora exalta a importância do tipo de análise feita a partir de rituais. Ela incide sobre o fato de que os rituais são, ao mesmo tempo, instâncias condensadas de representação da a experiência social e promotores da sua dinamização. Através da análise ritual também é possível identificar formas singulares e universais de ação social.

A associação entre ritual e política está para Moacir Palmeira presente na idéia de “tempo da política”. O autor tomou contato com ela em seu trabalho de campo em Pernambuco. Era um período eleitoral e as pessoas se referiam a ele com essa expressão. Não era um fato circunstancial, já que no Rio Grande do Sul Beatriz Herédia, cita Palmeira, encontrou o mesmo tipo de associação.

Basicamente, o tempo da política se refere ao período eleitoral. Ele envolve candidatos, eleitores e população em um processo de transformação do cotidiano (Palmeira, 2002:171). Nesse período de “conflito autorizado” as pessoas transitam em posições sociais e a sociedade exibe suas divisões. Os rituais proliferam nesse contexto. A importância de se estudar um determinado tempo, como o tempo da política está nele representar um “recorte” social. Todos os tempos, incluindo o tempo da safra, da greve, das festas, etc. são construções sociais. Palmeira propõe ainda uma superação da idéia de espaço pela de tempo:

"A sociedade não é vista dividida em partes, ou em 'esferas' ou 'espaços', como se tornou mais adequado enxergá-la em nosso tempo acadêmico contemporâneo, mas em tempos. Embora haja afirmações, como a de um poeta popular, de que ‘o tempo é de tudo/sem tempo nada se faz’, essa é mais uma virtualidade do que outra coisa: em princípio tudo é ‘temporalizável’, mas só é ‘temporalizado’ (isto é, transformado em tempo, como o tempo da política, o tempo das festas, etc.) o que é considerado socialmente relevante pela coletividade em determinado momento.” (Palmeira, 2002:175)

Essa forma de considerar a realidade, formada de tempos e não de espaços, nos amplia a possibilidade de análise social. Isso se deve ao fato de que as atividades sociais não seguem uma lógica cartesiana de tempo e espaço. Em um determinado espaço poderá estar ocorrendo um série de motivações sociais. A título de exemplo, cabe questionar se em um comício só está se fazendo política ou também é um momento de sociabilidade e lazer entre os militantes. De outra forma, devemos questionar se em um espaço público de lazer ou econômico (feira) não está presente também a disputa política.

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No dia 6 de agosto desse ano o Partido dos Trabalhadores do Rio Grande do Sul fez o lançamento oficial do programa partidário para a disputa eleitoral ao governo do estado. Ele ocorreu ao meio dia, no hotel City Hotel, localizado próximo ao mercado público da cidade de Porto Alegre. O evento teve a duração em torno de uma hora e meia e contou com os discursos dos candidatos ao executivo e do atual governador. Estiveram presentes as lideranças do partido, candidatos ao legislativo, organizadores de campanhas, militantes e simpatizantes do partido. O que menos tinha era “público em geral”, embora o evento ser destinado ao lançamento “público” do programa e marcar o início da campanha.

Estavam presentes pessoas que, dado o grau de envolvimento com o partido, logicamente não estavam interessadas em obter novas informações sobre o programa. Para militantes do partido, possivelmente o conteúdo do programa e dos discursos dos líderes já seja muito familiar. Ali na “platéia” podia-se ouvir inclusive algumas pessoas antecipando frases dos discursos dos líderes. O militante desconhecido que estava sentado ao meu lado inclusive quase pegou no sono durante um dos discursos. Também eram nítidas as conversas paralelas entre a platéia durante os discursos. Se o conteúdo da informação comunicada no evento se supõe que já era de conhecimento dos participantes e esses mostravam, inclusive, momentos de desatenção, o motivo da participação deve se dar em um nível simbólico.

Para compreender o evento deve-se interpretar o lançamento da campanha como se fosse um ritual. Estão presentes nele os elementos que nos possibilitam interpretá-lo dessa forma. Como um ritual da política, podemos identificar nele as variáveis propostas por Kertzer em seu modelo analítico de rituais, uma tentativa de estruturação das posições sociais e uma representação da experiência social, que são proposições básicas de Leach e Chaves. Em vista do momento em que ocorre, o que ele marca, o que ele prenuncia, também apresenta elementos de um rito de passagem segundo o modelo de Gennep. Podemos observar nesse evento um ritual político que representa o partido, legitima a sua ideologia, solidariza seus associados e constrói uma realidade. Da mesma forma que uma sucessão de fases internas a ele de separação, limiaridade e agregação. Existe um ponto crítico no evento, em sua fase limiar. Além disso, ele representa uma passagem a um momento e espaço diferentes. À um tempo e espaço diferentes do normal, do cotidiano. Podemos denomina-lo como tempo da política, da mesma forma que Palmeira se refere ao período das eleições (Palmeira, 2002).

A maneira como ocorreu o lançamento do programa partidário mostra o quanto ele é estruturado no formato de um ritual. No momento em que ele ocorreu estava sendo feita uma associação do partido com seus princípios ideológicos. Estava se representando. Serviu também para legitimar a suas propostas, a sua campanha política e a sua inserção nas eleições, no “tempo da política”. É por isso que se denomina “lançamento público do programa”. Ele aspira a legitimação tanto interna, por parte dos militantes, quanto externa, do “povo” gaúcho, o qual várias vezes foi referido.

As pessoas ali presentes, mais que meros interessados no conteúdo do programa, estavam se sociabilizando. Naquele momento elas tinham uma unidade e uma identidade comuns. As pessoas participantes estavam “comunicando” que fazem parte de um grupo. Elas são “companheiros” e “companheiras”. Dessa forma marcam suas posições para fora do partido, quando socialmente assumem a posição de “petistas”, e mesmo para dentro, quando se inserem em uma estrutura partidária burocrática e hierárquica. Não é de graça que existia uma ordem no pronunciamento dos oradores. Fala por último aquele que é mais importante no momento.

Nesse ritual também podemos observar uma “construção da realidade”. Todos os discursos contribuíram nesse sentido. Se falou em “inimigos políticos”, situação atual, projetos, etc. Além desses quatro elementos, o ritual também marca, através do lançamento do programa, o início da campanha. Ele faz a passagem a um tempo da política. Um tempo da política marcado por uma rotina diferente da cotidiana.

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Essa investigação tratou de explorar de que maneira a “estrutura ritual” torna eficaz a análise da realidade social. Dialogando com as concepções clássicas de rito podemos estabelecer parâmetros para a constituição de um modelo ritual. Basicamente, temos no rito a idéia de uma linguagem social carregada de elementos simbólicos. Também temos de considera-los como momentos que marcam mudanças na vida social. E ainda, como um momento peculiar onde há desconexão com o tempo e o espaço cotidianos.

Na tentativa de construir essa estrutura ritual de análise passamos por concepções as quais, antes de significarem superação do pensamento antropológico, fornecem pontos importantes para esse fim. Temos em Durkheim e Radcliffe-Brown a idéia de rito como funcional e priorizando o social sobre o individual. Em Leach, uma eficácia ritual junto à comunicação social, especialmente mostrando o status individual. Gennep coloca o ritual como um delimitador do espaço e tempo sociais. Com Peirano, a idéia de recorte nativo, que podemos avançar e complementar com o “recorte antropológico”. Nesse caso,  no sentido de aplicação da teoria na realidade observada. Sentido contrário – refluxo – à utilização da etnografia em favor da elaboração da teoria. Porém, ambos os caminhos fazem parte do processo de conhecimento da realidade.

Os trabalhos citados de Dawsey, Muller, Kertzer e Chaves nos servem de exemplo de aplicação da estrutura ritual na análise social. Com Dawsey observamos a importância do deslocamento temporal e espacial. Com Muller e Chaves, respectivamente, a capacidade de organização e representação da realidade proporcionada pelos ritos. O trabalho de Kertzer, aplicando explicitamente a idéia de ritual à análise antropológica da política, sistematiza os rituais políticos a partir de quatro leis: representação, legitimação, associação e construção da realidade. Nesse caso, podemos perceber em que momento cada um deles está sendo acionado.

A etnografia realizada sobre o "lançamento de campanha" compõem uma tentativa de exercitar a aplicação da estrutura ritual na análise de fenômenos sociais. Os elementos propostos pelos autores na caracterização do rito foram aplicados na observação. Percebemos assim, a potencialidade proporcionada à análise antropológica de uma maneira geral. Mais especificamente, à realização de uma análise antropológica da política.

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