O Sacrifício entre os Lusitanos

Mª João Santos Arez

Sumário:

O presente artigo tem como objectivo traçar a panorâmica dos problemas inerentes ao estudo do sacrifício - humano e animal - entre os Lusitanos na Hispânia Romana, fundamental para a caracterização do âmbito religioso destas comunidades. Os dados que aqui apresentamos dizem respeito sobretudo ao território actualmente português, designadamente ao núcleo lusitano da Beira Interior e Beira Alta (Distrito de Castelo Branco e Distrito da Guarda), integrado na Província da Lusitânia e ao núcleo galaico da Beira Litoral, correspondente à parte meridional da Gallaecia Romana. O pouco que se sabe da estrutura do rito sacrificial "Lusitano", tem servido como base para argumentar as possíveis características "indo-europeias" da religiosidade paleo-hispânica, o que em nossa opinião, não é totalmente suportado pelo registo material e obriga a uma certa desconstrução da rígida tripartição proposta por Georges Dúmezil. O objectivo deste trabalho consiste, portanto, na sistematização e análise dos dados disponíveis e das dificuldades que lhes são inerentes, como ponto de partida para qualquer estudo que se pretenda fazer neste âmbito.

... do ut te des ...

Introdução

O sacrifício, a oferenda, constituem em si a expressão máxima da dialéctica da dádiva e contra-dádiva que subjaz à relação entre homens e deuses, na perpétua luta contra as forças do acaso. Entre os Lusitanos e os Galaicos[1][LC1] é-nos apontada a prática de dois tipos distintos de sacrifício: o sacrifício propiciatório no contexto ritual guerreiro, envolvendo a imolação de seres humanos e equídeos e o sacrifício propiciatório/purificador no contexto ritual agrário, envolvendo um conjunto específico de vítimas animais.

Conhecemos o primeiro através dos testemunhos escritos de Estrabão, de Tito Lívio e de Plutarco, sendo-nos o segundo transmitido pelas inscrições rupestres em língua lusitana do Cabeço das Fráguas (Sabugal, Portugal) e de Lamas de Moledo (Castro Daire, Portugal), pela ara de Marecos (Penafiel, Portugal) e pelos ex-votos em bronze de Aguirre (Instituto de Valencia de Don Juan, España) e de Castelo de Moreira (Celorico de Basto, Portugal). Diferentes tipos de fontes, cada uma das quais colocando um diferente tipo de problema.

De um modo geral, ambos os tipos de sacrifício têm sido sempre considerados, pelos autores que sobre o assunto se debruçam, numa perspectiva de análise comparada aos ritos védico e romano, com base na existência de uma tradição comum indo-europeia. Assim, o primeiro tipo de sacrifício é geralmente aproximado ao Ashsvamedha da Índia védica e ao rito romano do October Equus[2]; enquanto o segundo é habitualmente relacionado com as cerimónias da sautramani védica e das suovetaurilia romanas.

A análise deste segundo tipo de sacrifício tem sido sempre direccionada na tentativa de identificação da hierarquia trifuncional das vítimas - intimamente ligada à função das divindades a que são dedicadas - presente no ritual védico, geralmente considerado como arquétipo. Esta análise, numa perspectiva da ideologia trifuncional indo-europeia, encontra porém, sérias dificuldades de fundo (nomeadamente na própria cerimónia védica[3]): enquanto na Índia o conjunto de vítimas bode-carneiro-touro é oferecido a três divindades diferentes, em Roma é a Marte que cabem todas as oferendas e nas trytties gregas - outro rito sacrificial de idêntico contexto -, as mesmas vítimas são oferecidas indiscriminadamente a heróis divinizados e divindades salutíferas/ fecundantes. Situação semelhante, ou seja, a não existência de uma hierarquia sacrificial que articule vítima/divindade, parece-nos ser transmitida pelas poucas evidências do rito lusitano.

Embora se trate, de facto, de uma problemática de difícil abordagem - sobretudo pela fragmentariedade dos dados e os problemas concretos que cada um deles levanta - não podemos concordar, porém, com Javier de Hoz, para quem "el estudio de las religiones basado en fuentes fundamentalmente arqueológicas es inevitablemente una labor fracassada" (1984: 31).

1. O sacrifício no contexto ritual guerreiro

- ashvamedha, purusamedha, october equus e o rito lusitano -

Este tipo de contexto ritual, envolvendo sacrificios humanos e de equídeos, encontra-se atestado entre os Lusitanos por três testemunhos distintos, respectivamente de Tito Lívio, de Plutarco e de Estrabão. O primeiro e também o mais antigo, refere-se ao argumento de defesa de S. Sempronio Galba que, responsabilizado pelo massacre de um grupo de Lusitanos, afirma ter agido em legítima defesa, uma vez que fora informado que estes haviam imolado homens e cavalos segundo o seu rito, indício seguro de que se preparavam para a guerra (Tito Lívio, Per., 49)[4]. A segunda informação de que dispomos, procedente de Plutarco, é a referência de que P. Licinio Crasso, procônsul na Hispania entre 97 e 93 a.C., sabendo que os Bletonenses sacrificavam homens aos seus deuses - prática que fora proibida nessa mesma época em Roma -, mandou chamar os seus chefes para os punir (Cuestión Romana 83, Garcia Quintela, 1992: 341 e 1999: 229).

Por fim, temos o testemunho de Estrabão, o mais importante e o mais completo de todos os três. Na sequência de uma passagem quase inteiramente dedicada à descrição das tácticas, armamento e usos dos guerreiros lusitanos, o geógrafo refere que "os lusitanos oferecem sacrificios e observam as entranhas sem extirpá-las. Também observam as veias do peito e adivinham palpando-as. Predizem também através das entranhas dos prisioneiros de guerra, que são cobertos com «sagoi»; quando o «hieroskópoi» golpeia a vítima abaixo dos órgãos vitais, predizem primeiro segundo a forma como cai o corpo. Cortam aos prisioneiros as mãos direitas e oferecem-nas aos deuses" (Geog. III, 3, 6). No passo seguinte e após considerações de diferente natureza, a temática religiosa é retomada: "a Ares sacrificam um bode e também prisioneiros e cavalos; fazem também hecatombes de cada espécie de vítima ao modo grego, como diz Píndaro, imolam toda uma centena" (Geog. III, 3, 7). O texto de Estrabão parece assim individualizar três tipos distintos de ritos sacrificiais: o sacrificio humano divinatório, o sacrifício conjunto de bode-homem-cavalo oferecido ao deus da guerra indígena e as "hecatombes" de vítimas animais. Essa individualização parece, além disso, corroborada de uma outra forma no próprio texto: enquanto o primeiro passo se refere explicitamente aos Lusitanos, as acções descritas no segundo reportam-se à designação genérica de "montanheses".

Produto da subjectividade e dos interesses de quem escreve, as fontes clássicas têm necessariamente de ser encaradas com toda a cautela. O grau de fiabilidade das informações que nos transmitem depende dualmente dos objectivos que o seu autor pretendera atingir e da nossa capacidade crítica de análise. No presente caso, porém, a prática do sacrifício humano e a imolação conjunta de um bode, homens e cavalos é referida entre os Lusitanos por três fontes distintas e independentes, o que à partida parece apontar para a fiabilidade dos relatos.

Temos no primeiro caso, um argumento de defesa pessoal, em resposta a uma acusação: alertado pela celebração do rito lusitano, Galba decide prevenir o ataque, atacando primeiro. Tito Lívio constitui o único autor que recolhe a justificação de Galba, não existindo qualquer meio de comprovar a sua veracidade, todavia, e independentemente do verdadeiro motivo de ataque, o que aqui nos interessa é a referência de Galba a um tipo específico de ritual, por sua vez, inteiramente corroborado pelo posterior relato de Estrabão. A segunda referência parece, por seu lado, ser meramente ocasional, apenas se assinalando a prática do sacrifício humano (sem associação do cavalo, note-se) entre os Bletonenses, devido ao carácter infractor de que se revestia perante a lei romana. O testemunho de Estrabão, pelo seu carácter de "compilação etnográfica" merece, porém, uma análise um pouco mais detalhada.

Na elaboração da Geographiká, Estrabão recorreu sobretudo aos testemunhos de Poseidónio, Políbio e Asclepíades de Myrleia. Não estamos, portanto, diante de informações em primeira mão, o que à partida pode colocar dúvidas quanto à fiabilidade do relato[5]. Segundo Garcia Quintela (1999: 235-237), os passos descritos referir-se-ão ao resumo de Poseidónio recolhido em Asclepíades ou Políbio, fontes pouco ou nada contaminadas pelo conhecimento de outros ritos análogos não hispânicos, o que abonará em favor da credibilidade das informações transmitidas.

Em síntese, todas estas três fontes parecem assim, apontar para a existência entre os Lusitanos de dois tipos distintos de sacrificio: o sacrificio mântico não directamente relacionado com a guerra (Estrabão e possivelmente Plutarco) e o sacrifício do conjunto bode-homem-cavalo, num contexto claramente guerreiro (Tito Lívio e Estrabão), os quais encontram paralelo em realidades rituais indo-europeias aparentemente análogas.

Os dois tipos de rito sacrificial, ou se quisermos, os dois tipos de sacrifício humano - já que parece ser aí que reside toda a questão -, que aqui individualizamos têm, no entanto, sido tomados como um todo homogéneo e apenas nessa perspectiva analisados. Garcia Quintela, não considerando o plano de clivagem existente entre os dois passos do texto estraboniano, toma-os como a descrição de um mesmo e único ritual, com base no qual afirma que "la conexión entre el sacrificio adivinatório y una divinidad guerrera en el ámbito indoeuropeo occidental sólo se lee en Estrabón refiriendose a los Lusitanos"(1991:32).

Ora, o sacrificio humano e a sua dimensão divinatória encontra-se relativamente bem documentado entre Gauleses, Bretões, Gálatas e Cimbros. Note-se, porém, que em nenhum dos casos é referida a associação do sacrifício bode-homem-cavalo, do mesmo modo que, tal como no relato de Estrabão, em nenhum caso se refere a sua vinculação a uma divindade guerreira. Em compensação, o rito sacrificial compreendendo o conjunto bode-homem-cavalo, estreitamente ligado a uma divindade guerreira, parece encontrar um contexto ritual correspondente apenas entre os Citas[6], contexto esse do qual está por sua vez ausente qualquer dimensão divinatória. Ambos os ritos parecem assim, ser mutuamente exclusivos e inserir-se em contextos rituais diferentes. Por outro lado, a associação homem-cavalo apenas parece estar presente no rito lusitano e no rito cita, uma vez que entre os povos célticos na generalidade[7], na Índia védica, em Roma e na Grécia são práticas mutuamente exclusivas.

A pervivência do sacrifício humano na Roma antiga é assinalada pela sua proibição em 97 a.C. durante o consulado de L. Licinio Crasso, pela sua reabilitação pontual em 46 a.C. ordenada por César, rastreando-se ainda possíveis reminiscências da sua prática na velatio do general - símbolo de como está disposto a morrer pela pátria[8] - durante a cerimónia da devotio militar (Quintela 1992: 342-343). Um ponto, no entanto, poderá indiciar a primitiva associação do sacrifício humano ao sacrifício do cavalo de Outubro: em 46 a.C. César salda uma contenda entre dois homens condenando ambos ao sacrificío. Dion Cássio (XLIII 24, 2-4) não precisa o ritual, mas refere que este foi realizado no campo de Marte, sendo as cabeças das vítimas levadas para a Regia, antiga residência do rei e sede da República. O October Equus, por sua vez, realizado nos idos de Outubro, consistia no sacrifício de um cavalo de batalha consagrado a Marte: o rito tinha lugar no campo de Marte, após o que a cabeça decepada era transportada para a Regia, onde o sangue ainda não coagulado, devia ser derramado sobre o fogo (Dúmezil, 1974: 237).

Também na Índia, o sacrifício humano - purusamedha - se encontra dissociado do sacrifício do cavalo, o ashvamedha. Neste ritual, o corpo do cavalo[9], é porém, dividido em três partes, consagradas individualmente por três esposas do rei (a rainha, a favorita e a rejeitada), a cada qual correspondendo uma vítima secundária (idem: 236) No entanto, quer o purusamedha quer o ashvamedha, encontram-se intimamente ligados à consagração do rei e à simbólica do seu poder guerreiro, contexto que também parece estar presente no October Equus e, por extensão, no sacrifício humano ordenado por César. Todavia, a fragmentariedade dos dados não permite equacionar com segurança ambos os tipos de sacrifício, da mesma forma que não existem indícios seguros que permitam extrapolar a simbólica real aqui presente para o contexto ritual lusitano[10].

Atendendo à referência de Diodoro sobre a raridade do sacrifício humano entre os Gauleses, poder-se-á supôr o mesmo acontecer no contexto peninsular, encontrando-se intimamente ligado a situações críticas de guerra, doença ou carestia. No entanto, o que parece ser aqui importante assinalar, é a particularidade do rito lusitano, expressa na associação sacrificial homem-cavalo, a sua evidente conotação guerreira e a sua distinção relativamente ao sacrifício humano divinatório. Não só o próprio texto de Estrabão parece tratar sacrificio humano divinatório e sacrifício bode- homem-cavalo, como ritos autónomos, como também a aproximação comparada a outras realidades rituais indo-europeias parece corroborar, como vimos, essa mesma distinção.

2. O Sacrifício no contexto ritual agrário:

- sautramani, suovetaurilia e o rito lusitano -

Admite-se geralmente a prática de um rito sacrificial análogo à sautramani védica e às suovetaurilia romanas na Lusitânia com base em cinco testemunhos diferentes: as inscrições em língua lusitana do Cabeço das Fráguas (Sabugal) e de Lamas de Moledo (Castro Daire), a ara de Marecos (Penafiel) e os dois ex-votos em bronze de Aguirre e de Castelo Moreira (Celorico de Basto). Esta identificação revela-se, porém, algo problemática, sobretudo no que toca às fontes epigráficas que, se parecem apontar para um ritual inspirado numa tradição indo-europeia comum, destacam sobretudo as particularidades dos respectivos contextos rituais - especialmente no que toca às divindades envolvidas.

Tanto a sautramani como as suovetaurilia, envolvem o mesmo grupo de vítimas - bode/porco, carneiro e touro - e articulam-se num mesmo contexto simbólico ligado à regeneração e propiciação de campos e gados, sob a tutela de um deus guerreiro/fecundador, respectivamente, Indra e Marte. Porém, enquanto no rito védico as vítimas - bode, carneiro e touro - são oferecidas, por ordem de importância, aos deuses gémeos Açvin, à deusa Saravasti e a Indra (respectivamente da 3ª e 2ª função, na perspectiva dumeziliana); no ritual romano, é apenas a Marte que se destinam as oferendas - porco, carneiro e touro. Se, por sua vez, aproximarmos as trytties gregas, observamos que o mesmo grupo de vítimas é sacrificado indistintamente a heróis divinizados como Hércules, e a divindades salutíferas e fecundantes (Tabanera, 1965: 268-271). Na própria Roma, é notória a presença das mesmas vítimas em cerimónias como as ambarualia e as lustratio agri (Dúmezil, 1974: 241-250), de forte conotação agrária e ligadas também a Marte. Ou seja, o que daqui se parece poder concluir é a íntima ligação entre este grupo específico de vítimas e um tipo concreto de rituais propiciatórios, independentemente dos atributos das divindades a quem são dirigidos[11]. Parece ser esse também o caso do rito lusitano.

2.1. A inscrição rupestre do Cabeço das Fráguas (Sabugal, Portugal)

A primeira referência conhecida a esta inscrição figura nas Memórias Paroquiais do séc. XVIII, em que o pároco de Pousafoles do Bispo menciona existir "em todo o cume" do Cabeço das Fráguas "uma pequena planície, e uma lage virada ao Nascente com uns caracteres que se não deixam conhecer" (Curado, 1989:350). É, contudo, a partir da publicação em 1959, de Adriano Vasco Rodrigues, que esta inscrição conhecerá o interesse da comunidade científica, tendo desde então, sido objecto de aturados estudos linguísticos e etimológicos[12]. A lage encontra-se disposta ao nível do solo, no cume do Cabeço das Fráguas (fig.1), maciço granítico com 1015 m de altitude, a c. de 15 km a sul da Guarda. Apresenta o canto inferior direito mutilado, afectando a leitura da 1.6 e da l.7, sendo no entanto possível, como chamou a atenção F. Curado (1989: 350), já existir a falha originalmente, conforme parece apontar a inclinação oblíqua da 6ª linha, pelo que faltaria assim, apenas o final da l.7 (fig.2). As letras, de ductus grosseiro e irregular, encontram-se profundamente gravadas, não oferecendo quaisquer dificuldades de leitura, à excepção da 3ª letra de LAEBO, que Untermann (1997) recentemente propôs corrigir-se para LABBO.

OILAM . TREBOPALA ./ INDI . PORCOM . LAE(uel B)BO ./ COMAIAM . ICCONA . LOIM/INNA . OILAM . VSSEAM ./ TREBARVNE . INDI . TAVROM./ IFADEM [...?]/ REVE . TRE [...]

Trad.: "A Trebopala uma ovelha e a Laebo um porco, a Iccona Loiminna uma vaca (vitela?), a Trebaruna uma ovelha de um ano(?) e a Reva Tre-(?) um touro de cobrição"

Não nos interessa aqui debruçarmo-nos sobre o estudo linguístico e etimológico dos vários componentes do texto epigráfico, mas sim analisar a presença do grupo de vítimas da suovetaurilia romana - oilam, porcom, taurom -, e a pertinência da sua correlação com as cinco divindades mencionadas: Trebopala, Laebo, Iccona Loiminna, Trebaruna e Reva. A Laebo (uel Labbo) é oferecido um porco, a Trebopala e a Trebaruna uma ovelha, a Iccona Loiminna um animal que podemos talvez identificar com uma vaca[13] e finalmente, é Reva quem recebe a oferenda maior, o touro semental.

Regra geral, consideram-se todos os teónimos em dativo. No entanto, se isso se pode aplicar a Laebo - partindo do principio de que se trata de facto de um tema em -o-, não invalidando, porém, tratar-se de um nominativo indígena presente em -bho -, dificilmente se aplica em relação a Trebopala e Iccona Loiminna, ambos temas em -a que deveriam fazer o dativo em -ae/-e, á semelhança de Trebaruna e Reva. Uma solução poderia passar por considerarmos os primeiros três teónimos no nominativo e os dois últimos no dativo, articulados assim, em dois blocos distintos, possivelmente divindades menores/ divindades supremas[14]. Todavia e para efeito prático, nesta primeira abordagem, consideraremos apenas a etimologia dos teónimos em si.

Para Trebopala é comummente aceite o composto treb- e -pala. O radical treb-, amplamente atestado nas línguas célticas, não coloca problemas quanto ao seu sentido de "povo, tribo"; já a voz -pala é mais difícil de definir. Uma das propostas é a sua aproximação à Víspala védica e aos Pales romanos, ambos vinculados à protecção dos rebanhos (Dúmezil, 1958: 80 e Witczak, 1999: 66). A este propósito, Patrício Curado (1989: 250) chama a atenção para o facto de em Trás-os-Montes e no Gerês (Portugal), "pala" manter o significado de "empenho, protecção". Trebopala encerraria, assim, o possível sentido de "protectora da tribo", com eventual conotação agrária.

Laebo encontra-se unicamente representado no Cabeço das Fráguas - com um total de quatro dedicatórias[15] -, tratando-se ao que tudo indica de uma divindade tópica. A sua análise etimológica apresenta, contudo, grandes dificuldades[16]. Recentemente, Witczak (1999: 68-69) propôs considerar-se Laebo no dativo do plural, por aproximação a formas como o gaulês matrebo, que surje em vez de matribus. Segundo esta interpretação poder-se-ia supôr em Laebo uma derivação de Lahebo[17], possivelmente equivalente a Laribus. Esta proposta choca, porém, com a ocorrência da terminação -po em todas as outras dedicatórias conhecidas, a menos que se considere a evoluçãp b>p, em testemunhos que são decerto posteriores. O presente estado de conhecimentos não permite assim, avançar nada de minimamente concreto relativo a esta divindade.

Iccona Loiminna corresponderá a um teónimo seguido de epíteto. O teónimo em si parece corresponder-se ao gaulês Epona[18] (Gil, 1980; Maggi, 1983: 8 e Witczak, 1999: 66-67). A possível derivação do epíteto de *louksmena, "brilhante" e a sua ocorrência numa das inscrições em língua lusitana de Arroyo de la Luz (Masdeu, 1800)[19], poderia eventualmente sugerir estarmos ante uma divindade de 2ª função. O difícil sentido etimológico, o facto desta inscrição constituir a sua única referência e a impossibilidade de definir ao certo o carácter da sua oferenda não permitem, todavia, tecer quaisquer outras considerações.

Relativamente a Trebaruna, divindade amplamente atestada no núcleo lusitano, estamos ante uma forma que comporta igualmente o radical treb-, seguido de aruna. Blanca Prósper (1994) propõe para -aruna, a relação com o gót. runs < *runós, "corrente, fonte", assinalando a existência de diversos hidrónimos com esta raiz[20] e a possível relação etimológica com o celta Arawn, rei de Annwfn, do muito profundo (*araunos). Buá Carballo, considera, por outro lado, a derivação *Trebaro-, com paralelo no a.irl. trebar, "sábio" (2000: 73-74). Atendendo a esta conjugação etimológica, somos tentados a ver em Trebaruna, o possível sentido de "segredo do povo", "a sabedoria do povo", integrável, portanto, no âmbito de uma eventual divindade de 1ª função.

A última divindade mencionada é Reva, também de ampla difusão cultual em toda a zona lusitano-galaica, seguida de TRE-, que porém, não podemos classificar seguramente como seu epíteto. A opinião mais difundida é a de que se trata de um tema em -a, fazendo o dativo em -ae = e. Recentemente, com base na possibilidade do R lusitano reflectir o D indo-europeu[21], Witczak (1999: 71) avançou a proposta de Reue constituir o dativo de *Reus, portanto, uma divindade uraniana assimilável a Diaus, Zeus e Júpiter, corroborando assim a anterior interpretação de Mª de Lourdes Albertos de Reva como derivado do radical *reg, "direito, lei" (1983) e as várias situações de identificação desta divindade com importantes orogenias[22].

Voltando agora à análise do rito sacrificial, teríamos assim uma possível sequência de duas divindades de conotação agrária (ou de 3ª função) - Trebopala e Laebo -, a quem são oferecidos, respectivamente, uma ovelha e um porco; uma divindade de conotação indefinida que poderíamos colocar, a título de hipótese, eventualmente no âmbito da 2ª função - Iccona Loiminna -, à qual é sacrificado um animal também ele indeterminado, possivelmente uma vaca(?); uma eventual divindade de carácter soberano - Trebaruna -, à qual é, porém, oferecida uma ovelha e, finalmente uma divindade suprema, uraniana - *Revs -, a quem é consagrada a vítima mais importante, o touro de cobrição.

A primeira divergência que imediatamente se destaca entre este rito e os seus eventuais congéneres védico e romano, é o facto de a maior oferenda, o touro, ser dedicada a uma divindade de "primeira função" e não a uma entidade de conotação guerreira. Por outro lado, a comprovar-se a identificação de commaiam com "vaca", teríamos uma segunda divergência e, ainda uma terceira, expressa no sacrifício de uma ovelha a uma divindade de possível carácter soberano como Trebaruna. Não sabemos se oilam corresponde a "ovelha" ou "carneiro", ou constitui um neutro, o que também dificulta a análise da sequência sacrificial. O contexto ritual - de propriação agrária -, parece ser, porém, o mesmo nos três ritos, encontrando-se entre nós sublinhado pela caracterização do touro como semental e possivelmente, pelas entidades divinas envolvidas.

2.2. A inscrição de Lamas de Moledo (Castro Daire)

Localizada num vale aberto, nas imediações da povoação de Lamas, perto de Moledo (Castro Daire), esta inscrição encontra-se gravada num grande penedo, actualmente incorporado na parede de um palheiro e deslocado da sua posição original (fig.3). A primeira referência conhecida procede de C. H. Balmori, que a publica em 1935.

RVFINVS . ET/ TIRO SCRIP/ SERVNT/ VEAMINICORI/ DOENTI/ AMVCOM (uel ANVCOM, ANCOM, ANGOM)/ LAMATICOM (uel - GOM)/ CROVGEAI MAGA/ REAICOI. PETRANIOI (uel PETRAVIOI) . T(uel R)/ ADOM . PORGOM IOVEA/. CAIELOBRIGOI

Trad.: "Rufino e Tiro escreveram: os Veaminicos oferecem um amucos/ anucos(?) lamatico(?) a Crouga Magareaico, a Petranio (?) um t(...)ados (?), um porco a Jóvea Caelóbrigo"

Apesar do texto estar profundamente gravado, a utilização de nexos manifestamente equívocos coloca algumas dúvidas de leitura (Guerra, 1998: 236). Toda a interpretação do texto é, aliás, particularmente difícil, sobretudo no que toca a identificar expressões como ancom na l.6, lamaticom na l.7 e petrauioi ou petranioi t[...]adom na l.9 e a individualizar as divindades mencionadas. O facto do texto ter sido gravado por dois indivíduos com nomes latinos, talvez possa explicar a correcta forma verbal scripserunt e a posterior "indecisão" no texto em língua lusitana que certamente lhes era ditado pelos dedicantes. Quer a referência ao nome dos lapidicidas, quer a utilização do verbo latino scribo e a presença de Iovea, parecem situar esta inscrição numa cronologia posterior à do Cabeço das Fráguas, integralmente escrita em língua lusitana.

Considera-se aqui geralmente a presença de três divindades: Crougeai Magareaicoi, Petranioi e Iovea(i) Caelobrigoi. Buá Carballo (1998: 437) adverte para a improbabilidade de Iovea Caeilobrigoi constituir uma sequência teonímica, isto porque mesmo admitindo a restituição Ioveai, não haveria concordância gramatical entre os dois elementos[23]. Chamamos, no entanto a atenção para o facto de assim sendo, o mesmo dever ser considerado para Crougeai Magareaicoi, que apresenta uma sequência idêntica, pelo que tomaremos ambos como sequências teonímicas.

Crouga encontra-se atestado em três outras dedicatórias[24], podendo-se relacionar etimologicamente com *krouka, "sepultura, monte de pedras, altar" e apontar-lhe uma eventual conotação ctónica[25]. Magareaicos, sugere por sua vez, a aproximação a mager/maga, "gerar, nutrir" (Curado, 1989: 352), constituindo, todavia, um adjectivo de carácter toponímico, com possível pervivência no actual do Alto da Maga, nas proximidades. A esta divindade é oferecido um anucom lamaticom, que nos é impossível identificar. Patrício Curado (idem) coloca a este respeito uma proposta interessante: a leitura de avvcom, forma que poderá ser correlacionada com a voz indo-europeia *ávi-; *avika, "cordeiro".

A outra divindade, Petranioi, tem um sentido totalmente enigmático, apenas se podendo assinalar a sua filiação na raiz *petr-, "quatro". Uma forma semelhante parece encontrar-se também na transcrição que Masdeu faz da inscrição I de Arroyo de la Luz em 1800, petanim, sendo possivel que originalmente estivesse gravado algo como pet[r]anim. A forma t[...]adom parece estar relacionada com este possível teónimo, mas é também de difícil identificação[26].

Finalmente, temos Iovea Caeilobrigoi, a quem é oferecido um porco. Tal como Crouga - a tratar-se efectivamente de uma sequência teonímica -, apresenta um epíteto tópico, possivelmente relacionado com a actual Cela. Iovea constituirá uma corrupção de Iovi, referindo-se ao deus supremo romano ou a uma entidade indígena identificável a este.

Em suma, teríamos nesta inscrição a referência a pelo menos uma divindade de possível conotação agrária - Crouga -, cuja oferenda não é possível identificar, e uma divindade de eventual carácter soberano, à qual, todavia, é oferecido um porco. A comprovar-se esta interpretação, mais uma vez o rito lusitano mostraria a ausência da ordem sacrificial característica das cerimónias védica e romana. O presente texto não permite, porém, avançar qualquer proposta minimamente segura. A possível relação com os topónimos Cela e Alto da Maga, é em última análise sugestiva, parecendo adscrever as duas entidades divinas a comunidades diferentes o que daria lugar a interessantes conjecturas acerca do possível carácter agregador do ritual e da sua relevância na dimensão religiosa dessas populações.

A Ara de Marecos (Penafiel)

A primeira referência a esta epígrafe data de 1928, quando é pela primeira vez publicada por J. de Pinho. Encontrava-se originalmente na capela da Senhora do Desterro, no cume do monte do Facho, Marecos, a sul de Penafiel. Trata-se de uma grande ara em granito de grão fino, com base e capitel bem individualizados e cujo texto se encontra profundamente gravado em três das faces, devendo-se ler da esquerda para a direita. A erosão que partes do campo epigráfico sofreram colocam, no entanto, algumas dúvidas de leitura.

O(ptimae V(irgini) CO(ornigerae uel conservatrici) ET NIM(phae) DANIGO/M NABIAE CORONAE VA/CA(m) BOVEM NABIAE AGNV(m)/ IOVI AGNVM BOVE(m) LA/CT(endem) [...]VRGO AGNVM LIDAE (uel Idae) COR/(nigerae uel cornutae uel coronam)/ ANN(o) ET DOM(o) ACTVM V APR(ilis) LA/RGO ET MESALLINO CO(n)S(vlibvs) CURATOR(ibvs)/ LUCRETIO VITULINO LUCRETIO SAB/INO POSTVMO PEREGRINO

Trad.: "À excelente virgem protectora e ninfa de Danigo Nabia Corona, uma vaca, um boi; a Nabia um cordeiro; a Júpiter um cordeiro, um vitelo; a [...]Vrgo um cordeiro; a Lida (ou Ida) uma coroa (ou cornuda). Procederam-se aos sacrifícios para o ano e no sanrtuário (ou casa) no quinto dia dos idos de Abril sendo cônsules Largo e Messalino, foram ordenantes Lucrécio Vitulino, Lucrécio Sabino e Póstumo Peregrino."

A primeira linha, pela sucessão de abreviaturas que apresenta, coloca desde logo diversos problemas. A interpretação pela qual optámos corresponde à primeira proposta de leitura feita por Le Roux e Tranoy, segundo os quais "les abreviations sont inhabituelles mais devaient correspondre à un formulaire connu" (1974: 253). Posteriormente, porém, ao rever toda a leitura do texto, Le Roux (HEp. 1996, nº 1069) apresenta para a l.1. a seguinte interpretação: O(mnia?) V(otta?) CO(onsecro?) et NIM(bifero?) DANIGO/ M(acto?), considerando danigom não uma forma étnica mas um dativo de Danigus, segundo o autor, uma possível divindade local que surgiria com o epíteto nimbifer, "o que traz a chuva". Note-se, porém, que nenhuma oferenda se lhe encontra atribuída. Se, por outro lado, interpretarmos Danigom como etnónimo - o que daria uma maior coerência ao texto - seria de esperar um gen. pl. danigorum, pelo que se tem forçosamente de considerar omitidas o R e o V. A este propósito, Buá Carballo (1998:113) assinala a possibilidade de danigom se tratar de um adjectivo, derivado de *[d]anno-< dasno- < dhHsno, com o sentido de "(lugar) sagrado", podendo neste caso em concreto constituir um topónimo.

Outra passagem difícil é a 1.5. A terminação -urgo poderá corresponder ao nome de uma possível divindade a quem é oferecido um cordeiro (Le Roux & Tranoy, 1974: 254), para a qual porém, nada mais é permitido avançar. Ainda na mesma linha, lê-se L?idae Cor-, de interpretação problemática. O sentido do texto parece apontá-la como uma divindade feminina, o que faz Le Roux (1994) propôr a leitura de Idae, e a relaçao com o culto a Cibele e a própria época em que é executado o sacrifício - os Idos de Abril -, reconstituindo cor(onam), "coroa de flores", como a oferenda que lhe é destinada. Consideramos esta interpretação, todavia, pouco segura, embora concordemos no facto de ser mais coerente o desdobramento em coronam e não em cornuta[27] (Le Roux & Tranoy, 1974: 254-255). Considerando agora os teónimos que podemos identificar com segurança, temos a associação no mesmo rito de Nabia, com o epíteto de Corona, à qual são sacrificados um boi e uma vaca; de Nabia sem epíteto, à qual é oferecido um cordeiro; e de Júpiter, ao qual se consagram um cordeiro e um boi. Nabia surge assim, duplamente referida, facto que na opinião de Olivares Pedreño (1998: 235), demonstra que sob esse nome seriam adoradas duas entidades diferentes, ou antes, dois aspectos diferentes da deusa: uma Nabia soberana, relacionada com Júpiter e uma Nabia tutelar da comunidade. Esta divindade, habitualmente relacionada com o sentido de "água"[28], encontra-se etimologicamente muito próxima do gl. naf, "senhor, deus" (Fernández-Albalat, 1990: 299-302), o que atendendo à sua associação ao epíteto Corona e a Iovi[29], parece apontar com maior pertinência para o sentido de "senhora, deusa" e em vez de excluir a sua relação com "água", pelo contrário, melhor a justifica[30]. Esta interessante analogia, explicaria assim, a referência dupla a Nabia nesta inscrição.

A referência a Iovi, deve ser vista, segundo Le Roux (1994) no âmbito das festividades de Júpiter da Natureza e das Estações que se celebravam nos Idos de Abril, os fordicidia. Refira-se, porém, que a tradição das fordicidia prescrevia a imolação de uma vaca prenhe e não de um vitelo e um cordeiro (Dúmezil, 1954: 11). Tratava-se, além disso, de uma cerimónia que o mito consagra explicitamente a Tellus (idem: 23, nota 6) e não a Júpiter, que aqui parece figurar apenas na qualidade de summus[31]. Somos de opinião não ser aqui relevante tratar-se ou não do Júpiter romano, até porque seria algo difícil de apurar: o que nos interessa é assinalar a sua presença no ritual e as oferendas que lhe estão adscritas, um vitelo e um cordeiro.

O facto deste sacrifício ter sido realizado, como o texto epigráfico o indica, no quinto dia dos Idos de Abril, relaciona-o intimamente com os ritos regeneradores de Primavera, propiciatórios a um ano de boas colheitas. Compreende-se assim o sacrifício de animais jovens (cordeiros e vitelo) e a possível oferta de uma coroa de flores a (L)ida, que nada obsta a ser uma personificação idêntica, por exemplo, à nossa Primavera. Temos, portanto, expresso nesta inscrição um contexto ritual análogo aos presentes nas cerimónias védica e romana; em que porém, estão envolvidas cinco divindades e no qual mais uma vez não se verifica a hierarquia sacrificial tripartida.

Em relação às outras duas inscrições anteriormente vistas, a ara de Marecos enquadra-se num contexto cultural claramente diverso, cuja profunda romanização é manifesta no próprio suporte, na utilização do latim - à excepção de urgo -, na data consular e na designação dos oficiantes como curatores[32]. Le Roux e Tranoy consideram a este propósito, "l'existence d'une vie religieux strictement agencé au niveau local." (1974:257-258). Ainda segundo Le Roux (1994), a referência a domo e o facto de dois dos curatores portarem o mesmo gentilício -Lucretio -, pode sugerir o carácter familiar da cerimónia[33].

Considerações Finais

Nesta primeira abordagem, centrámo-nos unicamente na ánalise das fontes documentais e epigráficas, uma vez constituirem os principais focos de debate. De todos os dados analisados parece extrair-se, logo à partida, uma constante: a especificidade do rito "lusitano" por comparação aos rituais védico e romano, muito embora integrável num contexto ideológico aparentemente semelhante. Quer relativamente ao sacrifício de âmbito guerreiro, quer no que toca ao sacrifício de âmbito propiciatório agrário, evidenciam-se os diversos particularismos do rito "lusitano", que obrigam à necessária desconstrução do modelo estruturalista proposto por Dúmezil: não restam actualmente quaisquer dúvidas quanto à existência de um fundo cultural comum indo-europeu, já antes documentado pela linguística, é porém, forçoso articular essa ideologia tripartida primordial, na perspectiva de todas as mudanças sofridas ao longo do tempo e de toda uma história de identificações e assimilações étnicas, bem como no quadro da própria dinâmica fluida e em constante actualização do sagrado. Não podemos assim, falar de uma verdadeira hierarquia tripartida do sacrifício no rito lusitano, nem aproximar de ânimo leve, como têm feito alguns autores, os rituais védicos e romanos. Tratam-se de realidades diferentes que, não obstante o fundo comum, devem ser como tal tratadas.

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Cabeço das Fráguas

Fig. 1. - O Cabeço das Fráguas (Guarda), visto de SW.

Inscrição rupestre em língua lusitana do Cabeço das Fráguas

Fig. 2. - Inscrição rupestre em língua lusitana do Cabeço das Fráguas (Guarda).

Inscrição rupestre em língua lusitana de Lamas de Moledo

Fig. 3. - Inscrição rupestre em língua lusitana de Lamas de Moledo (Viseu).

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[1] Embora a maioria dos testemunhos existentes digam respeito sobretudo aos populi designados como Lusitanos, a ara de Marecos (Penafiel), o ex-voto de Castelo de Moreira (Celorico de Basto), o bronze de Aguirre e o carro votivo de Vilela (Paredes de Coura), inserem-se geograficamente no âmbito galaico.

[2] Que originalmente poderiam ter também comportado a associação do sacrifício humano. No caso romano sobretudo, isso parece ser indiciado pelo sacrifício de dois homens ordenado em 46 a.C. por César e realizado no campo de Marte, local por excelência da cerimónia do October Equus.

[3] No que toca ao papel desempenhado pela deusa Saravasti, de carácter polifuncional.

[4] In qua Lusitanos prope se castra habentis caesos fatetur, quod compertum habuerit, equo atque homine suo ritu immolatis per speciem pacis adoriri exercitum suum in animo habuisse.

[5] A este respeito, se compararmos os textos de Estrabão e Diodoro Sículo que descrevem os ritos sacrificiais entre os Gauleses a partir do mesmo testemunho de Poseidónio, é visível, como aliás chama a atenção Garcia Quintela, a diferença de tratamento das informações recolhidas: Diodoro faz a distinção entre sacrificio humano divinatório - referindo a sua raridade -, práticas penais e sacrificio dos produtos de saque; enquanto Estrabão engloba num todo indistinto sacrifícios, penas e práticas vexatórias sobre o corpo e os bens do inimigo, parecendo pretender sobretudo destacar a barbárie desses povos por oposição à acção civilizadora de Roma (Quintela, 1991: 29 e 1999: 236-237). Na descrição do rito lusitano, porém, esse preconceito etnocêntrico não parece tão evidente.

[6] É vertido vinho sobre a cabeça dos prisioneiros - paralelizável possivelmente com a consagração expressa na cobertura da vítima com o sago (capa) -, que são depois degolados sobre um recipiente, sendo o sangue derramado sobre uma espada que simboliza o deus da guerra. Outra semelhança com a prática lusitana parece residir na amputação do braço direito das vítimas (Heródoto, IV, 62, 2).

[7] Políbio (XII, 4b, 2-3; 3) refere que a maioria dos bárbaros que conhecia, antes de iniciarem uma guerra sacrificavam um cavalo, previndo o resultado através da forma como este se desconjunta. (Garcia Quintela, 1999:232).

[8] Veja-se a este propósito a dedicatória a Mars Sagatus de Astorga feita por um procurator augustorum.

[9] Também um cavalo de batalha que durante um ano, após a sua consagração, percorre as terras do reino sob a vigilância de elementos da corte (Dúmezil, 1974: 235-236).

[10] Embora não seja de todo inverosímil. Garcia Quintela coloca a este respeito propostas muito interessantes (veja-se sobretudo 1991 e 1993).

[11] É de facto, muito complicado optar pela análise deste tipo de rituais segundo a proposta dumeziliana, que considera, invariavelmente, a presença de uma hierarquia divina tripartida. No próprio rito védico, em que melhor se expressará essa ideologia tripartida - no caso, bipartida -, essa análise é problemática, uma vez que Saravasti, "a húmida, a forte,a imaculada" (Dúmezil, 1977: 96), não pode ser adscrita a uma função em concreto.

[12] Sobretudo por parte de António Tovar , Karl H. Schmidt e J.Untermann. O Cabeço das Fráguas constitui um impressivo marco na paisagem, oferecendo excelentes condições naturais de defesa e um amplo domínio visual. O cume, espaço aberto e aplanado, envolvido em todo o seu perímetro por uma cintura natural de penedos, apresenta ainda hoje visível uma linha de muralha que delimita a área mais elevada, na qual está situada a inscrição. Vasco Rodrigues (1959: 7) refere a existência de vestígios de três linhas de muralha nos sectores N e O, e de duas no sector E, acrescentando a presença de "uma calçada na encosta poente, a qual tem, nalguns pontos, escaleiras" (idem: 6), pela qual se faria o acesso ao recinto fortificado. Actualmente, porém, é apenas visível a estruturação de um acesso na própria linha de muralha. A este propósito, seria interessante esclarecer a contemporaneidade ou não da ocupação do sítio e da celebração do ritual fixado na lage.

[13] Com base no ant. prus. camstian, A. Tovar propõe para commaiam o significado de "ovelha" (1980: 241). Recentemente Alarcão propôs o sentido de "égua" (2001: 316).

[14] Proposta de J. Cardim Ribeiro (comunicação pessoal).

[15] Curado, F.P., 1984. "Aras a Laepus procedentes de Pousafoles, Sabugal", Ficheiro Epigrafico", 7, nº 27 e Garcia, M., 1991, Religiões Antigas de Portugal,nº 161-163.

[16] Tovar propõe um sentido de "lisonjeiro, falso, adverso" (1980: 241), enquanto por seu lado, Patrício Curado (1989: 350) sugere a aproximação ao radical plab- "fala, idioma, voz".

[17] Veja-se a este respeito, a referência a Laho Paraliomego de Lugo (Ares Villas 1960-61: 283), que segundo esta interpretação, poderíamos também aproximar a Lari.

[18] Segundo Witczak (1999: 66-67) isso levaria a que icco- fosse o correspondente lusitano do IE. *ekuos.

[19] Não se tratando, portanto, de uma divindade tópica.

[20] Aroenis (Mayenne), Aronna (Lago Maggiore e na Letónia), Runes (Murcia), -Rones (Asturias).

[21] como se parece observar, por exemplo, na aproximação entre Larauco e Ladico, ambos presentes em Ourense e, sobretudo na aproximação às formas Reo, Reae[21] a Deo, Deae.

[22] Trata-se, porém, de uma questão ainda em aberto, sendo várias as propostas alternativas: Villar (1993-1995) considera Reva como uma divindade masculina intimamente vinculada aos rios, de acordo com a etimologia que supõe para os seus epítetos - segundo a interpretação de Villar, a inscrição do Cabeço das Fráguas seria inclusivé, quase integralmente consagrada a divindades aquáticas: Reva, como personificação do rio; Trebopala e Trebaruna como personificações, respectivamente da charca do povo e da fonte do povo. Por sua vez, Ferreira da Silva (1986) inclina-se a ver na multiplicidade dos epítetos desta divindade, um numen de carácter abstracto; enquanto Fernandez-Albalat (1990) relaciona o teónimo com a deusa céltica trifuncional Macha. Em nossa opinião, porém, nenhuma destas propostas é aceitável, sobretudo por três razões: a derivação etimológica proposta por Witczak que consideramos ter bases relativamente sólidas, a sobejamente atestada relação deste teónimo com importantes acidentes geográficos e a sua correlação com I.O.M., cujo caso mais emblemático será o das inscrições de Baltar a Deus Reva Laraucus e as de Vilar de Perdizes a Laraucus Deus Maximus e Iupiter Optimus Maximus.

[23] Podia-se dar o caso de, por exemplo, caeilobrigoi ser um nom. pl. e iovea uma forma verbal (Schmidt, 1980: 321; Tovar, 1961: 62 e 1966-67: 252).

[24] Crouga Nilaigus em Freixiosa, Mangualde, Crougin Toudadigoe no Mosteiro de Stª Maria da Ribeira, Ourense - para a qual Gorrochategui (1985: 87) avançou uma correcção para Crougiai Toudadigoe - e Corougiai Vesuco em Minhotães, Barcelos (Curado, 1989: p.s.).

[25] Um sentido similar parece apontar a inscrição do Mosteiro da Ribeira, na forma Crougin Toudadigoe, cujo epíteto se parece relacionar etimologicamente com o gaulês Toutatis < *touto-tatis, "pai do povo" (Schmidt, 1980 : 332).

[26] Seria por exemplo, tentador procurar ver em t[...]adom, *tarom, numa evolução tarom < taurom, conforme sugere Patrício Curado (1989).

[27] Cornutae ou cornigerae referir-se-ia mais verosimilmente a "vaca", que porém surje na 1.2./1.3 referida explicitamente como vacca(m).

[28] Do sâns. navya, "curso de água", "humidade" do a.i. napta-, sentido aparentemente corroborado pela pervivência desta forma em vários hidrónimos peninsulares.

[29] Confrontar a este propósito Olivares Pedreño, 1998 e Le Roux & Tranoy, 1974. Estes últimos autores colocaram pela primeira vez a hipótese de Nabia Corona figurar como par divino de Coronus, divindade geralmente associada a cumes de montes, como aliás, a maioria dos testemunhos da própria Nabia. Pedreño viria posteriormente, por outro lado, a analisar os vários contextos de ocorrência da divindade, demonstrando a possibilidade de se tratar de uma entidade de carácter polifuncional, reunindo em si os vários âmbitos de acção do sagrado, que em outras áreas geográficas estariam distribuídos por várias divindades femininas, reflectindo-se geograficamente no domínio do culto a Nabia a Norte do Douro, por oposição à região que compreende os distritos de Castelo Branco, Guarda e o Norte da Extremadura espanhola, com várias divindades femininas atestadas e o culto a Nabia limitado a pouquíssimas referências.

[30] Uma vez que "a Deusa" é inevitavelmente a senhora das águas.

[31] Que preside aos idos de cada mês (Dúmezil, 1974: 191-192); a Júpiter propriamente dito, eram dedicadas, segundo Dúmezil (idem: 194-196), as Vinalia priora a 23 de Abril, que se inserem porém, num contexto diferente.

[32] Que ao contrario de sacerdos tem um sentido de foro mais administrativo que religioso.

[33] Embora seja uma hipótese a não ignorar, uma vez que inclusivamente se poderia relacionar com a romana lustratio agri, convém referir no entanto, esta ara ter sido encontrada no cume de um monte onde não se registaram, que conheçamos, vestígios de ocupação romana, além da ara em questão.


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