O SAGRADO E O FENÔMENO RELIGIOSO NA PRÉ-HISTÓRIA
Nelcinéa Cairo do Amparo
Estudante de Doctorado de medio Ambiente Natural y Humano en las Ciencias Sociales de la Universidad de Salamanca
RESUMO
O trabalho considera inicialmente as dificuldades que se estabelecem em torno de uma definiçao do termo religião e as consequencias que isto gera para análise de religiões ou fenomenos religiosos, especialmente quando se referem às origens da nossa civilizaçao, onde dados e provas são escasso e sujeitos à interpretações subjetivas diversas. A partir daí apresenta uma analise do sagrado e do profano, do fenômeno religioso e da relação do homem da pré-história com o mundo, o tempo e o espaço sagrados, do ponto de vista de Mircea Eliade. Para finalizar, se estabelece considerações finais sobre a análise realizada e a importância de se resgatar o estudo do tema no mundo atual.
1. Introdução
Todo aquele que tenha interesse em entender crenças e religiões, deve reconhecer que um estudo das diversas idéias e práticas religiosas dos povos primitivos, pode nos ajudar a estabelecer certas conclusões sobre a natureza da religião de uma forma geral e, consequentemente, sobre as chamadas grandes religiões ou religiões históricas e positivas, ou ainda, de revelações. Em outras palavras, para compreendermos plenamente a natureza da religião revelada, temos que compreender a natureza da chamada religião natural, posto que nada poderia ser revelado sobre algo se os homens não tivessem tido previamente uma idéia deste ou sobre este algo (Evans-Prichard, 1991). Além disto, de acordo com Mircea Eliade (1967), para conhecer o univeso mental do homo religiosus é necessario levar em conta essencialmente os homens das sociedades primitivas, mesmo que ao homem moderno seu comportamento pareça excêntrico ou até mesmo aberrante. Mas, é exatamente onde estão aportados todos os valores que regem o homem religioso.
Inicialmente faz-se necessário chamar atenção que o que chamamos de “religião” tem se manifestado, no decorrer da história e em todas as partes do mundo, em diversificações e diferenças múltiplas. São vários os significados, definições e funções a que se tem atribuido este termo, que como nos diz Ken Wilber (1998) tem sido aplicado a tudo que vai desde crenças dogmáticas a experiencias místicas, de mitologia a fundamentalismo, de idéias mantidas com firmeza a fé apaixonada. Além do mais, existe uma tendência dos estudiosos em separarem o seu conteúdo -como por exemplo crença em anjos, espíritos, etc - da função da mesma - como por exemplo, manutenção da coesão social, etc. - , para chegar a embaraçosa conclusão de que, ainda que o conteúdo seja dúbio, a função é benéfica.
Embora muitos estudiosos tenham já se debruçado sobre o fenômeno religioso, especialmente no que se refere aos povos primitivos, há que se considerar que não é fácil dar uma definição exata sobre o que entendemos por religião. Para alguns o fato religioso abarca temas como magia, o totemismo, o tabú e inclusive a bruxaria, ou seja, tudo o que pode ser englobado dentro do que se considera “mentalidade primitiva” ou que resulta irracional ou supersticioso. Não fazem diferença entre magia e religião, falam do mágico-religioso ou as consideram geneticamente aparentadas; outros, quando distinguem, as explicam de forma quase similar. Enfim, sobre este tema muito já se investigou e muitos livros já foram publicados mas não se chega a concenso (E.Evans-Pritchard,1991).
Por outro lado, há que considerar, por exemplo, que para chineses, indus, muçulmanos, não existem sinonônimos em suas línguas que correspondam exatamente ao significado formal dado ao nosso termo religião. Considerando todas estas complexiadades é inadequado se apresentar aqui uma definição fechada de religião. Por esta razão, buscamos o conceito apresentado por Frank Usarski (2002), que em sua opinião, busca superar um entendimento pré-teórico que generaliza fenômenos religiosos, sobretudo os de origem cristã, com os quais nós estamos culturalmente acostumados. Assim, o seu conceito contém quatro elementos:
- Primeiro, religiões constituem sistemas simbólicos com plausibilidades próprias;
- Segundo, do ponto de vista de um indivíduo religioso, a religião se caracteriza como a afirmação subjetiva da proposta de que existe algo transcendental, algo extra-empírico, algo maior, mais fundamental ou mais poderoso do que a esfera que nos é imediatamente acessível através do instrumentário sensorial humano;
- Terceiro, religiões se compõem de várias dimensões: particularmente temos que pensar na dimensão da fé, na dimensão institucional, na dimensão ritualista, na dimensão da experiência religiosa e na dimensão ética;
- Quarto, religiões cumprem funções individuais e sociais. Elas dão sentido para a vida, elas alimentam esperanças para o futuro próximo ou remoto, sentido esse que algumas vezes transcende o da vida atual, e com isso tem a potencialidade de compensar sofrimentos imediatos. Religiões podem ter funções políticas, no sentido de legitimar e estabilizar um governo ou de estimular atividades revolucionárias. Além disso, religiões integram socialmente, uma vez que membros de uma comunidade religiosa compartilham a mesma cosmovisão, seguem valores comuns e praticam sua fé em grupos.
Desta forma, o estudo de religiões ou do fenômeno religioso remetido às origens do ser humano neste planteta, se reveste de um nível de complexidade ainda maior. Há que se conceber que a religião geralmente se nos aparece edificada à base de conceitos, de práticas e de um material que, às vezes, pode ser bastante anônimo. E, conceitos e práticas, não se fossilizam; portanto sua recuperação direta para estudo pode ser algo ilusório, deduzido. Apenas os vestígios dos ritos podem ser vislumbrados mediante uma disposição anormal no espaço. Por mais fortuitos que estes sejam, temos que buscar alí as pistas para nos assegurarmos de que algo ocorreu (Loroi-Gourhan, 1983).
Considere-se ainda que, tendo em vista ser a religião algo humano, não há então um fenômeno religioso “puro”, ou seja, único e exclusivamente religioso. Todo ele possui ao mesmo tempo algo de social, de lingüístico e econômico pois que, no contexto humano, é difícil se abstrair a linguagem e a vida social. Não obstante, a vida religiosa de qualquer grupo humano em sua fase etnográfica contenha sempre um certo número de elementos teóricos de características religiosas tais como símbolos, ideogramas, mitos, entre outros, que são consideradas verdades. No caso dos homens das culturas arcaicas, estas verdades são chamadas hierofanias, ou seja, “algo sagrado que se nos mostra”. Isto porque tais verdades não somente revelam uma modalidade do sagrado, mas principalmente porque, através delas, o homem se defende contra o insignificante, contra o nada. Sai da esfera do profano (Eliade, 1974a).
2. O sagrado e o profano
Considerando o que nos diz Mircea Eliade (1967), as definições dadas ao fenômeno religioso evidenciam, a sua maneira, uma característica comum: apresentam uma oposição entre o sagrado e a vida religiosa; e o profano e a vida secular. Buscar estabelecer limites da esfera da noção do sagrado é exatamente o ponto onde começam as dificuldades, tanto de ordem teórico como práticas. Isto porque ao se pretender dar uma definição do fenômeno religioso, É importante saber onde se debe buscar os fatos religiosos, em especial, aqueles que podem estar relacionados aos estados mais simples ou mais próximos às origens. Infelizmente, esta é uma tarefa extremamente difícil, porquanto, quase sempre, nos encontramos diante de fenômenos religiosos complexos, cuja história supõe uma longa trajetória evolutiva e, consequentemente, tais fatos não se apresentam accessíveis em nenhuma parte, nem entre os chamados primitivos e nem mesmo, entre as sociedades cuja história se pode seguir. Certas experiências religiosas superiores, certos místicos, identificam o sagrado com o universo inteiro, o que significa que todo o Cosmos constitue uma hierofanía..
Na ontología arcaica, o real se identifica essencialmente com uma força, uma vida, uma opulência, com tudo que existe plenamente ou manifesta um modo de existência excepcional; pelo fato de também se identificar com o estranho, o singular, etc. Quanto mais religioso o homem mais se separa da irrealidade, de um vir a ser sem significação, razão porque tende sempre a consagrar sua vida inteira. Neste aspecto, todo ato é possivel de se converter em um ato religioso, da mesma forma que um objeto cósmico pode se converter em uma hierofanía (Eliade,1974b).
Assim pois, a tarefa mais dificil está em compreender e, sobretudo em fazer comprensível, a modalidade ou manifestaçao do sagrado revelada através de uma determinada hierofanía. Mas, conhecer as diferentes modalidades do sagrado é precisamente uma das maiores capacidades que apresentam os povos das sociedades primitivas porquanto para estas, o sagrado é o que se opõe ao profano. O homem entra em conhecimento com o sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo completamente diferente do profano. Todavia, os modos de ser sagrado e profano dependem das diferentes posições que o homem tem conquistado no Cosmos, uma vez que sagrado e profano constituem duas situações ou modalidades de estar no mundo, duas situações existenciais que o homem elege assumir ao largo de sua história. (Eliade, 1967,1974b).
Ao longo da história, sempre se tem encontrado objetos ou seres considerados sagrados ao lado daqueles considerados profanos, uma vez que, o que converte um objeto em sagrado é a revelação ou incorporação deste de algo distinto dele mesmo; é a nova dimensão de sacralidade que adquire no marco de qualquer religião. A dialética da sacralidade de um objeto supõe uma separação clara deste em relação aos demais objetos que lhe rodeiam, em razão de uma singularização mais ou menos manifestada.
Desta maneira, quando algo se manifesta sagardo, (Eliade, 1967:19) passa a ser visto “completamente diferente” de uma realidade que não pertence a “nosso mundo”, materializado em objetos que formam parte integrante do nosso mundo natural, profano, como por exemplo, uma pedra sagrada ou uma árvore sagrada. Estas, em verdade, não são sagradas em si mesmas; sua sacralização se define pelo fato de conter e ao mesmo tempo “mostrar” algo que já não se constitui apenas no que lhe caracteriza essencialmente como pedra ou árvore, mas pela sacralidade que lhes foi incorporada. Ao manifestar o sagrado, um objeto qualquer se converte em algo diferente, sem contudo deixar de ser ele mesmo pelo fato de continuar participando do meio cósmico circundante. Uma pedra sagrada segue sendo uma pedra: Nada a distingue das demais a não ser a relação que é estabelecida com àquela pedra.
O sagrado pode se manifestar de qualquer forma, mesmo àquelas que dentro do nosso ponto de vista, poderiam ser consideradas aberrantes, vez que o paradóxico, o ininteligível, não é o fato do sagrado se manifestar em árvores ou plantas, e sim, o fato mesmo da manifestação que, por conseguinte, o limita e o torna relativo frente aos demais. Além disto, a ambivalência do sagrado não se apresenta somente no aspecto psicológico, atuando como algo que atrai ou repele, mas, é também de ordem axiológica, porquanto o sagrado é ao mesmo tempo “sagrado” e “ imaculado”. O que se torna imaculado, e portanto consagrado, ainda que mantenha suas características essenciais, se distingue de tudo que pertence a esfera do profano e, acabam por se tornar praticamente proibidos à existência profana. Ninguém pode se acercar impunimente de um objeto imaculado ou consagrado quando está em condição profana, ou seja, sem que tenha sido ritualmente preparado para tal (Eliade, 1974a).
Na verdade, para um homem religioso, o que caracteriza a que um objeto ou algo passe a pertencer a esfera do sagrado é o fato de haver sido criado pelos deuses. Assim, tudo que os mitos referem a atividade criadora, pertence a esfera do sagrado, e, por conseguinte, participa do Ser. Pelo contrário, tudo o que os homens fazem por sua própria iniciativa, e que não tem um referencial mítico, pertence a esfera do profano e é portanto uma atividade vã e ilusória, na verdade irreal. Poder-se-ía dizer que, quanto mais religioso é o homem, maior é o acervo de modelos exemplares que dispõe para referenciar seus modos de conduta e suas ações. Ou, dito de outra forma, quanto mais religioso o homem, mais se insere no real e menor é o risco que corre de se perder em ações não exemplares, subjetivas, em síntese, aberrantes. (Eliade,1967).
Para os povos primitivos, a força e vida não são mais que manifestações da realidade última. Os atos que o homem das culturas arcaicas axecutam, são apenas repetições de um gesto primordial que foi executado no início e formação dos tempos por um ser divino ou por uma figura mística. Adquirem sentido a partir da repetição de um modelo transcendente, repetição esta, que lhe assegura a normalidade do ato e lhe concede um status ontológico, uma vez que apenas se torna real pelo fato de repetir um arquétipo. Consequentemente, os atos elementares se convertem em um ritual que lhe ajuda a acercar-se à realidade, a inserir-se no ser, libertando-se assim dos automatismos do vir a ser, do profano do nada, que não possuem conteúdo ou sentido.
Por outro lado, não é desejo do homem religioso se perder neste mundo, sentir-se esvasiado de sua substância ontológica e se dissolver no Caos que o levará a extinguir-se. Por esta razão procura viver o sagrado com a mesma intensidade com que busca se situar na realidade objetiva, não se deixar paralisar pela realidade sem fim das experiências puramente subjetivas e, sobretudo, viver em um mundo real e eficiente e não em uma ilusão. Ele está ávido de ser, de viver num mundo que exista realmente, para fugir ao terror ante o “Caos” que rodeia o mundo habitado ou o mundo do nada. A forma de configurar isto para o homem primitivo é realizar sempre os ritos que se caracterizam pela repetição de um gesto arquetípico realizado no começo da história pelos antepassados ou pelos deuses. Com isto tendem a transformar os atos mais triviais e mais insignificantes, até mesmo aqueles fisiológicos, em cerimonias, conseguindo através da sacralização, ontificá-los e com isto fazê-los transpor e se projetar para mais além do tempo até a eternidade (Eliade, 1967).
3. A “fundação do mundo”: mitos e ritos
A experência do sagrado é então o artifício utilizado para que se torne possivel o que Mircea Eliade (1967:59) chama a:“fundação do mundo”. Ou seja, alí no espaço onde o sagrado se manifesta, o real se revela e o mundo adquire existencia. Nao há que se entender no entanto que a irrupção do sagrado se limite apenas a projetar um ponto fixo no meio da fluidez amorfa do espaço profano; constituir um centro em meio ao caos. Ao contrário, esta irrupção, permite uma abertura muito mais ampla, na medida que efetua também uma ruptura de nível, pois que permite que se abra uma comunicação entre os níveis cósmicos, Céu e da Terra, e assim, tornar possivel o tânsito, de ordem ontológica, de um modo de ser a outro.
Não importa o contexto histórico em que esteja inserido o homem religioso, este sempre irá acreditar que existe um realidade absoluta que é o sagrado, o que, ainda que tenha o atributo de poder transcender este mundo, se manifesta nele e por isto o santifica e o torna real. Se os deuses criaram o homem e o Mundo, os heróis civilizadores terminaram a Criação; e a história de todas estas obras divinas e semidivinas se conserva nos mitos, então há que crer que a vida tem uma origem sagrada e que a existência humana atualiza todas as suas potencialidades na medida em que é religiosa, ou seja, no momento que participa da realidade. Isto explica porque o pensamento arcaico utiliza sobretudo símbolos cuidadosamente manejados por uma lógica simbólica que caracteriza um modo de pensar próprio e que mesmo nos grupos considerados menos evoluídos do ponto de vista etnográfico, podemos identificar um conjunto de verdades integradas de maneira coerente em um sistema, uma teoria. Evidentemente, distinta da lógica moderna fundada no racional.
Os mitos adquirem nestas sociedades, a nobre função de consolidar os modelos de todos os ritos e de todas as atividades humanas significativas, tais como, alimentação, sexualidade, trabalho, educação, etc. Pois que, tudo que o homem tem manipulado, sentido, encontrado ou amado, dentro da perspectiva do espiritual do primitivo, pode se converter em manifestação do sagrado. Na medida que cada grupo humano em algum momento histórico, consubstanciou como sagrado um certo número de objetos, animais, plantas ou gestos, é muito provável que durante dezenas de milénios da vida religiosa definitivamente nada se ha escapado de ser, em algum momento ou local, configurado como sagrado.
Do ponto de vista Mircea Eliade (1974a:55) a vida religiosa dos primitivos é realmente complexa e considerando isto estabelece alguns principios:
- o sagrado é qualitativamente distinto do profano, ainda que possa se manifestar de qualquer forma e em qualquer lugar dentro do mundo profano, uma vez que tem a capacidade de dotar de singularidade todo objeto cósmico mediante a hierofanía.
- esta dialéctica do sagrado é valida para todas as religiões, não se restringindo apenas àquelas supostas “formas primitivas” pois que se apresenta comprovada tanto em um culto às pedras ou árvores como na concepção erudita dos avatares índios ou mesmo no mistério capital da comunhão.
Em nenhuma parte se encontram únicamente hierofanias elementales, há sempre vestígios de formas religiosas que, pela perspectiva das concepciones evolucionistas, se consideram como superiores. Porém ainda que se possa prescindir destes vestígios de formas religiosas superiores, nos deparamos com um sistema em que se integram as hierofanias elementares. Sistema este, que não se esgota nelas pois que esta constituído por todas as experiências religiosas de uma determinada tribo e compreende ainda, um corpo de tradições teóricas que não podem ser reduzidas a hierofanias elementares, como por exemplo, os mitos referentes à origem do mundo ou a justificação mítica da condição humana atual. Não abstante, cada documento que se estuda no âmbito religioso tem um valor em si e nos permite entender um pouco mais da complexidade deste fenômeno, ao fazer uma dupla revelação: do ponto de vista da hierofania, revela uma modalidade do sagrado e do ponto de vista histórico, revela uma situação do homem com respeito ao sagrado.
Desta maneira pode-se dizer então que o homem religioso primitivo (Eliade, 1967) somente pode viver em um mundo que lhe permita situar-se num centro miticamente definido por ele, onde exista a possibilidade de se abrir e poder experimentar uma comunicação que lhe faça se sentir em permanente comunhão com os deuses. Toda situação legal e permanente prescinde a inserção em um Cosmos, ou seja, em um universo perfeitamente organizado que possa representar um modelo exemplar da criação. E, tanto sua casa como seu corpo, passam a ser microcosmos, pois simbolicamente se habita neles da mesma forma que se habita no Cosmos. E, evidentemente, onde quer que se habite há que ter uma comunicação com o alto, com o outro nível que é transcendente, pois que é esta abertura que torna possível a passagem de um modo de ser a outro, de uma situação existencial a outra. Toda existência esta predestinada ao trânsito:o homem passa de uma pré-vida à vida e desta à morte, reproduzindo assim o que passou o antepassado mítico que foi da pré-existência à existência e o Sol que vai das trevas à luz.
Por outro lado, no pensamento do primitivo, o homem ao nascer ainda não está acabando, completo. Para que possa se transformar em um ser completo, passando do estado imperfeito, embrionário ao estado perfeito de adulto, deve morrer desta vida primeira, para renascer pela segunda vez em uma vida superior, espiritual. Para isto necessita dos rituais e simbolismos de trânsito e iniciação, presentes nas sociedades primitivas, os quais têm a função de expressar a concepção específica da existência humana, reproduzindo o momento de criação efetivado pelos deuses quando da fundação. Este nascimento iniciatico significa então a morte da existência profana; e a série de ritos de trânsitos, de iniciações sucessivas e o que permite a existência humana chegar a sua plenitude. Desde os estados arcaicos de cultura, a iniciação desempenha um papel capital na formação religiosa do homem.
4. A sacralidade do tempo e do espaço
Para Mircea Eliade(1967), um dos aspectos que caracterizam as sociedades arcaicas é o fato de não conceber o espaço como homogêneo, estabelecendo que: de um lado existe o espaço habitado e do outro, opondo-se tácitamente, está o espaço desconhecido e indeterminado que lhes circunda. As rupturas e cisões existentes fazem com que um seja qualitativamente diferente do outro. O espaço habitado corresponde ao Mundo, ao Cosmos, ou ainda, ao mundo onde vivemos; o resto já não é um Cosmos mas, apenas uma espécie estranha de “outro mundo”, extensão disforme que o rodea, espaços não consagrados, sem estrutura nem consistência, amorfos, caóticos, povoado de larvas, de demônios, de extrangeiros. Tem-se por um lado, um Cosmos e por outro, um Caos. Tudo que não é o que se poderia chamar de nosso mundo não é ainda mundo e ninguém pode assumir um determinado território se não o cria novamente, ou seja, não o consagra como espaço sagrado que é o único que é real, por conseguinte, forte e significativo.
Um território desconhecido sem ser ocupado por nós, se mantem participando da modalidade fluídica do Cosmos, até o momento em que o homem se instale nele para transformá-lo, simbolicamente, em Cosmos pela repetição ritual da cosmogonía. A “cosmização” de territórios desconhecidos representa sempre uma consagração que pressupõe organizar um espaço e consagrá-lo reiteran ao modelo de obra exemplar: a Criação do Universo pelos deuses. Deste ponto de vista, o homem não se apropria do território desconhecido e sim o sacraliza para que seja integrado ao mundo real e sagrado. A sacralização, reestabelece uma comunicação permanente com o Céu e com os deuses o que torna possivel a existência humana.
Na extensão homogênea e infinita do espaço não há possibilidade de se estabelecer nenhuma demarcação, que somente é possivel a partir de uma hierofanía que permita ser revelado um ponto fixo, absoluto, um Centro. Se, para viver no mundo, é necessário fundá-lo e se nada pode começar sem orientaçao prévia, um sinal qualquer basta para indicar a sacralidade do lugar. Esta significa o estabelecimento de um ponto fixo, que se constitui o espaço sagrado e tem um valor existencial para o homem religioso primitivo equivalendo para ele a Criação do Mundo. Em síntese, poder-se-ía dizer que a revelação de um espaço sagrado permite: “obter um ponto fixo, orientar-se na homogeneidade caótica, “fundar o Mundo” e viver realmente”(Eliade,1967:21).
O ponto onde se dá a ruptura de nível, onde se estabelece a comunicação entre as duas zonas cósmicas, se encontra sempre num espaço concebido como sendo o meio, um Centro e resulta no verdadeiro mundo. Este sempre será um Cosmos perfeito tenha ele a extensão que tiver, seja ele um país inteiro, uma cidade, um santuário que representa indiferentemente uma imagem do mundo. O acesso ao centro equivale a uma consagração, uma iniciação: o caminho é arduo e cheio de perigos porque na verdade se trata de um rito pelo qual se passa do profano ao sagrado, do efêmero e ilusório à realidade e à eternidade, da morte à vida, do homem à divindade (Eliade, 1974b).
Importa ressaltar, que o simbolismo do Centro do Mundo não somente indica países, cidades, templos e palácios, como também, a mais modesta habitação humana, a tenda do caçador, nômade, etc. Para as sociedades arcaicas todos os santuários e cada um destes espaços se apresentam também consagrados por representarem simultâneamente a imagem do universo e o Centro do Mundo. A estas sociedades não bastava viver em um espaço onde fosse possível uma abertura para o alto, o inalcansável, onde a ruptura de nível era essegurada simbolicamente e onde a comunicação com o outro mundo transcendente era possivel; era necessario viver o mais cerca do Centro do Mundo. Há que se situar ao mesmo tempo no Centro do Mundo e na fonte mesma da realidade absoluta onde lhe é assegurado a comunicação com os deuses.
O estabelecimento deste ponto central, do centro do Mundo, ocorre através de um sinal, manifesto ou provocado, através de um ritual onde se reproduz a obra de criação dos deuses. No momento, por exemplo, que se ergue um altar a um deus, se faz a reprodução em escala microcósmica da Criação e se dá validez a uma tomada de posse de um território. Toda construção ou fabricação tem um modelo de exemplo na cosmologia que faz com que a criação do mundo se transforme então no arquétipo de todo gesto humano criador qualquer que seja o plano de referência.
Independente da sociedade o que caracteriza a santificação da morada é o fato de constituir una imagem do mundo, e de ser o mundo, uma criação divina. Resulta então que se instalar em qualquer parte, edificar uma moradia, construir uma casa ou um povoado, representa uma decisão de caráter vital e religioso tanto para o indivíduo como para a comunidade inteira, porquanto a existência mesma do homem se compromete com o ato de criar seu próprio mundo e de assumir a responsabilidade de mantê-lo e renová-lo. Se trata de avocar a criação do mundo que se escolheu para habitar. E, este neste ato solene o homem não somente transforma o caos em Cosmos, como também santifica seu pequeno universo, fazendo-o a imagem e semelhança do mundo dos deuses. Da mesma forma que a cidade ou o santuátio, também a casa está santificada, em parte ou na totalidade, por um simbolismo ou um ritual cosmogônico.
Deste ponto de vista, a sua casa, “o lugar onde habita não é um objeto, uma “máquina de residir”: é o universo que o homem constrói para si, imitando a Criação exemplar dos deuses, a cosmogonia” (Eliade,1967:54). Ao se repetir o momento primordial em que o Universo viu luz pela primeira vez, toda construção e toda inauguração de uma nova morada equivale de certo modo a um recomeço, a uma nova vida, habitar o mundo divino. Ter uma casa equivalente a dos deuses é a mais profunda nostalgia que alimenta o homem religioso e o que o impele a configurar isto mais tarde em templos e santuários.
Evidentemente que esta concepção acaba por criar uma multiplicidade ou infinidade de Centros de Mundo, que no entanto, não configura nenhuma dificuldade ao pensamento religioso pois que o homem primitivo não o ve como espaço geométrico e sim como espaço existencial e sagrado, com uma estrutura radicalmente distinta, que está aberta a uma infinidade de rupturas e, evidentemente de comunicações com o transcendente. Na verdade, esta experência é que o permitirá reencontar periódicamente o Cosmos tal como era no instante mítico em que saiu das mãos da Criação.
Não se pode esquecer o fato de que o nosso mundo é um Cosmos, que se fundou a imitação da obra exemplar dos deuses e todo ataque exterior ameaça dessacralizá-lo, ou seja, transformá-lo de volta em Caos. Os adversários (Eliade,1967) que o atacam se assemelham aos inimigos dos deuses, aos demônios e necessitam ser vencidos como no começo dos tempos. Os inimigos se aliam entre as potências do Caos. Toda destruição de uma cidade equivale a uma regressão ao Caos, enquanto toda vitória reitera a vitória exemplar do deus contra o Caos
Da mesta forma que o espaço, também o tempo, para o homem primitivo, não é homogêneo e contínuo. O conceito de tempo é bastante complexo em relação a percepção atual. Existe o tempo profano com duração ordinária e onde se inscrevem os atos despojados de significação religiosa; e o tempo sagrado, que se constitui de uma série de eternidades recuperáveis periodicamente durante as festas que constituem o calendário sagrado. Há todavia uma diferença substancial entre estes dois tempos posto que o tempo sagrado, por ser verdadeiramente o tempo mítico primordial que se faz presente, é reversível por sua própria natureza. O que não impede que se possa efetivar uma comunicação entre eles através dos ritos, permitindo ao homem religioso passar da duração ordinária ao tempo sagrado, sem perigo. (Eliade,1967).
Há que entender ainda que o tempo hierofánico- onde se manifesta o sagrado-, pode envolver realidades distintas: a) ser considerado sagrado, quando designa um tempo em que se situa a celebração de um ritual; b) significar um tempo mítico, quando é recobrado várias vezes por um ritual e realizado outras pela pura e simples repetição de uma ação que tem um arquetipo mítico; c) designar os ritmos cósmicos quando estes são considerados como revelações, manifestções ou ações de uma realidade fundamental subjacente ao Cosmos. Visto desta maneira, qualquer momento ou lapso pode vir a ser, em qualquer instante, um tempo hierofánico, bastando para isto que seja consagrado como tal, que haja comemoração pela sua repetição até o infinito.Os segundos sagrados se repetem todos os anos , ou seja, se perpetuam ao longo dos anos e dos séculos formando assim um único tempo. Todo tempo pode revelar o sobrenatural, o sobre-humano e o suprafísico (Eliade, 1974b:172).
Como parte deste, está o tempo litúrgico do calendário que se desenvolve em um círcuito fechado: é o tempo cósmico do Ano, santificado pelas obras dos deuses e constituído pelas festas religiosas, que consistem em uma reatualização de um acontecimento sagrado que aconteceu num passado mítico, cujos protagonistas são os deuses ou os seres semi-divinos. E, uma vez que a Criação do Mundo é a obra divina mais grandiosa, a comemoração de sua cosmogonia desempenha um papel importante, pois permite uma homologação do Cosmos ao Tempo cósmico ( o Ano), onde ambos são realidades sagradas. Existe assim uma solidariedade cósmico-temporal de natureza religiosa, sendo que o Tempo cosmogônico – que se refere a origem ou formação do mundo -, serve de modelo para todos os Tempos sagrados, por ser resultado da manifestação e criação de todos os deuses.
De aí que o tempo sagrado é sobretudo um Tempo mítico, um tempo primordial, um Tempo original no sentido de que não foi precedido por nenhum outro Tempo: antes do aparecimento da realidade relatada pelo mito não podia existir Tempo algum. Mas, sendo este tempo obra e criação dos deuses, no momento que o recupera, o reatualizam, estão se fazendo contemporâneo dos deuses. Qualquer que seja a complexidade de uma festa religiosa, se trata sempre de um acontecimento sagrado que teve lugar no momento da criação e que se faz presente ritualmente (Eliade, 1967).
O homem religioso vive então em duas classes de tempo, onde o mais importante que conhece são intervalos sagrados que não participam da duração temporal que lhes precede e lhes segue, pois sendo um tempo primordial, santificado pelos deuses é um Tempo circular, reversível, recuperável como uma espécie de eterno presente mítico que reintegra periódicamente mediante o artifício dos mitos. Uma vez que os mitos constituem sua história santificada, o homem das sociedades primitivas faz todo esforço para não os esqueçer pois que a reatualização dos mitos, o leva a se manter próximo dos deuses e a compartir com eles sua santidade. Na religião como na magia (Eliade,1974b), a periodicidade significa antes de mais nada, toda a utilização indefinida de um tempo mítico que se faz presente, através dos rituais que têm a propriedade de fazer com que o tempo que presenciou um aconteciemnto que se comemora ou se repete, possa ser recuperado, reapresentado e feito presente no momento atual, ainda que tenha se passado em um tempo muito remoto.
Na mentalidade do homem primitivo, a história coincide com o mito porquanto todo acontecimento significativo pelo simples fato haver ocorrido no tempo, representa uma ruptura da duração profana e uma incursão no grande tempo e é, por conseguinte uma revelação. As ações comuns humanas não possuem significado ou interesse em si mesmas, mas adquirem significação pelo fato de repetirem gestos revelados pelas divindades, heróis ou antepassados. O que se constituiria história das sociedades primitivas (Eliade, 1974b), se reduz assim a acontecimento míticos que tiveram lugar em um tempo primordial e que não deixaram de se repetir em qualquer momento pela força reveladora de um gesto arquetípico, mítico presente nos mitos e ritos.
Para o homem das sociedades primitivas e arcaicas, a eterna repetição de gestos exemplares e o eterno reencontro com o mesmo Tempo mítico de origem, santificado pelos deuses, não implica em absoluto em uma visão pessimista da vida; ao contrário, constitue sua maior esperança, pois graças ao eterno retorno, as fontes do sagrado e do real, a ele lhe parece salvar a existência humana do nada e da morte. O desejo e a esperança de regeneração periódica do tempo e da história estão presentes nas crenças em um tempo cíclico, no eterno retorno, na destruição periódica do universo e em uma nova humanidade regenerada. Vale dizer que, quando oTemplo cíclico deixa de ser um veículo para reintegrar uma situação primordial e para reencontar a presença misteriosa dos deuses, ou seja quando se desacraliza, se torna terrível: se torna um mero círculo que gira sobre si mesmo repetindo-se até o infinito. E, acaba por gerar enfim uma visão pessimista da existência (Mircea Eliade,1967,1974,1994).
Da mesma forma que estes não rejeitam por princípio o que se considera modernamente progresso, seja social, cultural, técnico,etc., mas que o aceita como sendo dado a ele por uma fonte de revelação e dimensão divina. E a responsabilidade que assume neste contexto é enorme pois tem um dimensão cósmica na medida que significa colaborar com a criação, criar seu próprio mundo e a assegurar a vida das plantas e animais. Por tudo isto, o homem religioso não acredita mais que no Ser, que sua participação no Ser garante a revelação primordial da qual é responsável. A soma das revelações primordiais está constituída pelos seus mitos.
Concluindo, tem-se então que, o homem primitivo necessitando sempre viver em estreito contato com seus deuses, cria a simbologia do “centro do mundo” onde representa um espaço, um canal de comunicação com o divino. O sagrado é o real por excelência, e ao mesmo tempo potencia, eficiência, fonte de vida e de fecundidade e tudo pode tornar-se sagrado pois que tudo foi criado pelos deuses. Da mesma forma, os rituais, festas, templos e outros locais lhes permitem simbolicamente retornar permanentemente às origens: o que siginifa concretamente fazer-se contemporâneo dos deuses, estar em suas presenças divinas ainda que estes possam não estar visiveis mas que o foram, simbolicamente, em algum momento.
5. Considerações finais
Aqui vão esboçadas algumas considerações a modo de conclusões.
Considerando o ponto de vista de Mircea Eliade, chega-se à conclusão que, na visão do homem primitivo, o aspecto que define e que é referencial para seu modo de vida e sua relação entre si, com o universo e com a natureza é o fato de que Tudo esta revestido de sacralidade. Tudo que existia no universo possuia o potencial para em algum momento e por alguma razão, adquirir os atributos sagrados e serem assim considerados, por todos os membros de uma determinada comunidade. Tanto um objeto qualquer poderia se converter em algo sagrado, como todo ato seria possível de ser convertido em um ato religioso, posto que o que confere a algo a potencialidade de ser sacralizado é o fato de haver sido criado pelos deuses. Realizar um ato, um ritual, uma cerimônia religiosa significa reviver o ato de criação inicial dos deuses e adquirir sempre de volta a sua razão de ser e estar neste mundo, neste universo que por esta razão é inteiro sagrado
Os deuses criaram o homem e o Mundo, os heróis civilizadores terminaram a Criação; e a história de todas estas obras divinas e semidivinas se conserva e se revive nos mitos, rituais e simbologias, que adquirem nestas sociedades a nobre função de consolidar os modelos de todos os ritos e de todas as atividades humanas significativas, tais como, alimentação, sexualidades, trabalho, educação, etc. Há que crer que a vida tem uma origem sagrada e que a existência humana atualiza todas as suas potencialidades na medida em que é religiosa, ou seja, na medida que participa da realidade. A forma de participação e de contato permanente com os deuses do homem primitivo é através da simbologia do “centro do mundo” que representa um espaço, um canal de comunicação com o divino. O sagrado é o real por excelência, e ao mesmo tempo potência, eficiência, fonte de vida e de fecundidade e tudo pode tornar-se sagrado pois que tudo foi criado pelos deuses.
Como o tempo e o espaço não têm o mesmo significado, pois estão sempre relacionados aos deuses e a sua obra de criação, os rituais, festas, templos e outros locais lhes permitem simbolicamente retornar permanentemente às origens: o que siginifa concretamente fazer-se contemporâneo dos deuses, estar em suas presenças divinas ainda que estes possam não estar visíveis, mas que o foram, simbolicamente em algum momento.
O Cosmos é visto pois como um organismo que “vive” e se expressa, e sua própria existência é a configuração de sua santidade, já que tendo sido criado pelos deuses, é por estes utilizado como forma concreta de se manifestarem continuamente aos homens através da vida cósmica. A partir de um certo estágio de cultura, o homem reencontra em si mesmo a santidade que reconhece no Cosmos. A Natureza, assim como a vida em sua totalidade, é susceptível de ser santificada, ou seja, de se revelar como sacralidade cósmica, pois que ao se converter em uma hierofania, se manifesta algo que se nos mostra sagrado.
Ainda concordando com a posição de Mircea Eliade, a sacralização parcial, e consequentemente desacralização da totalidade, associada a outros tantos processos análogos, deu inicio a uma marcaha progressiva que resultou no esvasiamento de qualquer conteúdo religioso ao Cosmos. Da mesma forma, muito mais que os descobrimento empíricos efetivados, o modo do homem se perceber em relação ao universo determinado pela dialética das formas de manifestação do sagrado, acaba por desencadear a chamada conquista da natureza pelo homem. Na verdade, o trabalho com metais, a agricultura, o calendário lunar, entre outros, surgem com a mudança de percepção do homem em relação ao Cosmos. Na medida que já não mais percebe e se percebe no Cosmo como totalidade sagrada, que começa a perder o sentido de unidade e totalidade, que esvazia o Cosmos de qualquer conteúdo religioso, e passa a interferir e provocar os mudanças no contexto ambiental, o homem dá os primeiros passos em direçao à crise ambiental ou planetária, - como a denominou Nicolás Sosa, com a qual convivemos atualmente.
Fica apenas uma certeza: ainda nos falta muito para conseguir reconstituir as origens da vida, da religião, bem como, uma história dos passos, idéias, crenças, concepções que permearam o imaginário dos “primeiros seres humanos” que habitaram o nosso planeta e plantaram as sementes da nossa civilização. E será que teremos condição de um dia nos desnudarmos dos nossos valores, tão fortemente arraigados, para conseguir chegar a isto?
Finalmente, caberia considerar que desde muitos anos, especialmente no ocidente, a antiga fé no progresso, tão fundamental para a cultura moderna, costuma estar subordinada ao desenvolvimento industrial e tecnológico e, em conseqüência, associada à condição de perecimento absoluto da religião ou de qualquer atividade relacionada a dimensão espiritual do ser humano. Resultou daí, que a religião ou qualquer fenômeno religioso passou a ser entendida como ferramenta de domínio, de ópio popular, ou mais ainda, como um montante de superstições de pessoas temerosas e de poucas luzes ou conhecimentos. Muitos estudiosos (Taylor, Fraser, Levy-Bruhl, Freud, Max, Durkheim, entre outros) a viam como uma mera ilusão, mais ou menos rica em imagens e metáforas, com um futuro problemático. No máximo se lhe concedia certa profundidade estética e uma vaga nobreza histórica, não lhe retirando, no entanto, o estatus de fantasia criada pela infantilidade da humanidade (Prates (1998).
Não obstante, a religião acabou por se transformar, mas não morreu jamais. E cada vez mais, em especial as ciências humanas e sociais a transformam em objeto de atenção e destacam a necessidade não somente de estudar sobre dela, como a de reconstituir a sistemática dos velhos pressupostos mais progressistas por sentir a necessidade de incluir o componente religioso em toda interpretação ampla e complexa da vida social. A questão não pode se limitar a um simples processo de modernizacão mas, ao contrário, tem que passar a considerar também o âmbito em que se produzem novas formas e expressões de religiosidade.
Torna-se cada vez mais claro que o destino da humanidade depende da capacidade que tenhamos de assumir o desafío frente aos novos modos de ser, de sentir, de pensar, de valorar, de atuar, até mesmo de rezar ou de establecer nossa relação com a nossa dimensão espiritual ou divina, o que nos permitirá a estabelecer um relação de amor para com todos os seres deste planeta.
Faz-se então necessário entender e explicar a produção contemporânea da religiosidade, assim como, os modos especificamente modernos da experiência e criação religiosa e, para se chegar a isto, tem-se que superar a dicotomia que apresenta como antagônicas a racionalidade e a fé, a razão e o carisma e, enfim, a religião e ciência. Significa abandonarmos a análise secular e racional do comportamento humano e nos voltarmos para a consideração de elementos credenciais, rituais simbólicos e sagrados que são parte integrante da natureza humana pois, interessa agora entender a recomposição da religião na modernidade a partir dela mesma, o que poderia nos ajudar a uma melhor recuperação da noção de natureza humana, reconhecendo-a como composta não somente por uma dimensao econômica e política, mas também, e fundamentalmente, emocional e religiosa.
Em resumo, nas condições em que nos encontramos na modernidade, faz-se necessário estudar não somente a sacralizaçao da vida e do mundo profano, incluindo ai o que se poderia chamar de profanações a que costumam se entregar as pessoas em seus conflitos e intolerâncias mútuas, mas também o processo de sacralização e consagração do profano que se configura atualmente condicionado ao processo de imediatismo a que se encontra subjulgada a nossa civilização (Prates, 1998:). Processo este que fomenta e alimenta a crise existencial sem limites que hoje é parte de nossas vidas.
. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
EVANS-PRITCHARD, E. E. (1991) Las Teorias de la religión Primitiva. Madrid:Ed. Siglo XXI de España Editores
WILBER, Ken (1998) A união da alma e dos sentidos. Integração ciencia e religião. São Paulo: Ed pensamento-Cutrix
LEROI-GOURHAN, André (1983) Símbolos, artes y creencias de la prehistoria. Madrid: Ed Istimo.
MIRCEA, Eliade (1967) Lo Sagrado y lo Profano. Madrid: Ed Guadarrama S. A.
MIRCEA, Eliade (1974a) Tratado de historia de las Religiones. Volume I.Madrid: Ed Cristiandad. 6 ª Edición
MIRCEA, Eliade (1974b) Tratado de historia de las Religiones. Volume II.Madrid: Ed Cristiandad. 6 ª Edición
MIRCEA, Eliade (1974) Tratado de historia de las Religiones. Volume II. Madrid: Ed Cristiandad. 6 ª Edición
MIRCEA, Eliade (1997) El mito del eterno retorno. Barcelona: Ed. Altaya.
PRATES, José A.(1998). Lo sagrado. Del mundo arcaico a la modernidad. Barcelona: Ed Peninsula.
USARSKI, Frank (2002). Interação entre Ciência e religião. Revista Espaço Academico. Ano II nº 17. outubro 2002. São Paulo. Pontifícia Universiadade Católica
Buscar en esta seccion :